Por Fabio Luis Barbosa dos Santos1 e Marco Antonio Perruso2
A devolução dos direitos políticos do ex-presidente Lula agitou a sociedade brasileira. As análises concentram-se em torno da operação judicial Lava-Jato e das perspectivas eleitorais para 2022.
Há anos, a narrativa progressista tem ressaltado a perseguição judicial de Lula pela Lava-Jato, notadamente pelo ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Sem dúvida, houve parcialidade e ilegalidade. Porém, isso não é garantia de inocência para membros dos governos do PT e dos outros partidos, progressistas e conservadores, que participaram do condomínio de poder lulista entre 2003 e 2016.
Entretanto, frente à desorientação geral da burguesia brasileira e à crescente insatisfação popular, os humores políticos têm mudado. Se antes Lula foi encarcerado por meio de decisões judiciais politizadas, da mesma maneira foi solto depois, e agora, retoma seus direitos políticos. Nesta realidade as narrativas dominantes, seja a conservadora seja a progressista, denunciam como politicamente motivados os resultados do judiciário que lhes desagradam.
Neste texto, analisaremos os acontecimentos recentes à luz do movimento geral da conjuntura brasileira. A intenção é apreender o sentido desta evolução e suas potencialidades, para além dos personagens envolvidos.
1. O pano de fundo da defenestração do PT, de Brasília, é a perda de eficácia do lulismo como modo de regulação das tensões sociais no país. Recapitulemos os contornos gerais do processo.
Após uma década exitosa, em que articulou modestas melhorias para os de baixo aos privilégios de sempre dos de cima, uma convergência de fatores sociais, políticos e económicos colocou em xeque o lulismo. A conjunção entre as jornadas de Junho de 2013, maior ciclo de mobilizações populares da história do país; os escândalos de corrupção, retratados como espetáculos pela mídia corporativa, que transformou julgamentos em novelas e juízes em pop stars; e a desaceleração econômica, que se desdobrou em recessão a partir de 2015, modificou a abordagem das classes dominantes em relação à reprodução social, que deslizou da “contenção inclusiva” para a “aceleração excludente”.
Neste contexto, a pedra filosofal de um neoliberalismo inclusivo cedeu lugar à intensificação da espoliação social, enquanto a ideologia da conciliação abriu alas para o enfrentamento aberto. É este o pano de fundo da deposição de Rousseff em 2016, da prisão de Lula e da vitória de Bolsonaro em 2018.
2. Ao contrário de entender o bolsonarismo como uma reação ao lulismo, sugerimos que a tentativa petista de conter a crise social no século XXI implicou no recurso a práticas, dispositivos e políticas que terminaram acelerando esta mesma crise. A contradição desta lógica, em que a tentativa de conter o movimento dessocializante não impede a sua aceleração, pois implica em fortalecer justamente o que se pretende conter, pode ser constatada em múltiplos planos. Vejamos.
O ex-presidente mundial do Bank Boston, Henrique Meirelles, que renunciou como deputado tucano em 2003 para comandar o Banco Central sob Lula e que depois, foi ministro da economia sob Temer; a tentativa do governo Lula de fazer ligação direta com o “baixo clero” no congresso, que desatou o escândalo do “mensalão” em 2005, respondido com mais espaço para o PMDB no governo, levando Temer duas vezes à vice-presidência na chapa de Rousseff; o apoio de lideranças neopentecostais às administrações petistas, que resultou em recuos na agenda comportamental e na nomeação de ministros evangélicos como Marcelo Crivella; os militares enviados ao Haiti na intenção de fazer do Brasil um “global player”, que, em seguida, implementaram o know-how adquirido em missões de garantia da lei e da ordem notadamente no Rio de Janeiro, e que agora formam o primeiro escalão do governo Bolsonaro; as construtoras, que não hesitaram em mandar para a cadeia, em delações reais ou imaginárias, aqueles que lhes abriram caminho para ganar dinheiro como nunca; isso para não falar em movimentos sociais envolvidos por políticas públicas visando neutralizar sua combatividade, em lugar de implementar suas bandeiras (como a reforma agrária e urbana), resultando, treze anos depois, em um campo popular dividido, debilitado e desprestigiado.
