Gramsci estabelece uma distinção fundamental entre “Oriente” e “Ocidente”:
No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma relação apropriada e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento de caráter nacional.
Por causa disso, enquanto no “Oriente” a “guerra de movimento” é a forma adequada de travar a luta política, esta, no “Ocidente”, só pode ter êxito como “guerra de posição”. Deduz-se daí uma rígida contraposição entre “guerra de movimento” e “guerra de posição”, que não tem sustentação nem na história nem na teoria política gramsciana.
Historicamente, o desmentido dessa dicotomia excludente nos vem da própria Rússia soviética, terreno canônico para os conceitos gramscianos de “Oriente” e “guerra de movimento”. Vamos encontrar em Althusser o registro desse desmentido histórico:
Até onde conhecemos, nenhuma classe pode deter o poder de Estado de modo durável sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos Aparelhos ideológicos de Estado. Para prová-lo, eu não preciso mais do que um único exemplo: o esforço lancinante de Lênin de revolucionar o Aparelho ideológico de Estado escolar (entre outros) para permitir ao proletariado soviético, que havia tomado o poder de Estado, de simplesmente assegurar o futuro da ditadura do proletariado, e a passagem ao socialismo.
A esse propósito, Althusser indica que, “num texto patético, datado de 1937, Kroupskhaïa contou a história dos esforços desesperados de Lênin, e do que ela considerava como o seu fracasso (‘O caminho percorrido’)”.
Acho que fica claro que ─ se a “guerra de movimento” foi a forma predominante de desenvolvimento da luta revolucionária pela tomada do poder na Rússia de 1917 ─, a longo prazo, a luta para revolucionar o Estado e a sociedade russa não poderia prescindir da “guerra de posição”; e Lênin estava consciente disso, segundo o testemunho de Kroupskhaïa.
Pode-se afirmar, sem medo de erro, que a “guerra de movimento” foi a forma principal, predominante, mas não exclusiva, e que ela foi desenvolvida em combinação com formas de “guerra de posição”, mesmo no “Oriente” canônico.
No texto gramsciano tampouco encontra acolhida a interpretação da “guerra de posição” como forma exclusiva de travar a luta política no “Ocidente”. Para começar, ao traçar a analogia da luta política com a guerra militar, Gramsci ─ ademais de advertir que “a luta política é enormemente mais complexa” ─ reconhece “três formas de guerra”, e não duas: “de movimento, de posição e de guerra subterrânea”. E ainda uma quarta forma, o “arditismo”.
Gramsci exemplifica com a Índia de Gandhi:
A resistência passiva de Gandhi é uma guerra de posição, que se torna guerra de movimento em certos momentos e, em outros, guerra subterrânea: o boicote é uma guerra de posição, as greves são uma guerra de movimento, a preparação clandestina de armas e de elementos de combate destinados aos ataques é uma guerra subterrânea. Há uma forma de ‘arditismo’, mas que é empregada com muita ponderação.
Por outra, não esqueçamos que Gramsci apoiou os “arditi del popolo”, criados no verão italiano de 1921 para enfrentar a violência das hordas fascistas, embora enxergasse na transformação da “ação voluntária” em “luta de massas” a via eficaz para derrotar o fascismo.
Teço estas considerações com o fito de dissidiar em relação a certas linhas de raciocínio que se apoiam no conceito gramsciano de “guerra de posição” para pensar o desenrolar da luta política como um processo gradual e regular de ocupação de espaços nos aparelhos de Estado ─ principalmente nos ideológicos, mas também no burocrático-militar ─ e na sociedade civil (entendida aqui prevalentemente como instâncias econômico-corporativas). A meu ver, nada mais distante da teoria política gramsciana, que é uma teoria dialética (não evolucionária) da luta de classes e não faz pouco caso das crises. Ao contrário, a teoria política gramsciana aponta para as tarefas que devem ser cumpridas para que as crises configurem conjunturas revolucionárias e não contrarrevolucionárias.
A primeira lição gramsciana é a que rompe com o economicismo e descarta que a crise econômica se transforme automaticamente em crise de hegemonia:
Pode-se excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam acontecimentos fundamentais; elas podem criar apenas um terreno mais favorável à difusão de certos modos de pensar, de colocar e resolver as questões que envolvem todo o desenvolvimento ulterior da vida do Estado.
A transformação da crise econômica em política “é essencialmente um processo que tem por atores os homens e a vontade e a capacidade dos homens”. Se as forças revolucionárias permanecem inoperantes, o mais certo é que “a velha sociedade resiste e se dá o tempo de ‘respirar’, exterminando fisicamente a elite adversária e aterrorizando as massas de reserva”.
A segunda lição é a que alerta para a necessidade de se estar preparado para o surgimento do que se poderia chamar de conjuntura favorável:
O elemento decisivo de toda situação é a força organizada permanentemente e preparada desde muito tempo, e que se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é favorável (e ela só é favorável na medida em que uma tal força exista e esteja plena de ardor combativo); assim a tarefa essencial é a de se dedicar sistemática e pacientemente a formar, desenvolver, tornar sempre mais homogênea, compacta, consciente de si mesma esta força.
Como se vê, não procede a crença de que o pensamento gramsciano passe ao largo das crises e aponte para uma evolução contínua, sem rupturas e sem passagens da “guerra de posição” à “guerra de movimento” na luta política.
Por último, fica a advertência gramsciana de que a aplicação do conceito de “Ocidente” exige um “acurado reconhecimento de caráter nacional”. Para Gramsci, como para Lênin, marxismo é a “análise concreta da situação concreta”.