Para ler Florestan Fernandes e o racismo no Brasil

Florestan Fernandes continua sendo um marco para a compreensão do Brasil e leitura ineludível para as novas gerações. Antes de nos deixar, ele lamentava que o tempo que lhe foi dado não lhe permitira observar e analisar as mudanças que despontavam na dinâmica do capital, propiciadas pelas novas tecnologias e pela poderosa pressão da queda tendencial da média de lucro. Tarefa que ficou para nós realizarmos. Leituras apressadas – que, às vezes, não ultrapassam a soleira do título – recortadas e fora de contexto obrigam a uma retomada demorada e orgânica de sua obra. Isso é essencial para encarar os novos desafios colocados pela nova configuração do capital, com a preponderância em nossos territórios da acumulação por despossessão, das cadeias flexíveis e das mudanças nas relações de trabalho. A estratificação ainda mais pronunciada dos mercados de trabalho e a exploração por pilhagem, com crescente desassalariamento, lançam mão de práticas racistas mais intensas. A leitura de obras como A integração do negro na sociedade de classes (2008), por exemplo, contribuiria imensamente para o entendimento deste processo atual.

A obra teórica de Florestan Fernandes pode ser comparada ao esforço de autores marxistas como Lenin, Mariátegui, Gramsci, E.P. Thompson, Roque Dalton, que se empenharam em pensar a articulação do local com a totalidade da dinâmica do capital. Florestan Fernandes também se ocupou das particularidades do Brasil. Sem ser o único, talvez tenha sido o mais abrangente. 

Lendo a produção do mestre brasileiro, mesmo desdobrada em temas, podemos reconhecer com facilidade as articulações subterrâneas dos tópicos tratados. Isso graças ao esforço pedagógico de recuperar numa obra os resultados apresentados nas anteriores. É possível uma leitura da obra de Florestan Fernandes num percurso que acompanhe sua própria formação como intelectual, na qual, mesmo quando parte de unidades temáticas, as incorpora de maneira orgânica a um panorama mais geral sobre a história do Brasil e da América Latina. 

Se seu itinerário de pesquisas começa com o mundo indígena no contexto da invasão, ele vai perpassando a integração do território que hoje chamamos Brasil para entender e comunicar a dinâmica histórica. Partindo às vezes de um foco bem cerrado sobre uma questão ou outra, nunca perdeu o ímpeto de vinculá-la de maneira orgânica, e não como um quebra-cabeça, ao conjunto. Nesse sentido, seu percurso formativo é um belo modelo para as novas gerações de intelectuais. 

Sendo filho das classes trabalhadoras, seu esforço por conhecer e afiar o instrumental teórico e metodológico que a academia fornecia não arrefeceu sua desconfiança com relação a tais ferramentas, o que lhe permitiu fazer contribuições expressivas para as lutas emancipatórias, mas não apenas isso. Também lhe ajudou a superar os limites que a perspectiva dos poderosos apresentava para o conhecimento. Proponho refletirmos sobre o modo com que o autor tratou o tema do racismo.

Vou me referir aqui, primeiro, à pesquisa que resultou na publicação de O negro no mundo dos brancos (2007). Em 1951, o discurso hegemônico afirmava não existir racismo no Brasil, diferentemente da situação dos Estados Unidos, por exemplo. A obra de Gilberto Freyre, em especial seu ensaio de 1933, Casa grande e senzala (2003), tinha se erigido na explicação dominante sobre a questão racial no Brasil. O antropólogo suíço Alfred Métraux intermediou pela UNESCO uma pesquisa sobre “a realidade racial brasileira”. Florestan Fernandes e Roger Bastide realizaram essa pesquisa em São Paulo, com resultados contrapostos ao mito da “democracia racial”. 

