Jennifer Nascimento Pereira[1]
Priscila Monteiro Chaves[2]
Olinda Evangelista[3]
Artur Gomes de Souza[4]
O amanhã hoje
As “crises são os melhores momentos para oportunidades”, afirmou Jorge Paulo Lemann na Folha de S. Paulo (2020). De acordo com a exigência de velocidade na ação para não perder a oportunidade e “garantir o futuro”, a Fundação Lemann (FL) lançou em sua página, em 23 de abril, o compromisso #PeloFuturoAgora (2020e; 2020f). Foi dada a largada para a corrida da Fundação ocupar a janela de oportunidades aberta, defendendo abertamente o ensino a distância em todas as etapas da Educação Básica, durante a pandemia, embora ressalvando tratar-se de mera “redução de danos” (FL, 2020a).
De acordo com a Forbes (2020), Lemann é o segundo homem mais rico do Brasil, atrás somente do banqueiro Paulo Joseph Safra, com um patrimônio estimado de 19,9 bilhões de dólares, e o 35o do mundo. Sua fortuna “tem origem no Banco Garantia e nas marcas controladas pela 3G”, cujos sócios fundadores são Beto Sicupira e Marcel Telles, além dos sócios Roberto Thompson e Alex Behring (G1, 2017). A 3G gerencia a B2W digital, companhia de comércio e eletrônicos responsável pelas lojas Americanas, Submarino, Shoptime, SouBarato (G1, 2017). Segundo a Forbes (2019), a 3G administra grupos como a “Anheuser-Busch InBev, holding que controla a cervejaria Ambev, a Kraft Heinz, dona do ketchup Heinz, e o Restaurant Brands International, proprietário do Burger King”. Sua cultura empresarial faz escola e rendeu muitos processos por abuso e assédio (INFOMONEY, 2019).
Coerente com a afirmação de que seu negócio “é gente” (ENDEAVOR, 2020), Lemann avança ainda mais sobre a educação pública. A Gazeta do Povo noticiou que “um dos maiores players desse movimento de formação de grandes conglomerados do ensino é o empresário Jorge Paulo Lemann, […] principal acionista individual do Gera Venture, responsável pelos investimentos do Grupo Eleva Educação” (CORDEIRO, 2019). Em meio à pandemia, a Eleva Educação fechou um acordo com a Estácio para montarem a plataforma ‘Resolve Sim’ agregando aos conteúdos produzidos pela Eleva a metodologia digital da Estácio (RESOLVESIM, 2020).
A Fundação integra o Todos pela Educação (TPE), movimento de monopólios empresariais que atua na educação brasileira desde 2006, e juntos intervêm sobre a política educacional por meio de secretarias de educação, realizando ações junto a “municípios e governos estaduais ao redor de todo o Brasil” (FL, 2020d). Ambos consideram que uma parada no tempo estorvaria o movimento de produção e reprodução do capital, desse modo, as atividades de ensino remoto vêm sendo legitimadas sob o argumento da ineficiência e inexistência de estratégias no Ministério da Educação (MEC), crítica com a qual o Conselho Nacional de Educação (CNE) concorda (essa movimentação em futuro próximo merece nosso olhar cuidadoso). Em entrevista concedida a O Globo (2020) neste mês, a presidente executiva do TPE, Priscila Cruz, afirmou: “não dá para saber se o uso da tecnologia será ampliada (sic). Justamente pela falta de uma coordenação nacional, que deveria acontecer com a liderança do MEC mas inexiste, a gente tem uma dispersão muito grande de soluções e estratégias”. Pois bem, enquanto se apresenta o diagnóstico das fragilidades e possíveis hipóteses para que ‘parceiros’ privilegiados usufruam da pandemia, a venturosa solução assegura que a mudança da gestão política é absolutamente fundamental.
