Em 17 de dezembro de 1916, numa pequena e provinciana São Paulo, nascia aquele que se tornaria o maior pensador do cinema brasileiro: Paulo Emílio Sales Gomes.
Ensaísta, crítico de cinema, professor, roteirista e escritor, Paulo Emílio escreveu uma interpretação do Brasil pelo cinema. Em sua obra, buscou pensar o país unindo duas frentes de reflexão sobre o cinema. De um lado, Paulo Emílio inaugura uma reflexão de inspiração marxista sobre o cinema brasileiro, não em sentido proselitista, mas buscando pensar a produção cinematográfica como uma indústria, para a qual importa a totalidade do processo produtivo. Em outras palavras, Paulo Emílio pensa os processos materiais de produção de filmes brasileiros, um processo intimamente ligado ao consumo, à distribuição e à circulação de mercadorias, fortemente influenciado, como os outros processos produtivos nacionais, por influências externas – importação de filmes e equipamentos, crises econômicas, endividamento dos produtores nacionais etc. Por outro lado, Paulo Emílio alia a atividade de historiador arqueológico do cinema brasileiro à de esteta, isto é, discute o que pode haver de específico numa linguagem cinematográfica brasileira sem separar essa discussão de um inventário dos filmes nacionais.
Mas Paulo Emílio chegou ao cinema após certa peregrinação de juventude. Militante de esquerda, envolveu-se ainda jovem em uma polêmica com Oswald de Andrade sobre arte e engajamento social. Em 1935, após lançar um único número da revista literária Movimento com seu amigo Décio de Almeida Prado, foi preso pelo governo de Getúlio Vargas em 1935. Escapou da prisão por um túnel escavado com as mãos e, rastejando do presídio, fugiu para Paris, de onde voltou em 1939, antes do começo da 2ª Guerra Mundial.
Em Paris, aprendeu a amar o cinema. Por Plínio Sussekind Rocha (1911-1972), membro fundador do Chaplin-Club (1929-1931), primeiro cineclube brasileiro, no Rio de Janeiro, Paulo Emílio conhece Chaplin e Einsenstein. Acompanhando na Europa os acontecimentos em torno aos Julgamentos de Moscou, em 1938, desliga-se do Partido Comunista Brasileiro e recusa veementemente toda e qualquer aproximação com o stalinismo, postura que manteve durante toda a sua vida, sem, no entanto, deixar de lado o comunismo.
De volta ao Brasil, Paulo Emílio matricula-se na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. Conhece Antônio Cândido, a quem apresenta o marxismo. Em 1940, com Cândido, seu antigo amigo Décio, mais Ruy Coelho e Gilda Melo e Souza, forma o grupo denominado por Oswald de Andrade de “chato boys”. Com eles, monta o primeiro cineclube de São Paulo, em 1940, fechado no ano seguinte pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas. Ainda em 1941, os chato boys lançam a revista Clima.
Após terminar a faculdade, Paulo Emílio retorna à França, onde permanece até meados dos anos de 1950. Nesse período, frequenta assiduamente a Cinemathèque Française. Aproxima-se de André Bazin, o crítico que deu à Nouvelle Vague sua diretriz teórica. Paulo Emílio escreve, nesses anos, um estudo sobre o cinema de Jean Vigo (morto prematuramente em 1934) e uma biografia de seu pai, Eugène Bonaventure de Vigo, conhecido pelo pseudônimo de Miguel Almereyda, famoso anarquista morto na prisão em 1917. Paulo Emílio reconstitui todo o contexto social e político do começo do século XX como forma de mostrar o enraizamento da estética de Jean Vigo na sua realidade histórica. Publicado em 1957, por esforço de Bazin, o livro ganhou o Prêmio Armand Taller, da Association Française des Cinémas d’Art et d’Essai (AFCAE).
Ainda na França, em 1946, após o fim da ditadura de Vargas, Paulo Emílio filia o segundo cineclube de São Paulo à Federação Internacional dos Clubes de Cinema (FICC) e, em 1948, também à Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF), da qual Paulo Emílio virá a ser vice-presidente, em 1951. Ao retornar ao Brasil, em 1954, Paulo Emílio assume a direção da Filmoteca do recém fundado Museu de Arte Moderna de São Paulo. Com isso e as filiações feitas na França, conseguiu Paulo Emílio, então, reunir material para constituir o primeiro acervo da nova instituição que virá a fundar, em 1956: a Cinemateca Brasileira. Dessa época até 1965, Paulo Emílio escreveu uma coluna semanal sobre cinema no famoso Suplemento Literário do jornal Estado de São Paulo, consolidando seu nome como o principal crítico de cinema do país.
Em 1960, com a fundação de Brasília, muda-se para o Distrito Federal. Em 1964, junto com Jean-Claude Bernadet, Nelson Pereira dos Santos e outros, deveria dar início à graduação em Audiovisual da Universidade de Brasília, projeto interrompido com o golpe militar. Em 1965, ajudou a fundar a 1ª Semana do Cinema Brasileiro, embrião do Festival de Brasília, o mais antigo do país, fundado em 1967. Nessa ocasião, designando para o júri da Semana de Cinema não apenas pessoas ligadas ao cinema, mas pessoas de todas as áreas, inclusive políticos, Paulo Emílio disparou: “O cinema é interessante demais para ficar a mercê de seus críticos”. É também em 1967 que escreve, junto com sua segunda esposa, a escritora Lygia Fagundes Telles, e o cineasta Paulo César Saraceni, seu primeiro roteiro de cinema, Capitu, evidentemente inspirado em Machado de Assis.
Em 1972, Paulo Emílio finalmente defende sua tese de doutorado, posteriormente publicada em livro com o título Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte (1974). Na tese, retoma o método da meticulosa pesquisa de reconstituição sócio-histórica que o consagrou na França. Em 1973, escreveu “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, ensaio que se tornou praticamente um manifesto para as novas gerações, que o reproduziram informalmente em cópias mimeografadas, fazendo-o circular em praticamente todo o meio universitário brasileiro. Nessa obra, ele afirma suas teses talvez mais contundentes: apenas com o Cinema Novo o povo brasileiro pode se ver na tela – mas o povo brasileiro não se viu na tela dos cinemas, porque não frequentava o cinema para ver Cinema Novo – na nossa condição, não se trata de ser subversivo, mas superversivo – a dialética ocupante-ocupado define o ser outro brasileiro – somos todos ocupantes e ocupados – somos e não somos numa terra que nos é constantemente desterritorializada.
Em 1977, após ganhar o Prêmio Jabuti pelo romance Três mulheres de três PPPs, Paulo Emílio Sales Gomes faleceu em 9 de setembro, aos 60 anos, vítima de um infarto fulminante.