Pantanal e as encruzilhadas do Brasil

Por Silvia Beatriz Adoue e Márcia Malcher

Novela da Globo forjou um “agro” consciente e sustentável, reencenando consenso modernizador entre direita e esquerda. Analisar a trama ajuda a entender os desafios pós-eleitorais num país onde a reprimarização é vendida como “pop”.

O sucesso de público

Produzida pela TV Globo e lançada em 28 de março de 2022, a novela Pantanal foi um sucesso de público se considerarmos o aumento da competitividade no mercado televisivo por conta da concorrência com as plataformas de streaming. Embora não tenha alcançado os 41,5 pontos de audiência atingidos por Avenida Brasil (2012) no mercado nacional, pois ficou na média dos 30 pontos (afinal, os tempos são outros), tornou-se um fenômeno midiático e ganhou destaque em toda a programação da emissora. Dirigida por Walter Carvalho, Davi Lacerda, Fábio Strazzer, Roberta Richard, Cristiano Marques e Noa Bressane, o roteiro original de Benedito Ruy Barbosa, da lembrada versão transmitida pela “falecida” Rede Manchete em 1990, foi adaptado por seu neto, Bruno Luperi, na confecção da nova versão. Assim como a telenovela Velho Chico, roteirizada também por Benedito Ruy Barbosa, Bruno Luperi e Edmara Barbosa, que esteve no ar de março a setembro de 2016 em horário nobre da TV Globo, Pantanal integrou diversos discursos sobre a questão agrária e sua história no Brasil.

Pode parecer surpreendente que apesar de filmada em um tempo lento e cadenciado, já que inspirada no ritmo da natureza pantaneira, a novela tenha capturado a atenção de tantos brasileiros. Mas, ao que parece, como mostrou um programa exclusivo sobre a novela realizado pelo Globo Repórter (23/09/22), a recepção não acompanhou essa velocidade que, na verdade, foi acelerada pelas redes sociais, pelos memes, grupos de WhatsApp, etc. O fato é que o ritmo cadenciado da narrativa conjugado a uma fotografia dramática de cor quente, a qual se valeu abundantemente da alternância entre a câmera na mão muito próxima aos atores (em closes e big closes) e imagens aéreas em grandes angulares da paisagem (com frequente uso de drones), não só conferiu grandiloquência a inúmeras falas e ações cotidianas das personagens, mas também fez o mesmo, por empréstimo, aos diversos merchandisings de produtos inseridos na trama. E não foram poucos: de aplicativo de meditação, passando por cosméticos até refrigerante e cerveja.

A aposta da Globo se mostrou acertada, Pantanal gerou receita. Mas bem sabemos que uma novela, não sendo um produto palpável, apenas tem êxito quando manufatura um imaginário capaz de mobilizar milhares de pessoas a assisti-la. Assim, o sucesso não é, com toda certeza, fruto do acaso, mas tem a ver com a matéria desse imaginário e com a “hora e o lugar” que ele figura, catalisa, interpela e responde. Exibida em uma perigosa quadra histórica para o Brasil na qual a ofensiva neoliberal da demolição, da destruição, da depredação e da violência contra a vida passou a ser encampada pela extrema direita bolsonarista, acreditamos que ela indica um intercurso de mudança nos marcos da continuidade que agora será posto em prática com o novo arranjo político-parlamentar eleito.

Pantanal restaura o insustentável consenso que une, desde há muito, a direita e a maioria da esquerda brasileira. Considerando que esse movimento central é feito por meio de um complexo enredo, que joga com sentidos diversos e muitas vezes contraditórios, integrando-os e orientando-os para uma solução, optamos por nos ater ao conjunto em vez de focar neste ou naquele aspecto. Mas antes, faz-se necessário apresentar o mapa do enredo da trama.

O enredo

A telenovela narra a saga familiar dos Leôncio no Pantanal sul-mato-grossense. O peão de boiadeiro Joventino, mineiro de nascimento, instalou-se na região quando a terra não estava tão valorizada e enriqueceu sua fazenda com a captura de gado selvagem, conhecido na região como marruá, alongado (porque se perderam da manada) ou baguá. Joventino também se perde indo atrás de um boi alongado e seu filho, José Leôncio, fica para tocar a fazenda. Como o cadáver do peão perdido não é encontrado, há a permanente suspeita de que o velho Joventino se encantou. Seu espírito, o Velho do Rio (Osmar Prado), percorre o Pantanal e vira sucuri para guardar o equilíbrio do território.

José Leôncio (Marcos Palmeira), órfão de mãe, cuja vida sexual foi iniciada nas currutelas, nos descansos das comitivas junto ao pai e seus companheiros, apaixona-se por Madeleine (Bruna Lizmeyer/Karine Teles), uma moça de família rentista em decadência, durante uma viagem que faz ao Rio de Janeiro para resolver questões da fazenda. Os dois casam, passam a viver no pantanal e têm um filho ao qual chamam Joventino (Jesuíta Barbosa), ou melhor, Jove, para diferenciá-lo do avô. Mas a jovem mãe não suporta a vida “bárbara” na fazenda afastada do mundo urbano e foge com a criança para perto dos seus pais. Entretanto, a rejeição das relações “bárbaras” não é empecilho para que Madelaine e sua família sejam sustentados pela pensão que o já próspero José Leôncio deposita religiosamente. Já Filó (Dira Paes), que José Leôncio conheceu numa currutela e se tornou empregada da fazenda, diz que seu filho Tadeu (Gustavo Corasini/José Loreto) é também filho do patrão. É com ela que José Leôncio passou a viver após a separação de Madeleine, sem que a mesma deixasse de ser empregada da sede. 

Numa trama paralela, Maria (Juliana Paes) e Gil (Enrique Díaz), casal de pequenos agricultores de Sarandi, do estado do Paraná, após perderem seus filhos em conflito com grileiros e proprietários, terminam fugindo e passam a viver isolados, como posseiros, nas terras de José Leôncio, onde criam uma filha, Juma (Alanis Guillen). Perseguidos em um plano de vingança, o casal é assassinado, o que torna a garota órfã. Ela, como sua mãe, também vira onça quando está com “reiva”.