Desde os anos de 1990 a palavra de ordem de aparelhos privados de hegemonia burguesa e de intelectuais ligados ao Estado tem sido gestão. Ainda que o acesso às tecnologias seja a pauta do momento, ela permanece como núcleo nessa simbiose entre TPE e FL. Ao ser questionada sobre quais mudanças podem surgir na educação depois da pandemia, Cruz menciona a “demanda maior por planejamento: a gestão está sendo mais desafiada, […] e isso pode sim deixar um legado importante, porque a gestão é fundamental” (O GLOBO, 2020). Esse é exatamente um dos pilares do Formar, programa proposto pela FL, que convoca as redes públicas de educação do Brasil a alinhar “esforços entre secretarias de educação e escolas, […] aperfeiçoando as práticas de gestão e os processos pedagógicos” (FL, 2020d). Expandindo seu know how à educação pública, instituições como a FL sentem-se suficientemente confortáveis para fazer uso de um fajuto rechaço a uma educação totalmente remota em tempos ditos normais, sem, contudo, negar sua “oportunidade” durante o fechamento das escolas públicas em razão da Covid-19.
O argumento para a imposição do “aprendizado remoto”, em estreita afinidade com a Nota Técnica do TPE (2020a) emitida também neste mês, é o de que não se deve comparar ‘aulas a distância’ com ‘aulas presenciais’, mas comparar a primeira à não realização de aulas. Com esse preceito, qualquer medida poderia ser justificada em detrimento do “nada fazer”, legitimando-se, assim, o ensino remoto na Educação Básica.
Ademais da capacidade de imiscuir-se nas administrações educacionais dos entes federados, as mesmas secretarias oferecem o erário público na mesa de jantar – e o CNE[5] não se opõe! Assim, reincidem as velhas estratégias em novas conjunturas, fazendo perdurar as contradições que historicamente provêm de crises estruturais do capital e não da Covid-19 em si. Se por um lado o processo de fetichização reifica as relações sociais, de outro temos a personificação das coisas ou doenças, tanto faz! No caso em tela, faz-se uso de um vírus, que causa pavor em todos, para a abstração dos reais interessados, aqueles cujo lucro excedente depende também de respostas como a que segue: “Vai ter aula em casa. Chegou Resolve Sim. Um projeto feito em tempo recorde para ajudar você a chegar lá” (RESOLVESIM, 2020).
O consenso forjado entre intelectuais que conduzem aparelhos privados de hegemonia e aparelhos de Estado não manifesta nada menos do que vem compondo suas diferentes frentes de atuação, agora com um novo elemento, sob o arranjo da gravidade de um inimigo que provoca ainda mais temor. A defesa da EaD na Educação Básica por parte dos monopólios e governos começou muito antes da pandemia do novo Coronavírus. Em dezembro de 2018, foram aprovados o Novo Ensino Médio (BRASIL, 2017a) e a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017b), passando por cima das críticas e reivindicações de professores e estudantes que se mobilizaram nacionalmente em greves e ocupações de escolas (TOKARNIA, 2016). A nova regulamentação permitiu, dentre outros graves prejuízos, que 20% a 30% das horas letivas do Ensino Médio fossem feitas a distância, podendo chegar a até 80% para EJA (BRASIL, 2017a).
A EaD, ou ensino remoto, está longe de ser uma demanda de alunos e professores; os interessados imediatos são as empresas de ensino que negociam essa modalidade e com as quais os sistemas educacionais podem firmar convênios, além das empresas de tecnologia e ferramentas educacionais digitais. Ambas dispõem de uma miríade de atalhos para isso, além de seus aparelhos de ação política que se locupletam com o “poder econômico das frações da burguesia a que representa”, assim como com o “forte capital cultural e simbólico para a produção de consenso, articulando-se com expressivos segmentos da mídia” (CASIMIRO, 2020, p. 35). Os vínculos dessas organizações de construção e difusão de consenso são constituídos desde “seu núcleo definidor de pressupostos e diretrizes de orientação institucional, […] até um vasto contingente de membros ‘especialistas’ e de colunistas ‘convidados’, que também atuam nos meios acadêmicos e midiáticos, transbordando e capilarizando os valores comungados” (CASIMIRO, 2020, p. 35). Semelhante atuação conjunta transcende em muito a “mera” performance institucionalizada.
