Pintura de Beesan Arafat
Enquanto escrevo estas linhas, correm as 24 horas de prazo que o Estado de Israel deu para os palestinos abandonarem o norte de Gaza. Teme-se uma ratoeira, já que há ameaças de bombardeios no percurso para o sul. Para onde fugir? Como? Isso não importa a Netanyahu. O aviso é pró-forma. São um pouco mais de 2 milhões de habitantes apertados em 365 km2 e separados da Cisjordânia, a outra “parte” da Palestina, de 5.800 km2, com mais de 3 milhões de habitantes, dos quais quase um terço é constituído por refugiados. Há pouco menos de 1 milhão de palestinos nas cidades de Jerusalém, Tel Aviv e Haifa. E 6 milhões de refugiados apenas nos países árabes da região. Não vou aqui repetir a história da Nakba, da brutal expulsão dos palestinos de seus territórios, quando foi fundado o Estado de Israel e seu exército, sob proteção da ocupação britânica em retirada. Nem da segunda grande onda de expulsão, em 1967. Tampouco vou me estender sobre o contínuo desrespeito às fronteiras acordadas pelo Estado de Israel, que viola todos os acordos assinados.
Quero hoje sugerir um filme feito por palestinos comuns do povoado de Bil’in, na Cisjordânia, próximo à cidade de Ramallah. As imagens foram filmadas por Emad Burnat, um jovem pai que, em 2005, comprou uma câmera caseira com o intuito de documentar o crescimento de seu filho Gibreel. A família de Emad, assim como a maioria das famílias de Bil’in, dedica-se ao cultivo de azeitonas. Por seus olhos, vemos o dia a dia do povoado, de 2005 a 2012. Durante esse período, uma colônia israelense foi instalada e a cerca avançava sobre a área das oliveiras palestinas. Sem ser esta a pretensão inicial, o jovem pai, que documentava os aniversários e o futebol, começou a registrar também a luta dos vizinhos para recuperar suas terras, base de sua subsistência. E, de passagem, as assembleias de vizinhos, as manifestações que fazem uma vez por semana vestindo a melhor roupa e da qual participam todos os membros das famílias. Vemos as invectivas astutas para evitar o despejo, as idas ao barbeiro e as conversas dentro de casa. O confronto com os soldados que deixa vizinhos mortos e seu funeral, ao qual Emad concorre com Gibreel. Mas esses vizinhos assassinados não são uma imagem pontual num momento de desespero, como costumamos ver nas notícias de televisão. Já os conhecemos, sabemos de seus nomes, de seus parentes, de suas manhas, de seus sorrisos, de suas formas de ser.
Gibreel e um caro vizinho, que depois foi assassinado por soldados no meio de uma das manifestações em Bil’in
Mas, como assim? As organizações políticas não aparecem, a Autoridade Palestina? Sim, aparecem, quando os vizinhos tomam suas decisões e, simplesmente, querem apoio político a suas ações. Tanto os fundamentalistas como o governo da Cisjordânia são tratados com distância. Afinal, eles têm suas próprias finalidades, que nem sempre coincidem com as necessidades das gentes de Bil’in, nem dos povoados vizinhos que enfrentam as mesmas situações. O Estado de Israel vem construindo um muro na Cisjordânia que não se localiza na fronteira, mas sim penetra em território palestino, traçando uma espécie de labirinto, para confinar povoados e impedir sua mobilidade em sua própria terra. Ao mesmo tempo, implanta assentamentos de colonos israelenses, que praticam violências contra a população local. A essas entradas, a Autoridade Palestina vem fazendo vista grossa.
Também vemos voluntários de diversas nacionalidades, incluindo judeus, que acompanham os palestinos de Bil’in e, com seus corpos, fazem barreiras diante dos soldados, defendendo os vizinhos do povoado.
Emad Burnat liga sua câmera em situações diversas. E não a desliga durante as manifestações. Perdeu a primeira em meio à repressão. E se virou para comprar outra e outra… Foi preso pelos israelenses, mas Emad é teimoso. Por isso o filme se chama Cinco câmeras quebradas. Guy Davidi, um desses israelenses que apoiam a luta dos palestinos por sua terra, ajudou o diretor-protagonista a editar o material. Podemos supor que manipulou a câmera em algumas ocasiões, posicionando a câmera em lugares de filmagem em que os palestinos não conseguiriam chegar. Também vizinhos e parentes devem ter ajudado em algumas ocasiões, quando Emad aparece na imagem.
Emad Burnat e suas 5 câmeras quebradas
Desde 7 de outubro vêm proliferando textos explicativos, com a história da Palestina, do povo judeu, do sionismo, dos interesses econômicos e geopolíticos na região. Todo esse material ajuda a entender a trama causal de tanta brutalidade. Outros textos ensaiam possibilidades, soluções para a paz e a justiça na região. Creio que nada duradouro pode ser imaginado sem o povo da terra como protagonista, e este filme mostra esse povo de corpo inteiro.
Direção: Emad Burnat, Guy Davidi
Com Emad Burnat, Soraya Burnat, Gibreel Burnat, Muhammad Burnat, Bassem Abu-Rahma, Adeeb Abu-Rahma, Ashraf Abu-Rahma, Intisar Burnat
Cinematografia: Emad Burnat
Duração: 90 minutos
Palestina / França / Israel, 2012