Otimismo e pessimismo. Vontade e razão.

Foto: Silene Andrade

Na segunda-feira, dia 9 de agosto de 2021, o IPCC publicou o relatório do Grupo de Trabalho 1, que integra a elaboração do sexto Relatório de Avaliação (AR6) do painel, a ser finalizado em 2022. Como tem acontecido ao menos desde o Relatório Especial (SR1.5) Aquecimento Global de 1,5oC, de 2018, o tom geral do documento é de alarme e urgência. 

De modo geral, a imprensa repercutiu este relatório mais recente como se o prognóstico de crise climática tivesse aparecido apenas agora em uma das publicações do IPCC, o que não é verdade. A rigor, contrastando os diversos relatórios, vemos, de fato, um agravamento do senso de urgência. No entanto, por um lado, um conjunto bastante grave de riscos iminentes já aparece muito claramente desde pelo menos o quinto Relatório de Avaliação (AR5), de 2014. E, por outro lado, não deve surpreender que o nível de alarme venha aumentando, já que o tempo vem passando e não fomos capazes de dar sequer pequenos passos na direção correta.

É fácil entender porque a cobertura da grande imprensa tem que ser povoada de distorções, com exageros sobre questões menores e silêncios ou amenizações sobre questões decisivas. Com um mínimo de clareza a respeito dos processos naturais em curso, de nossa interferência neles, dos riscos que enfrentamos e do que precisaríamos fazer para mitigar os riscos mais impactantes, ficaria excessivamente evidente o quanto a sociedade capitalista é crônica e estruturalmente incompatível com as direções que temos que tomar, na velocidade que temos tomar. Ficaria excessivamente evidente, para dizer de outro modo, que um processo revolucionário é incontornável, caso pretendamos evitar colapsos catastróficos. Não é aconselhável criar expectativas de que a grande imprensa revele de maneira tão despudorada a raiz do problema. Parafraseando Guimarães Rosa, poderíamos dizer que a grande imprensa não distorce por (pura) safadeza, mas por precisão.

Embora essa seja uma questão relevante, nem é dela que quero tratar diretamente. O fato é que, mesmo com a cobertura mal-ajambrada da imprensa, relatórios como esse costumam reacender em nosso meio o sentimento revolucionário (que infelizmente jaz inerte por tempos prolongados). Não tarda muito e o velho adágio normalmente atribuído a Gramsci volta a figurar na boca de muitos de nós: pessimismo da razão, otimismo da vontade. Outros comunistas famosos, como Mariátegui,1 por exemplo, enunciaram fórmulas semelhantes. E a fórmula é claramente interessante, podendo funcionar como uma espécie de antídoto a formas diversas de fatalismo. Ela nos diz que, mesmo diante de prognósticos dificílimos, que devem ser reconhecidos pela razão, sempre deve ser preservado o ímpeto de luta, impulsionado pela crença na vitória. Ao mesmo tempo em que a fórmula admite essa interpretação que nos lança com energia à luta, ela admite também outra leitura, que também é bastante corrente e que nos lança à procrastinação, com pitadas de negacionismo. 

Nessa segunda leitura, começa-se admitindo que a revolução é possível, necessária e desejável, apenas para em seguida remetê-la a um futuro indeterminado, já que não haveria sinais imediatos das condições necessárias para desatar um processo revolucionário. Ao reconhecimento da urgência de realizar algo que sequer se insinua no horizonte atribui-se o termo “pessimismo da razão”. Já que não podemos fazer a revolução hoje, como juramos que gostaríamos, façamos o que é possível. E assim nos lançamos à luta por pequenos avanços, pressionando as instituições por melhores políticas públicas. Sugere-se, não sem algum constrangimento, que isso seria o “otimismo da vontade”.

Tal como no comentário que fiz a respeito da imprensa, posturas como essa não chegam a surpreender. Basta lembrarmos, por exemplo, do comentário que Marx faz em seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: “exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado”. Traduzindo para a nossa discussão, é compreensível que, num momento tão agudo da história humana, recorramos àquilo que já está posto, que parece oferecer possibilidades palpáveis de avanço, mesmo que minúsculos e insuficientes. Todos nós estamos sujeitos a essa armadilha. É compreensível, mas não pode ser aceitável.