Duas frentes de intervenção
A FL afirma, modestamente, que seu “trabalho é apenas uma gota no oceano de desafios que se impõem sobre a educação neste momento”, são “medidas de redução de danos, ao mesmo tempo em que [seguem] juntos na busca pela proteção às vidas, à saúde e o retorno de todos com segurança às escolas o mais breve possível”. Como referido, no Compromisso #PeloFuturoAgora (2020e; 2020f) duas frentes foram estruturadas: “nosso compromisso com a educação” e “nosso compromisso com lideranças”, ambas articuladas ao que a FL designa “desafios complexos” relativos à garantia do direito à aprendizagem e à igualdade social. Mais de 30 organizações estariam envolvidas com o único objetivo de “minimizar os impactos do novo corona vírus na educação”. Cruzam-se a intervenção direta sobre os sujeitos da escola (professores, estudantes, pais, funcionários) com a intervenção sobre a administração da escola pública, tacada de mestre, sem dúvida, pois fecha as duas pontas necessárias para o domínio desse mercado gigante.
Na primeira frente (FL, 2020e) estão o portal ‘Aprendendo Sempre’, a ferramenta ‘AprendiZap’, o ‘Apoio às redes de ensino’ e o ‘Youtube Edu’. Na segunda (FL, 2020f), o ‘Corona no Paredão, Fome Aqui Não’, ‘Apoio a organizações e líderes’ e ‘Pessoas no Setor Público’. Não se trata de discutir cada um deles, entretanto, vale a pena realçar o desiderato de alguns. O ‘Corona no Paredão…’, por exemplo, resulta de parceria com o Instituto Gerando Falcões que mediaria a doação de mais de 200 mil cestas básicas virtuais – pretende atingir um milhão – para distribuição, por três meses, em favelas brasileiras. No caso dos dois outros projetos, um atua sobremunicípios para prevenção dos problemas de saúde e educação decorrentes do corona vírus, incluindo os povos indígenas do Xingu e Amazônia Legal, e o outro – com Fundação Brava, Instituto Humanize e República.org – envolve oito governos estaduais nas atividades relativas à Covid-19 de forma on-line objetivando a troca de boas práticas e a “redução de danos” nos locais atendidos.
Na primeira linha de ataque, o portal ‘Aprendendo Sempre’ potencializa o acúmulo existente (seja de ferramentas tecnológicas ou didáticas) para apresentar soluções para o “gerenciamento de crise, plano de contingência, comunicação, reposicionamento” (TECNOLOGIA EDUCACIONAL, 2020), léxico que não esconde a formação ideológica dos proponentes. Sem surpresa alguma no que compete às instituições que compuseram o Movimento pela Base, o grupo – um círculo vicioso retroalimentador da área – reunido para a elaboração desse portal gerou uma espécie de “curadoria de conteúdos e soluções gratuitas e úteis para promover experiências de ensino e aprendizagem fora das escolas” (APRENDENDO SEMPRE, 2020)[6]. Instigando a sensação de participação própria das plataformas interativas, na página inicial do Aprendendo sempre o usuário é invitado a explorar o seu conteúdo, com a prévia identificação como professor, gestor ou membro da família. Os resultados vão sendo gerados e já quase nos sentimos na EaD personnalité da Educação Básica! Acena-se, ademais, com a segurança de acessarmos “conteúdos pedagógicos alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que mostra[m] quais são as aprendizagens essenciais para todos os estudantes” (APRENDENDO SEMPRE, 2020).
O somatório das matérias do portal, de modo geral, é produzido majoritariamente pelos próprios proponentes, a maioria delas geradas no mês de abril de 2020, com um forte apelo às experiências bem-sucedidas, agenda de eventos virtuais (lives) e reprodução de materiais pedagógicos. Ainda que digam que o “intuito [seja] inspirar professores e gestores”, seu objetivo subjacente é produzir consenso em torno de uma espécie de desmaterialização da escola. Tal substância esvazia o debate político-educacional, seus fundamentos e concepções, em função da socialização de caricaturas quase automáticas das ditas práticas exitosas.
