Olha o toque da Cavalaria

No imaginário colonial Brasileiro há uma cantiga de ninar que, nesta alegoria, dá vida à MARCA que o RACISMO COLONIAL queimou com ferro em brasas na pele escura do Negro. É a materialização do olhar racista dos senhores de engenho. O boi da cara preta é, também, a alienação do homem da cara preta de sua própria humanidade. É a imagem de um animal selvagem que carrega dentro de si sua maldade, na forma mais animalesca, de um instinto.

Submissa e domada essa besta marcada a ferro pode a qualquer momento atender os chamados da cantiga e levar a inocente criança. Para um lugar que não é falado. Esse animal assustador, mítico, serve como o portal para os nossos piores pesadelos.

O medo irracional do monstro, ainda em estado inocente ou inconsciente, causa ao menino ou na menina que tem medo de careta – a cara brava do boi, representação da rebeldia negra – o pânico necessário, ou melhor, o medo suficiente para fugir, fechando os olhos e caindo no sono, onde a mente pode obter força o suficiente para lutar e matar a besta malvada.

Esse é o verdadeiro fardo do homem branco!

A construção do negro como um não-humano, besta selvagem, serviu como ferramenta essencial para a dominação escravocrata, assim como serve para o capitalismo moderno que necessita de seus bois para produzir MAIS-VALOR. Por outro lado, o que significa a autoafirmação de sua própria HUMANIDADE? É o transformar-se da BESTA no veneno mortal, que mata seus senhores ao desvelar-se humano.

A violência, a negação, a agressão psicológica, física, as pequenas exceções viram então a regra. É a defesa branca contra seu próprio veneno, para controlar o Negro da cara preta. Esse mesmo veneno serve como remédio no coração do BRANCO, vira na realidade da luta de classes o racismo sem culpa. Ao bestificar, infantilizar, invisibilizar, subalternizar o Negro, a branquitude pode, sem remorso, continuar a construir a ideia de civilidade, de civilização, da democracia feita só para cidadãos, só para o Homem ideal. A construção do falso Universal. Do Humano ideal, mas incompleto, cruel e excludente. É a democracia para seus iguais. São os direitos universais do homem branco, heterossexual e burguês.

Nós lhes perguntamos, lembrando Tom Zé:

– Ó Senhor Cidadão. Eu quero saber. Com quantos quilos de negros se faz uma tradição? Com quantas mortes no templo se faz a seriedade?

Ao nos bestializar, se esquecem da realidade: as BESTAS SÃO ELES PRÓPRIOS. Foi o homem branco que com a desculpa de humanizar, de civilizar, que matou e dizimou povos inteiros, que escravizou, açoitou, matou das formas mais desumanas possíveis, o “outro” que ele mesmo criou. E hoje a racionalidade eurocêntrica constitui o verdadeiro espelho de Narciso, onde o homem branco só percebe humanidade em si mesmo, e nos seus iguais.

Não há boi de cara preta, não há menina/o, nem há careta. Essa história esconde a verdade sobre o capitalismo colonial-moderno. A realidade é composta de Peles Negras e Máscaras Brancas, já nos alertava Fanon. O verdadeiro terror está subscrito na máscara branca, que por não possuir corpo – visto que é um mito, uma criação do homem branco sobre ele mesmo – persegue a pele negra para se realizar, gruda na pele negra e se prende com as sobras das correntes produzidas para e pela a escravidão. Esse é o verdadeiro movimento disfarçado pela concepção de DEMOCRACIA burguesa, que em nosso país também se expressa no MITO DA DEMOCRACIA RACIAL como bem apontado por Florestan.

Quando a crise assola ainda mais essa falsa democracia, quando a caça jagunça dos homens brancos aos bois da cara preta, que andam a fazer careta, não é mais suficiente para resolver os problemas do capitalismo colonial-moderno e sua crise, é hora de atacar os cidadãos. Nesse momento o homem branco capitalista quebra os laços da branquitude que os unia aos que se parecem com ele.