Numa terceira trama, Tenório (Murilo Benício), o grileiro de Sarandi, transformado em grande especulador de terras em decadência, adquire uma fazenda vizinha à de José Leôncio. Ali mora com sua esposa Maria (Isabel Teixeira), a quem chama de “bruaca”, e com a filha Guta (Julia Dalavia). Tem, porém, uma segunda família em São Paulo com Zuleica (Aline Borges), uma enfermeira com três filhos. Guta descobre a existência da outra família ao ter uma aproximação com Marcelo (Lucas Leto), um dos três filhos de Zuleica. 

Uma série de subtramas conectam esses núcleos dramáticos. Jove vai conhecer o pai e se apaixona por Juma. Rute (Bella Campos), a filha de um proprietário morto pelo pai da Juma, decide se vingar de Juma mas termina amiga da filha do assassino do seu pai, empregada da fazenda de José Leôncio e casada com o peão Tibério (Diogo Brito). Trindade (Gabriel Sater), um peão que se tornou virtuoso da viola após um pacto com o diabo, apaixona-se pela cunhada do patrão, Irma (Camila Morgado). José Lucas de Nada (Irandhir Santos), um caminhoneiro que foi roubado, termina chegando à fazenda e descobrindo que é o filho primogênito do dono da fazenda com Generosa, a prostituta que iniciou José Leôncio numa currutela.

O “agro” no centro do palco

O conflito entre proprietários e trabalhadores aparece nos confrontos entre grileiros e posseiros (ou pequenos proprietários) no Paraná. Também se insinuam tensões entre boias-frias e gatos, numa estrutura fundiária dominada pelo velho latifúndio. Mas todas essas contradições estão no passado dentro dos entremeados do relato.

As tensões no tempo atual são as desatadas entre o velho latifúndio improdutivo (Tenório), que especula com a propriedade da terra, e o agronegócio produtivo (Leôncio), também aparecendo um conflito entre a administração do agronegócio “consciente” e a que ignora a “agricultura sustentável”, guiando-se pelo critério do lucro imediato. A personificação dos critérios da máxima lucratividade é conferida ao diretor executivo das empresas, ao CEO, e não a José Leôncio, proprietário que se divide entre a gestão do administrador e as aspirações de seu filho Joventino, que inicia o processo de aplicação de técnicas agroecológicas em larga escala nas fazendas da família.

Na contraface de uma industrialização que “era ainda construção e já é ruína”1, a novela figura não só a permanência mas o reavivamento do “agro”, buscando atualizar o discurso da defesa do meio ambiente já feito pela primeira versão escrita por Benedito Ruy Barbosa. É sabido que o processo de desindustrialização, em curso desde a década de 1980, acirrou-se nos últimos anos, não faltando economistas a atribuir esse declínio ao aumento da competitividade do mercado internacional e a clamar para que o Estado promova “reformas”, ou melhor, aumente a austeridade, a perda de direitos, para “atrair novos investimentos e criar um cenário de estabilidade econômica, já que ninguém gosta de trabalhar com incertezas”2. Em contrapartida, esses mesmos economistas dizem que “o agro brasileiro se preparou para concorrer no mercado externo e o setor industrial, não”3(3).

Na verdade, o agronegócio, mais especificamente as commodities de soja, milho, carnes (bovina, suína e aves), açúcar-álcool, celulose e café, foi eleito o carro-chefe, desde os anos 2000, para compensar as perdas ocasionadas pelas crises e gerar saldo no comércio exterior. Beneficiada pela demanda, especialmente do mercado chinês, e pela cotação dos preços no mercado externo, a exportação dessas commodities cresceu significativamente nos últimos 20 anos. Crescimento esse que foi regido por um número restrito de empresas globais com infraestrutura financeira e especulativa própria, as quais controlam toda a cadeia, da produção à distribuição, também intervindo nas flutuações financeiras das mercadorias, já que as commodities se tornaram um ativo financeiro. Isso significa que “a variação dos preços dos alimentos está, praticamente, dissociada tanto de sua produção, quanto de sua oferta”4.

A famosa publicidade que diz “o agro é pop, o agro é tudo” é, portanto, uma grande falácia. Tratam-se, na verdade, de monoculturas e pecuária em escala, e de um número reduzido de commodities essencialmente dependentes da hegemonia dessas transnacionais e de sua lógica de especulação privada. Atualiza-se o velho extrativismo colonial, agora supereficiente e baseado no uso de tecnologia avançada. Essa configuração deixa um rastro indelével de destruição social e ambiental, pois promove a depredação dos biomas, o saque dos territórios das comunidades e povos originários, o aumento das queimadas, o desmatamento, a superexploração do trabalho, a concentração fundiária e avança sobre áreas de proteção ambiental, expulsando seus guardiões. Tudo isso explicitamente referendado pelo Estado que, durante o governo Bolsonaro, articulou catastroficamente, como afirma Michel Lowy, a lógica ecocida e a necropolítica.5

A riqueza socioambiental ausente

O bioma pantaneiro, que tem um regime de muita chuva de outubro a março alternado com seca no resto dos meses, abrange uns 250 mil quilômetros quadrados em área de território boliviano, paraguaio e brasileiro, dos quais mais de 60% está situado no Brasil, estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O solo arenoso e argiloso e o relevo bastante plano propiciam o desborde da bacia hidrográfica e o alagamento no período chuvoso, bem como o depósito de nutrientes que alimentam uma vegetação característica, em transição entre o cerrado, a floresta amazônica, a mata atlântica e o chaco.