Em resumo, os militares, os bancos, o PMDB, o vice-presidente Michel Temer, o neopentecostalismo, as empreiteiras, a passividade, foram todos alimentados e cultivados, em seu momento, pelos governos petistas. Neste quadro, a figura de imagem mais adequada da relação entre a defenestração do PT e a ascensão de Bolsonaro não é uma guinada de 180 graus, mas uma metástase, na medida em que forças e interesses corrosivos, cujo poder nunca foi desafiado e que pareciam controladas sob o petismo, se espalharam inconteste pelo tecido nacional.
3. Face à agudização da violência econômica e da violência política, Bolsonaro oferece para a classe dominante a moldura deste neoliberalismo autoritário, que é o Estado policial. Sem ter um programa próprio, terceirizou a gestão da economia para um genuíno Chicago boy, que além de estudar na escola de Milton Friedman trabalhou no Chile pinochetista nos anos 1980. Como recheio, avança uma agenda comportamental, cultural e científica retrógada – que a elite tolera, mas não adora.
Seu apoio ao ex-capitão se consumou como um casamento de conveniência, já que o seu ideal é um bolsonarismo sem Bolsonaro. Entretanto, o militar tem ideias próprias, que apontam para uma dinastia (tem três filhos na política), tendo como partido os militares, e como base social os evangélicos. Deste ponto de vista, seu maior desafio é converter o apoio virtual que o elegeu em mobilização real. Transformar internautas em camisas negras (milícias fascistas).
4. Neste quadro, qual seria a diferença fundamental entre o governo Bolsonaro e as gestões petistas que lhe antecederam? Críticos do progressismo sul-americano, como nós, alegam que, ao renunciar a enfrentar as raízes estruturais da desigualdade e da dependência, o governo petista e seus similares se resignaram a uma gestão da crise. O governo Bolsonaro, por outro lado, não se propõe a fazer gestão alguma, pois ele governa por meio da crise.
Nos deparamos com formas diferentes de lidar com a agudização das tensões no neoliberalismo. O progressismo se propõe a gerir estas tensões por meio de um arsenal de bestpractices avalizada pelo Banco Mundial. É uma contenção da crise. Já os Bolsonaros deste mundo admitem o caráter autofágico do neoliberalismo (uma luta de todos contra todos) e prometem armar as pessoas para que elas se defendam, atacando – como ele próprio faz. É uma aceleração da crise.
Em outras palavras, enquanto uns procuram o freio, outros pisam no acelerador. Mas ninguém questiona o trilho.
5. Em setembro de 2020 mais de mil brasileiros morreram por dia vítimas da covid-19 e o país estava há quatro meses sem ministro da saúde. No entanto, neste mês a popularidade de Bolsonaro atingiu o seu nível mais alto. Como explicar?
Do ponto de vista dos de baixo, destacavam-se dois fatores. Por um lado, o presidente não era (ainda) responsabilizado pelas mortes. Por outro lado, o auxílio emergencial, de valor quatro vezes maior, para quatro vezes mais famílias, sustentou a popularidade de Bolsonaro inclusive no nordeste do país, anteriormente cativado pelo Bolsa Família lulista.
Enquanto isso, em Brasília, o presidente tinha comprado o amor do Centrão. Ao mesmo tempo, Bolsonaro ensaiava uma versão menos ideológica de si próprio, pacificando as relações com o Supremo Tribunal Federal e a mídia corporativa. O grande capital saudava a mudança, confiando que a estabilidade lhe permitiria avançar sua própria agenda.
O paradoxo era notável. Para compensar a queda no apoio entre a elite e as classes médias que não compraram o negacionismo, Bolsonaro seguiu o caminho do lulismo: fortalecer os laços entre os mais pobres, resignando-se ao pragmatismo político – e por esta via, costurava a estabilidade ansiada pelo capital.