O homem branco amargura seu abandono, procura sem encontrar os verdadeiros culpados pelas suas aflições. Não tem sucesso, pois não consegue deixar de ser atraído pelo seu espelho distorcido que mostra a máscara branca, escondendo sob a pele preta a maldade. Nesse processo encontra como cerne de seus problemas a cara preta e o fascismo, chegando a brilhante conclusão:

– A culpa só pode ser dos negros! – Clamam vestidos da auto presunção de brilhantismo, que sempre os acompanha.

– A nossa bondade civilizatória colocou o negro nas nossas universidades pelas cotas, deu direito às mulheres que, ainda como escravas e mucamas, limpam nossas casas. E estamos agora pagando por isso. Pois é, o fascismo não perdoa. – Suspiram ignorantes ou sínicos.

Mas eles se esquecem que o fascismo é apenas uma versão branca do que há centenas de anos eles fazem conosco e com os Povos Originários que aqui estavam bem antes de nós. O Fascismo é o veneno colonial – feito para amansar as bestas da colônia – destilado na metrópole, é o descontrole branco quando se esquece que tortura, trabalho forçado e desumanização são para os “outros”.

Ao sentir os ataques de sua própria democracia em colapso, só podem deduzir fascismo. Do contrário seriam obrigados a lembrar que são as verdadeiras BESTAS, seriam obrigados a admitir sua selvageria cotidiana, perceber que o que eles usavam como remédio é, na verdade, seu próprio veneno.

POR ISSO VAMOS TOCAR CAVALARIA!

Nós já morremos mil vezes antes de nos encherem de balas. A lição foi aprendida, foi espalhada pela capoeira, pelo samba, por tudo que nossos ancestrais criaram e que hoje nós incorporamos na pele negra como remédio contra as feridas da máscara branca. Nossos sentinelas estão em alerta.

Dos EUA à África, OS NEGROS TOCAM CAVALARIA.

Agora não adianta armamento para quem tem medo e covardia. Pois nossa rebeldia é o fundamento contra o poder da tirania. Da medalha de São Bento pegamos de volta nosso Omolú. É ele que nos ajuda a curar as feridas do racismo e que fecha nosso corpo nos protegendo do VENENO branco-colonial.

Ao ouvir o toque da CAVALARIA, nos preparamos contra o inimigo, formamos nosso exército de guerreiro e guerreiras, formamos nossos comandantes e retomamos todas as nossas armas.

É o momento: em nossa pele negra se incorpora a força e a alma dos grandes guerreiros palmarinos, dos revolucionários haitianos e de todos os que nos antecederam nessa mesma luta pela vida. Nessa luta pelo reconhecimento da nossa humanidade. Na luta para tirar a Humanidade das mãos brancas e, agora, mortas de quem a corrompeu.

Nosso exército será dirigido pela força de OGUM, somos guerreiros sem medo da morte! Não queremos seu céu, nem seu inferno, nosso destino é ARUANDA! Queimaremos as casas-grandes, devoraremos suas milícias, devolveremos o veneno que nos foi dado. E, como em tantas outras vezes em que nos levantamos, cerramos nossas fileiras e nossos punhos com nossos irmãos. Aqueles povos que aqui estavam antes do colonizador e que ainda são caçados como animais selvagens. E contra os que desejam nos trair pelo caminho, o toque de Iúna é nosso alerta, é amuleto contra traição, que prepara o guerreiro contra trairagem.

Convidados todos aqueles que estão dispostos a se libertar desse veneno capitalista/europeu/colonial, aqueles que estão dispostos a lutar por nós e conosco na guerra pela a libertação da humanidade.

Os que ficarem pelo caminho um aviso:

A ONDA NEGRA DESTRÓI TUDO QUE SE COLOCA EM SEU CAMINHO!

*Texto inspirado pelo álbum Capoeira de Besouro de Paulo César Pinheiro.

Coletivo Clóvis Moura

Coletivo de pesquisadoras e pesquisadores negros. Sua luta é pela projeção da interlocução negra na academia.

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