A vegetação das áreas mais baixas, inundáveis, diferencia-se bastante das áreas mais altas, nas quais predominam palmeiras e buritis como árvores de grande porte. Esse ambiente é habitat de uma fauna anfíbia que marca a cadeia alimentar pantaneira, com uma variedade enorme de espécies próprias da região. Esse bioma é sobretudo ameaçado pelo desmatamento para pastagens e monocultivo, em particular de soja. A futura instalação de uma megaplanta de processamento de celulose pela Forestal Arauco com demanda para um grande volume de eucalipto traz maus presságios para o território pantaneiro, ao passo que as queimadas, cada vez mais frequentes e abrangentes, visam acelerar a integração das áreas ao mercado de terras para uso flexível.

Além disso, há indícios de povoamento humano na região datados em aproximadamente 8 mil anos atrás. Pinturas rupestres com formas geométricas e fragmentos de artefatos permitem reconstruir algo das organizações societárias do passado distante: aterros, conchas, contas de colar, cachimbos, restos de fogueiras, sementes fossilizadas, cerâmicas, pontas líticas, canoas. Estas últimas, de um pau só, mediam entre 5 e 6 metros de comprimento. Feitas de madeira de piúva, ximbuva, cambará ou guatambu, ficam submersas a um palmo da superfície e seu casco oval facilita o deslizamento, sendo que as da madeira de piúva podem durar mais de vinte anos. Elas foram associadas aos Guató, conhecidos como “índios canoeiros” que, junto com os Paiaguá e Guaicurú parecem ser remanescentes dos grupos que ali se assentaram faz mais de 5 mil anos. Os Terena e Kadiwéu seriam descendentes dos Guaicurú. Os Xarayes, também contatados pelos primeiros colonizadores, tinham intercâmbios com o Tawantinsuyo e usavam túnicas de algodão e enfeites de prata. Mas a configuração de povos encontrada pelos espanhóis, primeiros a chegar na região já no século XVI, foi formada no primeiro milênio da nossa era e estava composta por grupos Macro-Jê, Tupi e Aruak.

As expedições espanholas à procura de prata passaram a atravessar o pantanal, remontando o rio Paraná. A região aparece nas crônicas de Ulrico Schmidl e nas das entradas de Alvar Núñez Cabeza de Vaca, por exemplo. Os espanhóis fundaram Santiago de Xerez, em 1580, junto ao rio Miranda no que hoje é o Mato Grosso do Sul. Foi ali onde, após sua destruição pelos ataques dos povos da região, os jesuítas instalaram uma missão, a qual foi expulsa pelas Moções Paulistas enviadas pela Coroa Portuguesa em 1647. Mas a ocupação portuguesa só foi desencadeada com a descoberta de ouro e a fundação da cidade de Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá, em 1719, para onde foram levados africanos escravizados. Muitos deles, fugindo da escravidão, formaram quilombos que tinham uma economia em equilíbrio com o ambiente e uma organização societária própria.

Toda essa longa história retumba em silêncio no enredo da telenovela dada a completa ausência dos povos indígenas da região, os Kandiwéu e os Guató, assim como os Terena e os Kirikinau. Também não aparecem as quase 30 comunidades quilombolas da região. A personagem que encarna o espírito do território é o Velho do Rio, isto é, alguém que, em vida, foi fazendeiro e pecuarista, de modo que os vivos que podem levar esses princípios à concretude da prática econômica são seu filho e seus netos, além de Marcelo, filho do grileiro, que aprendeu princípios modernos da pecuária “sustentável” na universidade. 

Os trabalhadores rurais tampouco são os protagonistas, a não ser que se tornem proprietários por herança ou casamento. Os peões de vaqueiro que aparecem na telenovela praticam um ofício em extinção, com o ingresso da tecnologia não apenas na reprodução e no abate, mas também na própria lida. As comitivas, substituídas pelo caminhão e pelo parque industrial dos frigoríficos, mudam completamente a organização do setor. Para os peões de Pantanal, resta o saudosismo plasmado nas rodas de viola, e o berrante como uma espécie de som do passado.

Tempos fora de lugar

A pecuária na região teve início acompanhando a extração de ouro na baixada cuiabana, aproveitando as pastagens nativas das planícies pantaneiras. No entanto, foi depois do ciclo do ouro que a criação de gado se expandiu já adaptada às condições locais, dando origem ao chamado gado pantaneiro ou tucura, explorado como gado de corte para charque e couro, que era comercializado pelo eixo do rio Paraguai, aberto com o fim da Guerra da Tríplice Aliança, nas últimas décadas do século XIX.

No século XX, o gado em pé começou a ser levado em comitiva para engorda no Oeste Paulista e no Triângulo Mineiro. Paralelamente, a variedade nelore e zebuína foi sendo introduzida no pantanal. A expansão da pecuária, favorecida pela construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, constituiu um rebanho que chegou a representar 6% das cabeças de gado do país e 90% de Mato Grosso. Segundo a Embrapa,

A adoção de tecnologias no Pantanal ficou defasada devido ao isolamento da região, com deficiências em comunicação e transporte, além de limitações impostas pelas condições naturais (solos pobres e inundações). Os índices zootécnicos têm sido baixos com relação à natalidade (55%), desmama (45%), intervalo entre partos (22 meses) e idade à 1ª cria (3,5 a 4 anos). Apesar desses problemas e de sucessivas crises de mercado e de crédito, o sistema produtivo se manteve com dominante vocação para produção de bezerros6.

O desenvolvimento de tecnologias já em curso em outras regiões está sendo levado também para o pantanal, o que vem sendo favorecido pela construção de um parque industrial do setor frigorífico nas proximidades, de otimização e integração à cadeia da commodity. Também a seleção genética e o controle do processo reprodutivo está cada vez mais tecnologizado, além de que as técnicas de ponta penetram em segmentos como a lida com o gado, a exemplo da vigilância aérea, do uso de drones, quadriciclos e do “reconhecimento facial” das reses (que substitui a marcação). Todas essas práticas reduzem a força de trabalho fixa empregada e exigem outro tipo de formação para um número enxuto de trabalhadores. O seu perfil já não é determinado pelo critério da força e destreza física, pela coragem e pelo conhecimento empírico.