Tanto a recolha de dados e a elaboração de formulários de entrevistas quanto a interpretação dos resultados contaram com a participação de estudantes universitários e militantes negros. Lembremos que a Frente Negra Brasileira durou de 1931 a 1937, e que, a partir de 1945, muitas organizações negras surgiram no país. Em particular, em São Paulo, a Associação do Negro Brasileiro. Naquele período, negros entravam nas universidades aqui e ali. Os debates que preparavam as entrevistas e interpretavam resultados ajudavam a fazer “as perguntas certas” e a interpretar corretamente respostas “cifradas” ou acanhadas. Esses debates não partiam de um consenso. Eles próprios eram uma instância de crítica do instrumental teórico e metodológico da universidade. 

Sim, havia racismo no Brasil. Não havia mobilidade social nem democracia racial. Olhando para trás, custa-nos reconstruir a batalha das ideias. Tudo parece estar num mesmo plano. Aquela pesquisa, porém, foi um patamar sobre o qual outras investigações poderiam se desenvolver.

As lutas concretas das classes trabalhadoras brasileiras, realizadas por gentes com biografias de migração e multiplicidade de embates e astúcias, eram a própria carnadura da história. São elas a matéria mesma a ser estudada, não apenas para conhecê-las, por curiosidade científica, mas para vislumbrar nelas indícios e possibilidades. 

Florestan Fernandes, já mais maduro, retomou o foco nesse tema e, em 1965, publica A integração do negro na sociedade de classes (2008). Esse estudo faz parte de um trabalho que iria se plasmar em Sociedade de classes e subdesenvolvimento (1968), Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina (1973) e Revolução burguesa no Brasil (1975). Podemos inferir, por esse percurso, o papel fulcral que Florestan atribuía às relações raciais no capitalismo brasileiro e no capitalismo dependente em geral. No estudo publicado em 1965, compreender a forma pela qual se dá a integração dos negros e negras na sociedade de classes, quando o modo de produção escravista é substituído pela internalização do modo de produção capitalista, é fundamental para entender o que é o capitalismo dependente. 

A integração do negro na sociedade de classes dá conta da impossibilidade de igualdade racial dentro do capitalismo. E do caráter inócuo de uma luta anticapitalista que não ataque o racismo no Brasil. 

Anos mais tarde, os estudos de Lélia Gonzalez levaram adiante a descrição dessa dinâmica, atualizando o estudo da estratificação do mercado de trabalho no Brasil, com foco nos cortes raciais e de gênero (2021). E ela o fez no contexto da luta do Movimento Negro Unificado, que ajudou a fundar em 1978.  

Foi o contato com o Partido dos Panteras Negras e suas lutas que deu a Florestan Fernandes uma medida das potencialidades que a junção da luta antirracista com a luta anticapitalista apresentava para a sociedade brasileira. Essa convicção do autor e militante está plasmada nos textos de combate reunidos em O significado do protesto negro (2017). 

Afirmo, por fim, que a luta contra a opressão é feita por gente de carne e osso, com história, rosto, pele e cultura. Para a ordem, como diria Rodolfo Walsh, essa gente não tem biografia, apenas prontuário. Mas é com essa carne, com esses ossos, com seus silêncios e sua astúcia que chegamos aqui. A luta contra a escravidão dos negros foi uma luta contra o capitalismo tal como ele se apresentava no tempo e no espaço do Brasil. A persistência dos quilombos é também uma afirmação de uma sociabilidade anticapitalista. Que eles floresçam!

Referências bibliográficas

FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

_______________________. Capitalismo dependente e Classes Sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

_______________________. A revolução burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

_______________________. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Globo, 2007.

____________________. A integração do negro na sociedade de classes. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008.

____________________. O significado do protesto negro no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2017.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48. ed. São Paulo: Global, 2003.

GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

Um comentário sobre “Para ler Florestan Fernandes e o racismo no Brasil

  • 10 de abril de 2023 at 10:51 pm
    Permalink

    Obrigado por publicar um ensaio sobre o pensamento do imprescindível professor Florestan Fernandes! Impossível entender o Brasil sem lê-lo!

    Reply

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *