O aniversário de um século do PCB, Partido Comunista Brasileiro, é momento de comemoração da trajetória das lutas socialistas e revolucionárias no Brasil, bem como de reflexão sobre a crise que a esquerda brasileira vive hoje, colonizada em grande parte pelo lulismo e sua vã esperança de salvaguardar nosso capitalismo.
Muito do que presenciamos na atualidade, seja a rendição ideológica ao reformismo, seja o esforço em contrário de manter a combatividade da militância, carrega marcas da história pecebista.
Desde seu início heróico em 1922, ainda sob o oligarquismo liberal da República Velha, o PCB caminhou por entre tendências díspares ou mesmo opostas. A origem anarquista de membros da primeira geração comunista no Brasil por vezes garantiu que o partido fosse o condensador do melhor ativismo presente em nossa classe trabalhadora urbana das primeiras décadas do século passado. A Revolução Russa de 1917 carreava prestígio ao marxismo e ajudava a formar politicamente uma militância revolucionária no país. Por outro lado, o PC da então jovem União Soviética já se stalinizava, uniformizando via “bolchevização” os partidos comunistas mundo afora, o que ameaçava torná-los meros despachantes da política da Pátria do Socialismo – e a URSS não deixava de ser um Estado com seus interesses nacionais próprios. O internacionalismo proletário saía fragilizado deste processo. Em resposta a isso, a primeira geração trotskysta no Brasil surge no início dos anos 1930.
Nas primeiras décadas de existência, o PCB manifestou vertentes progressivas do socialismo brasileiro (o malcompreendido “obreirismo” referido às suas bases operárias, a resistência clandestina contra a sanguinária ditadura varguista, o “esquerdista” Manifesto de 1950), mas também suas perspectivas retrógradas: o “putchismo” por influência da esquerda militar, a conciliação de classes por imposição soviética em nome da luta mundial contra o nazifascismo, a moderação da Declaração de 1958).
O reformismo conciliador cresce no PCB à medida que o comunismo pecebista se aproxima cada vez mais do populismo e do nacional-desenvolvimentismo brasileiros. Luís Carlos Prestes podia assim apelar ao nosso operariado que apertasse os cintos e poupasse Vargas em nome do combate ao inimigo maior de então, o liberal-conservadorismo aliado do imperialismo estadunidense. O mesmo Vargas que entregara Olga Benário Prestes, a companheira da maior liderança política do partido em sua trajetória, ao regime hitlerista.
Condicionado pelos dogmas etapistas da III Internacional Comunista, o pecebismo passou a operar sob o pressuposto de que o desenvolvimento capitalista do Brasil e o nacionalismo trabalhista eram a antessala do socialismo. Por conseguinte, importantes intelectuais do partido e de nossa história, como Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães, interpretaram os dilemas brasileiros convergindo para o atalho reformista: a aposta na aliança com uma suposta burguesia nacional.
Tal orientação política era combatida por destacados intelectuais dissidentes no interior do PCB, que não temiam enfrentar a ortodoxia do marxismo soviético então dominante. Um dos pioneiros dessa linhagem foi Leôncio Basbaum, autor da monumental série História sincera da República e de Uma vida em seis tempos: memórias. O mais relevante de todos sem dúvida foi Caio Prado Jr., que combatia a tese do “feudalismo” brasileiro, demonstrando que o Brasil já era capitalista, e de uma maneira necessariamente diferente do que se dera na Europa.
Mas o reformismo pecebista em grande medida era restrito aos seus dirigentes. Muitas lideranças operárias e das bases do partido sempre mostraram combatividade nos movimentos sindicais e populares para além da acomodação com o populismo. É o caso de José Duarte, ferroviário e quadro histórico do partido (e depois do PCdoB) – veja-se sua bela biografia Um maquinista da história, de Luiz Momesso.
A insatisfação com os rumos democrático-burgueses da linha política do PCB nos imediatos pré e pós-golpe de 1964, assim como a perda do prestígio político-ideológico da União Soviética com a denúncia oficial dos crimes de Stálin, causaram uma maior pluralização da esquerda socialista e revolucionária no Brasil. Alguns insistiram no stalinismo, caso do PCdoB. Mas a maior parte da inflexão comunista no país deu-se à esquerda do PCB, da qual saíram muitas dissidências nos anos 1960/70. Surgia uma nova geração militante, impactada por outros fatores sociopolíticos (a Revolução Cubana, o Maio de 68, a Revolução Cultural na China, mudanças comportamentais, a luta armada contra a ditadura, a reconstrução do chamado trabalho de base, o novo sindicalismo, os novos movimentos sociais). Caio Prado Jr. e sua crítica ao PCB (em A Revolução Brasileira) eram então mais influentes que nunca. Mario Pedrosa e o trotskysmo brasileiro eram resgatados e refortalecidos. Surgia o PT, com a contribuição de quadros oriundos do pecebismo. Posteriormente, alguns deles também estarão presentes na fundação do PSOL, por ocasião da conversão do petismo em lulismo, já no início do atual século.
Até a década de 80, o PCB compunha o setor mais atrasado do campo sindical-popular brasileiro, aliado aos descendentes do sindicalismo amarelo, os pelegos. Após a queda do Muro de Berlim, o comunismo ortodoxo brasileiro se esvai, configurando o PPS (hoje Cidadania), de inspiração eurocomunista mas aderente ao liberalismo, negando assim sua história. Com a reconstituição do PCB nos anos 1990, o veio histórico classista é retomado: sua militância volta a desenvolver uma prática combativa. Diferentemente do PCdoB, que se tornou um apêndice do PT (há tempos convertido à velha tradição populista/desenvolvimentista contra a qual nasceu), o PCB evita o reformismo e conforma o campo da esquerda brasileira do séc. XXI, junto com a esquerda do PSOL, o PSTU e a UP. Ainda que possua bases proletárias restritas (concentradas em setores mais escolarizados da classe trabalhadora) e certa influência intelectual/acadêmica, o PCB expressa bem nossos desafios enquanto revolucionários.
Entre estes desafios, estão compreender o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo brasileiro – que articula liberalismo de mercado e nacionalismo estatólatra – e nele intervir no sentido da transformação socialista. Um desafio pecebista em particular é superar o modismo stalinista/losurdista contemporâneo – incongruente com a origem eurocomunista de quadros mais antigos do partido. O desafio de todos nós é retomar o caminho da luta revolucionária de classes, marcada por 1922, que não pode ser confundida com a defesa do Estado, pois o comunismo implica sua dissolução e a criação de novas relações sociais de produção, emancipando-se enfim trabalhadoras e trabalhadores do metabolismo societário do mercado e do autoritarismo estatal, duas facetas do sistema capitalista integradas dialeticamente.