A integração de um território com características tão específicas ao uso flexível pelas cadeias de commodities exige o protagonismo do Estado para desregular os marcos instituídos, não apenas ambientais e trabalhistas, mas também os que se referem a investimentos e imposições. Esse ano, por exemplo, foi sancionada pelo governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, mudanças na chamada Lei do Pantanal (Lei nº 8.830/2008) que, dentre outras medidas, passou a permitir a pecuária extensiva em áreas de preservação permanente (APPs) e a conversão de até 40% da área de propriedades rurais para o plantio de pastagem exótica (alimento para gado)7. Tendo o agronegócio se tornado tão poderoso no país, não surpreende o esforço acirrado para legitimá-lo socialmente nas tramas que perpassam o Estado e para além dele.

Ao ritmo acelerado da crise ambiental e do aquecimento global que tornam cada vez mais difícil defender um modelo de acumulação que transforma tudo (a terra, o ar, os animais, os seres humanos e as plantas) em mercadoria, o capital global responde com o estímulo a uma reestruturação produtiva e a uma nova rodada de consumo “ambientalmente consciente”. Trata-se de um reformismo interno ao sistema com o objetivo de preservar o mesmo modelo econômico de geração de lucro e o mesmo modo de vida, só que agora embalados pelo slogan “verde” para confortar consciências. Mas claro, essa necessidade abre margens para contradições, as quais adquirem cores dramáticas na realidade brasileira.

Dramáticas como a fotografia de Pantanal porque aqui as ideologias plasmadas nos países centrais “não se aplicam com propriedade e nem podem deixar de ser aplicadas […] giram em falso, ainda que sejam obrigatórias”8. Ao mesmo tempo em que a novela se filia a essa reestruturação e reformulação ideológica mais ampla assentada na coincidência histórica dos interesses da burguesia brasileira e do grande capital, também o faz valendo-se de um velho consenso que sustenta o nosso capitalismo dependente e continua hegemônico na imaginação política da direita e da esquerda: o de que é preciso modernizar e desenvolver o país para escapar do atraso.

Embora essa seja uma corrida impossível nos termos do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo que repõe o atraso como necessidade intrínseca, a visão de uma modernização sem contradições uniu e continua a unir a esquerda majoritária aos seus inimigos, inclusive no atual cenário político de terra arrasada. Esse pacto desigual entre visões políticas antagônicas, atado em diferentes momentos da nossa história, terminou por constituir uma oposição de esquerda cuja faca é desamolada e que, como disse Roberto Schwarz, especializou-se na inviabilidade do capitalismo e não nos caminhos da revolução9.

Ao primeiro sinal de crise, como testemunhamos no golpe de 2016, as classes dominantes não demoram a expulsar do cortejo a mesma esquerda a que dá a mão compartilhando do ideal modernizador. Hoje, mesmo com o escancaramento dos antagonismos diante do terror da extrema direita, persiste a frágil tentativa de reatar o pacto. Pantanal, sem dúvida, repõe esse projeto que, em termos de produção cultural, foi traduzido em variadas expressões estéticas ao longo da nossa história. Para tentar entender como a novela reencena esse arranjo, vamos primeiro aos personagens.

Personagens e eixos dramáticos

Algumas personagens parecem encarnar o espírito do território, pelo recurso à licantropia, como acontece de maneira radical com o Velho do Rio, o encantado que é também a sucuri; com Maria, também encantada, que ainda viva virava onça para se defender e defender a filha; com a própria Juma, que “vira onça” em sentido figurado, quando está com “reiva”; e, de forma mais metafórica, com Jove, que é comparado a um tuiuiu quando pilota a avioneta da fazenda, mas também pelo apreço que ele manifesta à liberdade. Para além das características de personalidade, essas metamorfoses, de registro pragmático realista maravilhoso ou simplesmente apresentadas como figuras de linguagem, contribuem para tornar o pantanal uma personagem, com capacidade de ação que faz avançar o enredo, mesmo que mediado por outras personagens.

A licantropia presente na fábula também permite integrar mitos dos povos da região, mesmo quando eles nem sequer aparecem como mediadores. A sucuri, ou a “Cobra Grande”, está presente nas cosmogonias dos povos amazônicos como figura geradora e protetora dos rios, com cuja forma se assemelha. Em todo o continente, a cobra aparece vinculada à fertilidade, aos ciclos lunares, ao feminino, ao impulso da geração da vida. Também os grandes felinos são, em diversos territórios de todo o continente, considerados guardiões das leis do equilíbrio, da abundância e da reciprocidade entre todos os seres que compartilham o território. Carnívoros, isto é, ponta da cadeia alimentar, realizam justiça quando se comete uma desmesura e as regras de reciprocidade não são respeitadas. Ainda que não apareçam personificadas no enredo, a cobra boca-de-sapo e as piranhas têm um papel semelhante.

O peão Trindade também está no plano do realismo maravilhoso, por momentos servindo de porta-voz ou “cavalo” do capeta, pelo complexo pacto que selou com essa entidade. De outra maneira, o chalaneiro Eugênio (Almir Sater), com seus silêncios, de maneira mais sutil, faz reflexões espirituais de quem enxerga para além, como uma entidade. A viagem de chalana é, de alguma maneira, uma viagem do tempo, entre o mundo moderno e um Pantanal que conserva muito do passado, suas sociabilidades em extinção e seus mitos. O tom é nostálgico, como nostálgicas são as músicas das rodas de viola, enquanto Trindade apresenta “novidades” da sua autoria. De fato, ambos os violeiros, interpretados por pai e filho, Almir e Gabriel Sater, carregam para as personagens a “persona” que construíram fora do set de televisão. São violeiros virtuosos e, assim como Marcos Palmeira, produtores rurais que impulsionam técnicas agrícolas sustentáveis. A propósito, tanto Almir Sater como Marcos Palmeira participaram da primeira versão da novela, interpretando Trindade e Tadeu, respectivamente, a partir da qual se interessaram pela produção sustentável na região.