A vontade e a razão são dois aspectos indissociáveis da nossa subjetividade. Conforme Lukács nos ensina, nossa espécie apresenta a capacidade distintiva de perceber no mundo, tal como ele se apresenta a nós, possibilidades ainda não realizadas. Nesse registro, a realidade não se resume ao que já é. A realidade também é composta pelo que pode ser, mas ainda não é. Logo de cara, duas coisas precisam ser destacadas. Primeiro, esse excesso de possibilidades que ainda podem (ou não) ser realizadas não significa que qualquer coisa que a nossa vontade seja capaz de enunciar seja possível. Há vontades que se dirigem ao impossível. E, nesse sentido, não vale o outro famoso adágio de que “sem saber que era impossível, foram lá e fizeram”. Se fizeram, não era impossível. Ou, se era mesmo impossível, certamente não fizeram. Segundo, é nossa vontade/necessidade que nos guia em nossa busca por transformar uma mera possibilidade em realidade efetiva.

Mas de tudo que foi dito no parágrafo anterior, a simples vontade/necessidade é patentemente insuficiente. Não basta querer, é preciso que a vontade seja realizável. E não basta ser realizável, é preciso ser realizada. Nos dois casos, a razão não comparece como algo à parte da vontade. A razão comparece a serviço da vontade. É a razão que nos habilita a distinguir possibilidades reais das possibilidades ilusórias. E é a razão que nos habilita a selecionar os meios adequados para a efetivação das possibilidades reais. Nesse sentido, pouco importa se a razão é pessimista ou otimista. Pouco importa se a vontade é otimista ou pessimista. Tanto num caso quanto no outro, a vontade deve estar ancorada na realidade e só por meio da razão a vontade pode imprimir-se concretamente no mundo. 

Chamo a atenção para essas questões porque as vontades irrealizáveis povoam as lutas ambientais. Até mesmo quando essas lutas rebaixam suas pretensões a vontades modestas, com chances aparentemente mais palpáveis e obteníveis em prazos curtos. Já abordei teoricamente essa limitação em outro trabalho,2 mas para os fins desta coluna talvez seja suficiente afirmar que a marcha expansionista e destrutiva do capital é sempre mais rápida que nossos pequenos sucessos pulverizados e fugazes.

Uma forte evidência disso é que até hoje não fomos capazes de obter reduções sustentadas no nível de emissões globais de gases de efeito estufa. Apenas em pouquíssimas oportunidades, associadas a momentos de crise econômica, a humanidade obteve tímidas e isoladas reduções em suas emissões. Esse persistente fracasso não é explicado por uma ausência de políticas públicas ou por ausência de luta. Ao contrário, houve muita luta e muita política climática, especialmente desde os anos 1990. O persistente fracasso é mais bem explicado por um limite intransponível dessa via. 

Coloquemos os termos do problema de maneira simples. O IPCC nos informa que precisamos reduzir nossas emissões dramaticamente num espaço curtíssimo de tempo. Deveríamos alcançar emissões líquidas nulas ou negativas antes de 2050 se quisermos ter alguma chance de limitar o aquecimento do planeta a 1,5oC. Para obter esse resultado, não há alternativa a não ser descarbonizar nosso modo de vida de maneira profunda e abrupta. Para obter esse resultado, não há alternativa a não ser abolir a economia baseada em combustíveis fósseis, o que, para todos os efeitos, implica virtualmente abolir todo o setor de petróleo, gás e carvão. Isso apenas para dizer o mínimo, pois uma reconfiguração como essa sacudiria todo o setor de mineração, o setor financeiro, o agronegócio, as indústrias pesadas etc. 
Alguém acha mesmo factível obter resultados como esses com políticas públicas, apresentadas e aprovadas em parlamentos, e implementadas e executadas por governos? Não estaríamos com isso esperando uma autoabolição do capitalismo no parlamento? A luta por políticas públicas para obter esses resultados pode estar animada pela mais otimista das vontades, mas a razão não está ao seu lado. Trata-se de uma vontade irrealizável. É como querer chegar à lua de asa delta. Não importa quanto vento joguemos nas asas ou quão elevado seja o morro do qual saltamos. De asa delta, não chegamos na lua. Para isso, precisamos de cosmonautas.

Referências

  1.   Que, citando José Vasconcelos, escreve, em 1923: “pessimismo da realidade e otimismo do ideal”.
  2. Cf.: https://www.academia.edu/45582380/Mudan%C3%A7as_clim%C3%A1ticas_e_a_tarefa_dos_ecossocialistas_pelo_abandono_do_voluntarismo_geol%C3%B3gico

Eduardo Sá Barreto

Professor de Economia, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro "O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas"

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