No projeto ‘Apoio às redes de ensino’, a FL oferece assistência técnica a redes estaduais e municipais de ensino mediante edital. As redes de Alquiraz (CE), Caruaru (PE), Embu das Artes (SP), Francisco Morato (SP), Jericoacara (CE), Itacaré (BA), Nova Odessa (SP), Olinda (PE) e São José dos Campos (SP) foram as escolhidas para “receber” o projeto da Fundação em parceria com a Imaginable Futures, organização filantrópica do bilionário Pierre Omidyar[7], fundador do sítio eletrônico Ebay, o maior ‘shopping’ virtual do mundo para comercialização de produtos. A parceria entre os bilionários aconteceu também em 2017, com um fundo de três milhões de dólares para ferramentas tecnológicas direcionadas à consolidação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (FL, 2018). Se naquele momento o mercado de recursos tecnológicos para a educação era impulsionado pela implementação da Base e pela reforma do EM, hoje, o necessário cancelamento das aulas para a prevenção da Covid-19 cai como uma luva para esses setores e as janelas estão francamente escancaradas.
Outro lançamento em meio à pandemia foi a ferramenta AprendiZap da Fundação Lemann e Fundação 1Bi, do grupo Movile[8] para alunos do 6º ao 9º ano (MEDEIROS, 2020). O AprendiZap é uma conversa automática que remete ‘conteúdos’ e exercícios. O estudante envia mensagem para um robô que responde encaminhando as atividades sequenciadas, disponíveis para todas as disciplinas obrigatórias do Ensino Fundamental, também em estreita afinidade com a BNCC. Se a semelhança da marketeira aglutinação – AprendiZap – com a ideia de ‘aplicar’ aulas prontas, padronizadas e a distância não é acidental, infelizmente, também não o é a substituição da atividade humana e política do professor pelo uso de robôs, dificultando ainda mais a nossa luta contra a cultura hegemônica que propagandeia que é possível ser empreendedor sem sair de casa. O ‘Youtube Edu’ se constitui de vídeos semanais que tratam da BNCC. Liga-se a ele a campanha ‘#FiqueEmCasa e Estude #Comigo’ para alunos de 5ª. a 9ª. séries do Ensino Fundamental e Médio. A ‘curadoria’ é feita pela Fundação.
A Nova Escola
Levando em conta que há muito professores e pesquisadores têm se manifestado contrários à precarização da formação e do trabalho docente via Educação a Distância e que, sobretudo, que essa é uma modalidade de ensino com legislação própria, observamos a ocultação daquilo que ainda não pode ser anunciado. Tratamos aqui do fato de que, nas últimas matérias, tanto naquelas assinadas pela Fundação quanto na Nova Escola[9], revista dirigida aos professores do Ensino Fundamental e “especialista em implementação da BNCC”, a FL não utiliza o referido termo, tampouco a famigerada sigla EaD. A expressão, quando aparece, é vulgarmente adjetivada com termos de fácil aceitação pelo senso comum, com potencial efeito de sentido positivo para aquele que lê: “educação com qualidade pedagógica a distância” (FL, 2020b, 2020c). Tendo em vista que nenhum investimento substantivo foi feito, seja nos fundamentos ou no modo de se operacionalizá-la, e que “cada elemento da língua só adquire um valor quando se relaciona com o todo de que faz parte” (ORLANDI, 2009, p. 23), qualidade pedagógica tem seu sentido produzido junto com excelência, dinamização e personalização do ensino (e seus derivados) (FL, 2020a). Tais expressões ganham destaque nos princípios obrigatoriamente seguidos pela Lemann. Isto é, falar em qualidade pedagógica dentro desse escopo é fazer com que termos que advêm de uma formação discursiva de perspectiva gerencialista deem a tônica para a sua compreensão, razão pela qual a gestão ou a “má gestão” educacional é intermitentemente referida.
É notório o modo como a FL intenta obscurecer a prática defendida e escamotear tanto a regulamentação da EaD quanto as opiniões adversas. O terceiro princípio que norteia suas ações é evidente: “Tecnologia é uma excelente maneira de viabilizar o acesso, escalar bons recursos e dinamizar as possibilidades de personalização do ensino, seja ele presencial e com o preparo e a orientação do professor, seja em contextos desafiadores e atípicos como o atual” (FL, 2020a). A polarização é falseada e o paralelismo é enunciado com outra expressão – em geral, ensino remoto – que elude o uso da expressão em questão e ainda a converte em plano esporádico. Fazendo uso de estratégias de persuasão desse tipo, dentre outras, Nova Escola engrossa esse caldo no processo de reconversão docente, buscando adequar esse profissional às novas exigências postas pelas frações burguesas em relação à formação da classe trabalhadora (EVANGELISTA; TRICHES, 2008).