As subtramas foram sustentadas pelas tensões na chave “personagem e seu contraditório”: no escritório de São Paulo, ao passo que o diretor executivo das empresas de José Leôncio defende o critério do máximo lucro no menor tempo e com menos custo e risco, a gerente modula os critérios, acolhendo em parte os argumentos de Jove em favor do agronegócio sustentável; no Rio de Janeiro, o psicanalista Gustavo (Gabriel Stauffer/ Caco Ciocler) discorda da sua namorada, a mãe de Jove, Madeleine, a propósito da vida fútil das redes sociais, o que é resolvido na “disputa” pela alma de Nayara (Victoria Rossetti), namorada de Jove que termina namorando Gustavo, além dos atritos entre Madeleine, sua irmã Irma e os pais de ambas, alimentados no começo da novela.

Por mais que essas últimas tensões vinculadas ao núcleo dramático da capital carioca tenham sido pacificadas com a morte da personagem de Madeleine e do seu pai que dissipou esse núcleo, vale notar que a sociabilidade fútil das influencers e as redes sociais foram apresentadas como uma vulgaridade, tanto quando a sua encarnação se deu na Nayara, uma moça da favela deslumbrada pelos seguidores, como quando foi encarnada por Madeleine, mulher de meia idade, descendente de uma família quatrocentona em decadência, o que não impediu Pantanal de mostrar o métier como um meio de obtenção de renda, ocasião para a publicidade de produtos incrustados no enredo.

Mas em uma narrativa que se apresentou com a intenção de dar conta do “movimento do real”, foram as relações de gênero e suas transformações que ocuparam um lugar de destaque na trama. Se a brutalidade dos conflitos entre trabalhadores e proprietários foi colocada no passado enquanto no presente patrões e empregados viviam relações idílicas, a exploração sexual do passado das currutelas pelos peões é revestida de afeto, quando não do amor mais sublime: Generosa, com quem José Leôncio iniciou sua vida sexual e com quem gerou José Lucas, até no nome indica a doação voluntária do seu corpo; Filó, a quem José Leôncio conheceu num prostíbulo e continuou explorando como empregada, é apaixonada pelo seu patrão; e Maria Marruá tomava as decisões a propósito das trocas sexuais com o marido.

Em contrapartida, é no presente que as tentativas de estupro, a homofobia e o abuso na família patriarcal foram apresentadas com brutalidade: por exemplo, na tentativa de estupro de Rute pelo peão Davi, convenientemente punida pela morte do violador num rio cheio de piranhas; nos julgamentos de grande parte dos pantaneiros à liberdade de relacionamento de Guta, à falta de “macheza” de Jove, à liberdade de Juma e à homossexualidade de Zaqueu (Silvério Pereira); e no estupro de Alcides (Juliano Cazarré) por Tenório como vingança por ele ter conquistado Maria. Porém, essas tensões ativas estão destinadas a serem resolvidas no enredo pela aceitação de novas formas de sociabilidade, que vão modificando, em primeiro lugar, a perspectiva de mundo de José Leôncio.

De modo geral, existiram personagens destinadas a mudar ao longo do enredo e as que permaneceram planas. Mas, em certos casos, as personagens planas são apresentadas com uma história que as explica. É o caso de Tenório, a personificação do latifúndio improdutivo, sobre o qual se conta que teve uma infância marcada pela violência e por isso carrega ressentimento e crueldade ao longo da vida. Diferente da relação que teve com a esposa Maria, dona de casa, marcada pelo patriarcado da renda, com a amante Zuleica, que se sustentava com seu próprio salário, teve outra relação na qual ela tinha maior autonomia, mesmo depois de ter se tornado a “esposa oficial”. São os filhos de Zuleica, em particular, Marcelo, formado em veterinária, que darão outro rumo para a produção da fazenda. Desse modo, Tenório não teve redenção possível. Sequer Marcelo, que assumiu a responsabilidade de modernizar a fazenda indo de encontro com as mudanças propiciadas na fazenda vizinha por Jove, não era filho dele, como revela Zuleica diante do impasse do incesto, dado o romance entre Guta e o filho.

Muito diferente disso foi a relação entre o José Leôncio e Jove, verdadeira matriz de sustentação narrativa de Pantanal.

A reposição da herança

José Leôncio, personagem em torno do qual orbitaram os núcleos dramáticos, sintetizou a figura do pai honesto, digno, que, embora cometesse erros, era admirado por todos. À medida que se construía a ele mesmo como pai, não desistia de encontrar o próprio pai desaparecido. Na sua jornada de busca, Leôncio não sabe e depois não acredita que o pai seja o Velho do Rio, que optou por se tornar uma entidade protetora da natureza enquanto ele construía um império pecuarista. Dessa forma, refez-se a metáfora muito presente na ficção brasileira do pai enquanto nação. Considerando que essa nação, inventada nos termos coloniais para atender aos interesses da acumulação externa, está condenada à incompletude, a busca por ela é sempre uma constante. Trata-se de um pai sempre desaparecido, ausente, já que as vias são irremediavelmente bifurcadas.

Apesar disso, na novela, os distintos caminhos de pai e filho foram reconciliados na figura dos netos Jove, Zé Lucas e Tadeu, sendo que após essa reconciliação, José Leôncio assumiu a missão do Velho do Rio no último capítulo. Assim, recolocou-se a busca pela nação, mas agora na figura feminina de Filó, que passa a esperar pelo encontro com o companheiro encantado que apenas é visto pelos seus netos, filhos de Jove, Zé Lucas e Tadeu. Vestida com as roupas de peão que José Leôncio usava e liderando a fazenda após a sua morte devido a causas naturais, a imagem de Filó no encerramento da novela anunciou o início de uma nova era de busca pela nação comandada pelas mulheres que cuidam da nova geração. No entanto, embora oferte essa utopia renovada ao espectador, a narrativa se equilibra em velhos alicerces.