Será que o presidente, que mergulhou o país na pandemia visando uma “revolução invertida” à moda do fascismo, se reinventaria no molde de um “lulismo invertido”? O mesmo problema pode ser visto de um ângulo diferente: será que a elite que anseia por um “bolsonarismo sem Bolsonaro” ficaria satisfeita com um “Bolsonaro sem bolsonarismo”?
Em todo caso, se evidenciou que o bolsonarismo não é o contrário do lulismo, mas o seu inverso: assim como a “contenção” implica em “aceleração”, a “aceleração” exige “contenção”.
6. Porém, passado mais de um ano de pandemia, a situação é catastrófica. Há dias em que mais de três mil brasileiros morrem de covid-19. Os hospitais estão lotados, a vacinação pouco avança e problemas de saúde mental se multiplicam. Medidas de isolamento se impõem sobre uma classe média estressada, mas são inviáveis para uma população trabalhadora que já não recebe o auxílio-emergencial. No Brasil, ninguém enxerga o fim da peste.
Confrontada com uma tragédia humanitária, com uma crise econômica que só se agrava, acentuada pela deterioração da imagem internacional do país, vozes do establishment evocam uma pactuação social. O liberalismo cosmopolita contesta o nacionalismo reacionário do presidente: apenas o neoliberalismo os une.
É neste cenário que Lula recuperou os seus direitos políticos.
7. A primeira consequência da novidade foi que o pessimismo diante da bola de neve bolsonarista deu lugar a um otimismo messiânico. Este sentimento não é novo: pouco antes da pandemia, o respeitado líder do MST, João Pedro Stédile, declarou: “Lula tem de ser nosso Moisés, convencer o povo a atravessar o Mar Vermelho. Não há outro personagem que possa cumprir esse papel”.
O outro lado da mesma moeda é que se consolidam as chances de Bolsonaro concluir seu mandato. Mais do que nunca, as energias políticas se canalizam para uma candidatura Lula em 2022, em lugar de um impeachment.
Quem acredita que o PT apostará na pressão das ruas deve entender que isso é uma impossibilidade lógica. O apelo político de Lula reside na conciliação, que implica justamente em evitar que transborde o descontentamento popular. O seu jogo é jogado na pequena política de Brasília, não nas ruas.
A esperança agora é que a esquerda “responsável” retorne à Brasília para administrar o que sobrar do país em 2023.
8. Não é possível saber se a hipótese Lula prosperará. Mas é possível saber duas coisas.
Em primeiro lugar, o movimento da classe dominante na direção de uma modalidade mais violenta e autoritária de neoliberalismo não se modificará. Aos seus olhos a estrutura institucional prevista pela “Constituição Cidadã” de 1988 se tornou anacrônica. A utopia da cidadania salarial se foi, sem nunca realmente ter chegado.
A segunda certeza é que uma volta petista apenas remediará, na melhor das hipóteses, a crise civilizatória que vivemos. Podemos supor que, se o PT estivesse hoje na presidência, faria o seu melhor para construir uma arca salvadora no dilúvio da pandemia, sem colocar em xeque quaisquer parâmetros da reprodução neoliberal no Brasil. Em suma, faria o melhor possível, onde o possível é pouco.
Enquanto isso, a dinâmica social que faz do cotidiano uma luta de todos contra todos, em um mundo onde o trabalho se torna escasso e as balas abundam, se agravaria.
9. Como no romance “O médico e o monstro”, contemplamos no Brasil duas faces distintas de um mesmo sujeito. Ou para ser mais preciso, nos deparamos com duas formas diferentes, mas não contraditórias, de manejar a dessocialização autofágica que caracteriza o neoliberalismo: uma é a contenção; a outra, a aceleração.
Também se constata um paradoxo, na medida em que o progressismo fora do governo se converte em uma política restauracionista, exortando à volta a um passado idealizado, enquanto a direita se posiciona a favor do movimento da história – a favor do progresso, que só pode conduzir à barbárie.