Em tempos de pandemia, Nova Escola tem disponibilizado materiais para professores usarem no ensino a distância: “prepare-se para apoiar seus alunos com conteúdos e ferramentas digitais”, “continue ensinando com planos adaptados para ensinar a distância”, “aprenda a dar aulas cada vez melhores, quando e onde quiser” (NOVA ESCOLA, 2020). As chamadas otimistas não escondem o desejo de aproveitar a oportunidade arrancada da nova circunstância. Como bem demonstra seu histórico (PEREIRA, 2019), Nova Escola permanece pronta para ‘aplicar’ receitas na prática educativa e para oferecer saídas triviais para as situações adversas. E tudo isso com a compaixão, o conforto e a esperança no futuro típicos do universo rosa. Se não é mais possível “aplicar em sala de aula”, como os milhares de planos prontos e disponíveis em plataformas, a oferta se converte para o plano de aula virtual, com cínico apelo: “planos de aula para transformar qualquer casa em uma sala de aula” (NOVA ESCOLA, 2020a).
Enunciados como “o isolamento social pode ser uma oportunidade para aprofundar seus conhecimentos sobre a Base” e “25 cursos sobre a BNCC para fazer durante a quarentena” (BINBATI, 2020) levam à conclusão que a pauta da BNCC não será prejudicada pelo isolamento social. Ela permanece mais viva do que nunca e a pandemia será usada para compelir a sua implementação, dado que cada vez mais impetuosa está a demanda da burguesia de formar de acordo com ‘competências e habilidades’ cognitivas e socioemocionais focadas no desenvolvimento socioeconômico. Essa necessidade está posta em um contexto de novas exigências em relação à formação da força de trabalho com as mudanças no setor produtivo, em especial com as novas tecnologias de informação e comunicação, a difusão da microeletrônica e da automação (NEVES; MARTINS, 2015), aliadas ao desemprego estrutural. Vale ressaltar que Eduardo Deschamps, membro do CNE, em debate virtual realizado pelo TPE em aliança com o CNE, dia 23 de abril, afirmou: “[…] talvez o Brasil esteja mais preparado do que nunca teve, porque a gente tem uma BNCC[10] que descreve os direitos e objetivos de aprendizagem que a gente deve ter no caso do Ensino Fundamental, estão lá indicados ano a ano, e que pode servir de bússola pra fazer um bom trabalho nesse período” (TPE, 2020b). Pois então!
Lutaremos pela vida agora e depois
Segundo Gilberto Calil (2020), “mesmo com a enorme subnotificação e a baixíssima testagem, o ritmo de crescimento da pandemia no Brasil é três vezes e meia superior à média mundial, e muito superior a TODOS os demais países que já têm mais de 1.500 mortes”; na tarde de hoje, dia 28, foram contabilizadas “474 mortes em 24 horas. Uma morte a cada 2 minutos e 58 segundos”. Estamos morrendo. Todavia, não basta à burguesia ceifar vidas; ela precisa da morte do espírito. “Essa maneira peculiar de sucumbir dificulta que os outros se apercebam desse declínio imensurável” (BRECHT, 1976, p. 151).
O perfume da resiliência e o fetiche da tecnologia dissimulam esse perecimento e convencem professores, gestores, estudantes e familiares a sobreviver às adversidades cada vez mais perversas. São sonegados direitos de todas as naturezas, tal como o básico direito constitucional dos finais dos anos de 1980 de “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. Compreender o histórico de atuação da Fundação Lemann permite reconhecer o ‘falseamento das causas’ que levaram à proposição açodada do ensino remoto como concretização do “direito à aprendizagem” e da “mitigação das desigualdades”. Não de forma gratuita, as frações burguesas vêm decidindo, direta ou indiretamente, o que deve ser a educação dos filhos da classe trabalhadora, do que deve se ocupar a gestão educacional, o que os professores precisam saber e como assegurar a “aprendizagem”, a que relações de trabalho docentes devem se submeter.