É emblemático, por exemplo, que o tripé da cadeia que sustenta o modelo predatório do agronegócio no país – o corporativismo empresário-gerencial, a bancada política ruralista e a própria empresa latifundiária – tenha sido representado “às avessas” pelas personagens dos filhos de Zé Leôncio: Joventino assumiu a gestão dos negócios buscando unir modernização e pensamento ecológico, implementando inovações técnicas da agroecologia nas fazendas; José Lucas tornou-se um político por vocação, buscando manter seus princípios autenticamente ligados à defesa do povo; e Tadeu, que se descobriu um filho “ilegítimo”, é o peão a quem se atribuiu a rotina da fazenda e a lida com o gado e, embora teimoso, bronco e ciumento dos outros irmãos, foi construído como o “filho do amor”, dotado de um “bom coração”.

Mas foi Jove, filho “legítimo” e caçula, também herdeiro do nome do avô que, retomando os princípios da linhagem, operou as transformações no modelo agrícola, tornando-se a síntese da tentativa de conciliar o capital com a preservação ambiental, sintetizando a saída à brasileira da reestruturação “verde” do capitalismo contemporâneo10. Aqui, a tarefa principal, dada as singularidades do nosso capitalismo periférico e o avanço da desindustrialização, não é reajustar a base industrial – como se faz nos Estados Unidos onde o governo Biden anunciou investimento milionário para subsidiar a produção de carros elétricos11, por exemplo –, mas sim reformar a cadeia agroexportadora, tornando-a compatível às novas demandas ambientais do mercado internacional. Daí as mudanças da personagem de Jove e a sua ida para o pantanal que, por sinal, foi acompanhada por todas as demais personagens centrais do núcleo sediado no Rio de Janeiro.

No início da trama, ele era descredibilizado, visto como inconsequente. Praticava parapente, estudava fotografia, tinha começado várias graduações sem terminar nenhuma, vivia da mesada do pai e cultivava uma estética hipster. Veganoe ambientalista, ainda que mantendo responsabilidade nas suas relações afetivas, não se comprometia a fundo com ninguém e era assiduamente cobrado a assumir o ideal do destino de sucesso social imaginado pela avó e pela mãe. Aos poucos, no entanto, a personagem foi sendo reconstruída a partir do seu reencontro com José Leôncio. Na fazenda, diante da exigência para que ele assuma os negócios da família, Jove diz, em tom brincalhão, que quando o pai morrer, abrirá a porteira para que os sem-terra entrem e, por fim, se realize a “tão adiada reforma agrária”. Entretanto, a resistência inicial e os atritos com o pai logo foram substituídos pela tentativa de provar que ele era um autêntico “Leôncio”. Assim, Jove se obrigou a aprender a cavalgar, vencendo sua fobia aos cavalos, a laçar e também mudou seu modo de vestir.

Dessa maneira, o seu mundo anterior tornou-se supérfluo diante da importância da tarefa de se fazer herdeiro. O interesse pela fotografia, por exemplo, que antes se apresentava como possibilidade laboral, torna-se um hobby ocasional. Essa mutação do ideal estético ao pragmático oculta o discurso de que idealistas que querem preservar a natureza e buscam justiça social como é o caso de Jove e de Zé Lucas, a despeito das suas origens sociais (Jove, bem-nascido, e Zé Lucas, filho bastardo de Generosa cujo sobrenome é “de Nada”), precisam agir em conjunto e em acordo com o status quo se desejam, de fato, mudar alguma coisa. A mensagem não poderia ser mais clara: é preciso assumir a herança estabelecida, seja literal no caso de Jove, seja simbólica no caso de Zé Lucas. É preciso realizar o pacto para gerar mudanças.

O casamento entre Jove e Juma foi, sem dúvida, a união que consolidou a vitória dessa ideologia no enredo. Ele se apaixonou por ela e a ensinou a ler e a escrever com um método que lembra as práticas de Paulo Freire, de modo a vencer as desconfianças que a moça tinha com relação aos homens e a respeitar os tempos da sua companheira para ter intimidade sexual. No dia do casamento, enfrentou e venceu um peão que o provocou desrespeitando Juma, sem deixar de recusar a forma direta de resolver as pendências. As mudanças das quais Jove é portador se operam primeiramente nele mesmo, levando-o a uma síntese entre liberdade, tradição, tecnologia, ciência e um ambientalismo que se enraíza nos ensinamentos do seu avô encantado no Velho do Rio e na simplicidade da vida cabocla da sua companheira.

A mistura entre o ultramoderno e o arcaísmo, entre a rebeldia e o pragmatismo é acionada enquanto representação da concretização do possível amor genuíno entre os Leôncio (agronegócio) e os marruás (a natureza). Se Zé Leôncio capturou estes últimos buscando domesticar e controlar a natureza, instrumentalizando-a a seu favor, Jove surge como o mediador que abdica desse controle absoluto porque se apaixona e procura respeitar Juma tal como ela é. Mas esse relacionamento de novo tipo requer concessões de ambas as partes: Juma abdicou da vida na tapera, do isolamento e da sua total independência, ganhando com isso amigos, suporte familiar e a literatura; ao passo que Jove abdicou de domesticá-la usufruindo assim da sua companhia e do seu afeto cotidiano.

A filha do casal nasceu, por exemplo, “do jeito dela” e a troca dos sobrenomes do bebê é reveladora da mudança de princípios entre Zé Leôncio e Jove. Contrariando o primeiro que desejava que a neta se chamasse Maria Marruá Leôncio, Jove e Juma a batizaram de Maria Leôncio Marruá. Indica-se, assim, que a geração representada em Jove, a qual promove as mudanças na administração dos negócios na direção da responsabilidade ambiental, estabelecendo um elo de amor com a natureza, é o início de uma nova linhagem, uma nova geração que, de fato, será o amálgama entre os mundos do pai e da mãe: o genuíno “agronegócio verde”, responsável social e ambientalmente.

A filha do casal foi, portanto, o ápice do reformismo defendido pela trama porque avalizou a defesa de que se pode solucionar a crise ambiental sem romper com o modo de acumulação que a gerou e a aprofunda. Essa conjugação de opostos inconciliáveis foi legitimada pela força mítica presente na narrativa, sobretudo na figura do Velho do Rio, que uniu não só Juma e Jove mas também Jove e José Leôncio. É essa entidade fantástica que transita entre o universo humano e o dos outros seres restaurando a capacidade perdida de comunicação e lembrando o quanto a relação homem-natureza está alienada. A missão assumida por ele de proteger os bichos, a mata e os seres, aí incluso os homens, também o torna um portador onisciente do destino: enquanto conhecedor dos mistérios que em muito ultrapassam a pequeneza da mente e das vontades humanas, interfere apenas quando pode e para que o “já escrito” se cumpra.

Conciliação e fraturas

Desse modo, a narrativa elabora um verdadeiro “sistema de conciliação” encerrado como nosso destino, situado para além das nossas pequenezas e vontades. E se o elo “já estava escrito” e o destino não pode ser alterado, a ação política que esse arranjo pressupõe só pode ser conformista. Assim, Pantanal (re)encenou o consenso da modernização e a conciliação de projetos políticos antagônicos como “o único caminho possível”, como o nosso “destino” (e o conformismo que ele enseja) na busca por fazer parte do concerto das nações desenvolvidas. Até mesmo as diversas imagens aéreas – ao apequenar enormes rebanhos de gado em relação à exuberância da natureza, das matas e dos rios pantaneiros – buscavam solucionar a dubiedade fundamental dessa concepção. Pode-se dizer que do mesmo modo que o destino foi acionado na narrativa para resolver as incongruências do roteiro à medida que ele era ajustado à audiência12, nota-se esse mesmo expediente se repetir na realidade política nacional. De certo, essa é a principal estratégia de manutenção da ordem por parte da direita tradicional que agora se vê parcialmente ameaçada pela extrema direita.

Insiste-se que o problema é que se desperdiçam os recursos oriundos do mercado externo via commodities em vez de empregá-los para “promover, apoiar ou facilitar” iniciativas inovadoras “de geração de emprego e renda concomitante com a conservação dos recursos naturais no território nacional”13. Atribui-se a culpa da devastação ao “atraso” das elites fundiárias, defendendo-se que é possível, como disse Lula durante a campanha, “dobrar nossa produção de grãos sem ter de derrubar uma única árvore na Amazônia ou no cerrado” ou como falou recentemente durante a COP27, que é possível “gerar riqueza sem provocar mais mudança climática” e “promover crescimento econômico e inclusão social tendo a natureza como aliada estratégica, e não mais como inimiga a ser abatida a golpes de tratores e motosserras”14.

Não apenas o presidente reeleito, mas a grande maioria da esquerda, continua a apostar nesse subterfúgio do progressismo e, portanto, na modernização das elites agroexportadoras15 (15). Emaranhada ou emaranhando-se às ilusões pactualistas, segue depositando seus modos de sentir, pensar e agir nessa concepção. Note-se que na novela a transformação condensada na personagem de Jove depende de ele ganhar o coração do pai, conquistar o seu respeito e convencê-lo a mudar. Desse modo, a pacificação de diferentes relatos, mitos e discursos sobre o pantanal, sobre a questão agrária e o sentido da história do Brasil em um sistema de conciliação só pode ser cumprida a partir da integração desses sentidos na consciência do protagonista: José Leôncio.

Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa, ao assumir a herança de novelista, também buscou, como Jove, “modernizar” a história, escrevendo uma versão 2.0 de Pantanal. Para isso, não apenas atualizou as preocupações ambientais presentes no roteiro original, mas também incluiu o discurso ativista de defesa das pautas políticas coligadas às questões de gênero, ao racismo e a homofobia. Discurso que ganhou o maior destaque no tecido narrativo, especialmente por conta das personagens de Maria, ex-esposa de Tenório, e de Zaqueu, mordomo da família no Rio de Janeiro que se tornou peão na fazenda. Entretanto, também essa “modernização” discursiva, a despeito do seu teor de renovação, foi atrelada ao sistema de conciliações citado que escamoteia as relações materiais fundamentais implicadas na exploração e na opressão.

Por isso a oposição entre José Leôncio e Tenório é construída na chave produtividade e não produtividade, em vez da chave monetização e não monetização da terra. Esse complicado dualismo do vilão na figura do grileiro improdutivo e do herói como o latifundiário produtivo acaba por ocultar o principal: a espoliação, a privatização e a capitalização da terra em larga escala. É de se ressaltar que na nova versão, além da mudança na direção do “agro sustentável”, Zé Leôncio também se tornou o mediador por excelência das transformações de sociabilidade, especialmente no tocante à opressão de gênero e à homofobia. É ele, por exemplo, que autoriza o acolhimento de Maria na sua fazenda e lhe dá o suporte jurídico necessário para o seu processo de separação de Tenório, bem como é ele que intervém para que os peões respeitem Zaqueu, que só consegue aprender o ofício e se tornar um verdadeiro peão depois do aval e da tutela do patrão.

Pode-se dizer que Pantanal condensa um artifício ideológico que confere à esquerda um papel similar ao de Jove no enredo. É dela a tarefa de se esforçar para adquirir a confiança das elites agroexportadoras, ambientando-se ao seu universo, vestindo as suas roupas, falando a sua linguagem a fim de convencê-las a se modernizarem, ou melhor, a se ajustarem às novas demandas de marketing ambiental do mercado internacional, desde que abandone o “idealismo” e se vincule ao pragmatismo. Em troca, a ela será dada a expectativa de mudanças graduais centralmente voltadas às “novas sociabilidades”, ou seja, coligadas à luta contra as opressões. Terreno este no qual as mudanças, tais como aquelas ligadas às demandas ambientais, também acontecerão nos termos da ordem, regidas e administradas por ela, sendo esse o nosso inescapável destino como nação.