A educação no Brasil vem sendo diligentemente “preparada” (TPE, 2020b) e a classe dominante vem triunfando sob o engodo do cuidado com os “vulneráveis”, eufemismo benemerente para classes trabalhadoras. Há uma farsa incubada nessa tragédia e não podemos prever todos os desdobramentos de sua eclosão. Maquinada à sombra do que nos assola e certa de nossos lapsos, quer nos fazer crer que o vírus personificado pode ser a razão da imposição da degradação da escola pública. Esconde-se nessas iniciativas do capital educador, obviamente, a luta renhida, e a qualquer custo, para que nada de crucial ocorra contra a ordem vigente. É preciso assegurar a aceleração da exploração da força de trabalho, da produção de mão de obra docilizada, da retirada de direitos trabalhistas e sociais, das condições gerais de produção e reprodução das relações sociais de produção no âmbito da divisão internacional do trabalho, na qual o Brasil é subordinado.
A Fundação Lemann e seus “parceiros” desejam antecipar o futuro, trazer para “agora” a formação do trabalhador dos anos 2030. Desejam aproveitar a “janela de oportunidades” e, para “mitigar” as desigualdades sociais, promover uma tragédia humana na escola pública. Na montanha russa cruel em que todos os dias acordamos e dormimos, diante das ameaças à vida da classe trabalhadora em razão do desejo de acumulação do capital, nós, o que faremos? “Contra a nossa mortífera burguesia […], lutaremos, nós mesmos, pela vida, por toda vida e por toda a vida. Agora e depois da pandemia”. (DEMIER, 2020). Não nos é lícito fugir dessa luta!
Referências
APRENDENDO SEMPRE. Como promover Educação em tempos de Coronavirus. 2020. Disponível em: <https://aprendendosempre.org/>. Acesso em: 28 abr. 2020.
BINBATI, Ana Paula. 25 cursos sobre BNCC para fazer durante a quarentena. Nova Escola. São Paulo. 14 abr. 2020. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/19047/25-cursos-sobre-bncc-para-fazer-durante-a-quarentena>. Acesso em: 22 abr. 2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017b. Disponível em: <https://bit.ly/2HH3dhC>. Acesso em: 12 abr. 2020.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília, 2017a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm>. Acesso em 12 abr. 2020.
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BRECHT, Bertolt. Romance dos Três Vinténs. Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 1976.
CALIL, Gilberto. Mesmo com a… 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/photo?fbid=3273864349291502&set=a.276294112381889. Acesso em: 28 abr. 2020.
CASIMIRO, Flavio Henrique Calheiros. A tragédia e a farsa: a ascensão das direitas no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2020.
CORDEIRO, Tiago. Lemann investe pesado em educação. E sonha influenciar o futuro do país. Gazeta do Povo [07/10/2019]. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/lemann-investe-pesado-em-educacao-sonha-influenciar-o-futuro-do-pais/>. Acesso em: 24 abr. 2020.
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TODOS PELA EDUCAÇÃO. Ensino a distância na educação Básica frente a pandemia da COVID-19. Abril de 2020a. Disponível em: <https://www.todospelaeducacao.org.br/_uploads/_posts/425.pdf?1730332266=&utm_source=conteudo-nota&utm_medium=hiperlink-download>. Acesso em 12 abr. 2020.
TODOS PELA EDUCAÇÃO. Webinário – Regulação e Gestão Educacional durante a Emergência de Saúde Pública. 2020b. 1:18-1:19. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=T2_h7-X5m28>. Acesso em: 23 abr. 2020.
TOKARNIA, Mariana. Reforma do Ensino Médio e ocupações em escolas marcam 2016. Agência Brasil, [S. l.], 21 dez. 2016. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-12/reforma-do-ensino-medio-e-ocupacoes-em-escolas-marcam-2016-veja>. Acesso em: 12 abr. 2020.
TOKARNIA, Mariana. CNE autoriza atividades não presenciais em todas as etapas de ensino. Agência Brasil, [S. l.], 28 abr. 2020. Disponível em: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-04/cne-autoriza-atividades-nao-presenciais-em-todas-etapas-de-ensino>. Acesso em: 28 abr. 2020.