No pós-eleição, a pressão externa de adequação ao capital tende a continuar intensa, especialmente no que se refere ao setor agroexportador, enquanto internamente se anuncia um difícil cenário político no qual o bolsonarismo continuará ativo e atuante. Diante da catástrofe promovida pela extrema direita no país, o novo governo Lula pode até promover ajustes no compasso por meio do qual a destruição imanente a esse modelo de acumulação é conduzida, mas, ao que tudo indica, continuará a responder a ele nos termos figurados em Pantanal. Mais do que nunca, a esquerda brasileira está em um cômpito: ou continua a agonizar a crise do parlamentarismo pactualista ou busca alternativas outras, sem dúvida afinadas à superação do modelo agroexportador de exploração capitalista. Se o êxito de Pantanal indica a reposição do velho projeto conciliatório, cabe a ela encarar a sua decrepitude.

Construir democraticamente alternativas verdadeiramente radicais necessárias ao enfrentamento do atual cenário de crise social e ambiental em curso requer o abandono da ilusão do progressismo e novas práticas que tenham em vista a sua superação. Tratam-se de transformações que envolverão profundas mudanças de valores, visões de mundo e modos de vida os quais, de certo, demandarão projetos educacionais e culturais sustentados. Nesse caminho, temos muito a aprender com os “povos da abundância” que não só resistem à política de morte e escassez neoliberal, mas lutam contra a civilização e a barbárie (que se retroalimentam) desde os primeiros processos de colonização e usurpação dos territórios comuns.


Este texto não passou pela revisão gramatical da nossa equipe.

Referências

  1. Trecho da música “Fora da ordem”, de Caetano Veloso no álbum Circuladô (1991).
  2. FERRAZ JR. Processo de desindustrialização no Brasil se acentua. Jornal da Usp, 4, mar., 2021. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/processo-de-desindustrializacao-no-brasil-se-acentua/. Acessado em: 18 nov. 2022.
  3. Idem.
  4. SILVA, Raimundo Pires. A outra face externa do agronegócio. Le Monde Diplomatique Brasil, 29, jul., 2022. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-outra-face-externa-do-agronegocio/. Acessado em: 18 nov. 2022.
  5. LOWY, Michel. Pandemia e crise ambiental: a alternativa ecossocialista. In: ROLO, Duarte et al. (org.). Trabalhar e viver no século XXI: estudos do trabalho em Portugal. Portugal: Humus, 2021.
  6. EMBRAPA. Pesquisa, desenvolvimento e inovação: pecuária no pantanal. In: https://www.embrapa.br/pantanal/pecuaria-do-pantanal. Acessado em: 18 nov. 2022.
  7. ESQUER, Michael. Pantanal: o que muda com a flexibilização da lei que protege o bioma em MT. Eco, 15, jul., 2022. Disponível em: https://oeco.org.br/reportagens/pantanal-o-que-muda-com-a-flexibilizacao-da-lei-que-protege-o-bioma-em-mt/. Acessado em 18, nov., 2022.
  8. CEVASCO, Maria Elisa. O trabalho da crítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n.74, dez. 2019, p. 86.
  9. SCHWARZ, R. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.78.
  10. Como expressou, em 2021, o The World Economic Forum no qual os maiores líderes econômicos e políticos anunciaram a ideia do “Great Reset” (Novo Reinício) e de “uma nova Era” para o capitalismo no pós-pandemia, coincidente com a proposta democrata do “Green New Deal” nos Estados Unidos para aumentar o investimento em energias sustentáveis, de ‘descarbonização’.
  11. BIDEN anuncia investimento de US$ 900 milhões na produção de carros elétricos nos Estados Unidos. Jornal da Globo, 15, set., 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2022/09/15/biden-anuncia-investimento-de-us-900-milhoes-na-producao-de-carros-eletricos-nos-estados-unidos.ghtml. Acessado em 18, nov., 2022.
  12. Por exemplo, a personagem de José Lucas. Primeiro ele suscitou o interesse de Irma, mas se apaixonou por Juma, anunciando-se uma vingança entre os irmãos logo resolvida pelo roteiro que manteve a paz entre os Leôncio, focalizando a dualidade bem versus mal na figura de Tenório. Ressalte-se que é Zé Lucas que assume o filho de Irma com Trindade, o peão que fez o pacto com o diabo e cumpre o papel da premonição. Essa entidade, o “caramunhão”, diferente do velho que fala a língua da natureza e dos outros seres, parece ser especializada nos humanos ao predizer as suas maldades e vinganças, ao saber da alma do homem, não por acaso é o filho político que adota o seu filho.
  13. SILVA, Raimundo Pires. A outra face externa do agronegócio. Le Monde Diplomatique Brasil, 29, jul., 2022. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-outra-face-externa-do-agronegocio/. Acessado em: 18 nov. 2022.
  14. VEJA íntegra do discurso de Lula na COP 27. G1, 16 de nov., 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/meio-ambiente/cop-27/noticia/2022/11/16/veja-integra-do-discurso-de-lula-na-cop-27.ghtml. Acessado em: 18 nov. 2022.
  15. Elites que se tornaram as principais financiadoras e apoiadoras do bolsonarismo no Brasil, como mostra a reportagem de Fabiana Moraes, “‘Socialmente responsáveis’ e golpistas: como se divide nosso agronegócio”, publicada pelo The Intercept Brasil (8/112022), na qual também consta a definição dos jogos de força e atuação política dos grupos empresariais que compõem o agro no país. Disponível em: https://theintercept.com/2022/11/08/socialmente-responsaveis-golpistas-agronegocio/. Acessado em: 18 nov. 2022.

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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