[1] Professora na Rede Municipal de Ensino de Florianópolis, SC. Mestre em Educação. Pesquisadora do Grupo de Investigação em Política Educacional (GIPE-Marx, UFSC).
[2] Professora do Departamento de Linguagens, Cultura e Educação (DLCE), Centro de Educação da UFES.
[3] Professora voluntária na UFSC. Professora Sênior na UNOESC. Pesquisadora do Grupo de Investigação em Política Educacional (GIPE-Marx, UFSC).
[4] Membro do Grupo de Investigação em Política Educacional (GIPE-Marx, UFSC) e do Coletivo de Estudo em Marxismo e Educação (Colemarx-UFRJ).
[5] Em reunião virtual realizada na última terça-feira (28 de abril), o CNE emitiu parecer que autoriza “a oferta de atividades não presenciais em todas as etapas de ensino, desde a educação infantil até o ensino superior”. Difícil é definir o que não pode ser contabilizado como atividade não presencial, uma vez que essas “podem ser ministradas, por exemplo, por meio de videoaulas, de conteúdos organizados em plataformas virtuais de ensino e aprendizagem e pelas redes sociais, entre outros. Podem ainda ser oferecidas por meio de programas de televisão ou rádio; pela adoção de materiais didáticos impressos e distribuídos aos alunos e seus pais ou responsáveis; e pela orientação de leituras, projetos, pesquisas, atividades e exercícios indicados em materiais didáticos” (TOKARNIA, 2020). Por outro lado, a prioridade foi muito bem especificada por Deschamps, relator do parecer: “muito além da carga horária, o principal que a gente coloca ali é que se consigam cumprir os objetivos de aprendizagem previstos no currículo e na Base Nacional Comum Curricular” (TOKARNIA, 2020).
[6] Citamos algumas: Banco Interamericano de Desenvolvimento, Banco Mundial, CIEB, Ensina Brasil, Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Instituto Rodrigo Mendes, Fundação Telefônica, Imaginable Futures, Instituto Natura, Instituto Península, Instituto Sonho Grande, Itaú Social, Movimento Colabora, Movimento Pela Base, Nova Escola, Oi Futuro, Portal Iede, Porvir, Todos Pela Educação e Unicef.
[7] A FL, junto a seu parceiro comercial Omidyar Network, criou a plataforma de aulas a distância, padronizada e traduzida para diversos idiomas, a Khan Academy. A FL doou mais de 10 milhões de dólares e Omidyar um valor entre um e cinco milhões. Durante a pandemia, a plataforma visa um mercado potencial de mais de um bilhão de estudantes que estão em suas casas. Somam-se a ele o Google, Carlos Slims (dono da Net e Claro), Bill Gates (Microsoft), Reed Hastings (Netflix), Ann and John Doerr (investidor inicial de Google, Amazon e outras), The O’Sullivan Foundation (investidor de empresas de tecnologia, incluindo a empresa de engenharia que trabalhou no Iraque no pós-guerra), Valhalla Charitable Foundation (bilionário que atuou no Ebay), Tata Trusts (investidor indiano que atua em telecomunicações, internet e automóveis) e o Bank of America (Khan Academy, 2020).
[8] Holding investidora do iFood, SpoonRocket e Sympla; dona da PlayKids, Wavy e Rappido Marketplace.
[9] Nova Escola foi criada e mantida pela Fundação Victor Civita por quase 30 anos, quando, no contexto de falência do Grupo Abril, foi transferida em 2015 para a Fundação Lemann. Desde sua criação, NE foi uma importante ferramenta de convencimento dos professores para implementação das políticas de adequação da educação brasileira aos ditames do capital e em constante articulação com Organismos Multilaterais, como Banco Mundial e UNESCO.
[10] Segundo relatório de 2016, publicado em 2018, em que FL expôs suas ações realizadas, dentre elas estava a secretaria executiva do Movimento pela Base que incluía: “mobilização para a consulta pública, coordenação de leituras críticas nas diferentes regiões (entre a 1ª e 2ª versões da BNCC) e sistematização de contribuições para produção de versão da BNCC ao Ministério da Educação (que a encaminha ao CNE), dentre outras ações [que] sugerem seu protagonismo no MPB” (Neves; Piccinini, 2018, p. 194).
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