Pequena história da minha vida cabocla

Por Marcela Darido

Gostaria de compartilhar com vocês um pouco da minha vida, para que possamos nos conhecer, mas, também, para que não nos esqueçamos que não somos sempre fortes, corajosos, que nem sempre temos a força e a coragem necessária. O racismo deixa marca em todos nós e é necessário que nos cuidemos, que cuidemos uns dos outros, assim como nossos ancestrais, para poder então nos erguer rumo a derrota final do capitalismo, machismo e do racismo, que é coletiva, que age como uma tsunami caboclo, uma tormenta que ao destruir, reconstrói, liberta e cura. Citei apenas os nomes que valem a pena ser citados, que fazem parte da cura, para aqueles que foram veneno saibam, essa história não é sobre vocês. Nessa história vocês são mera materialização do racismo na minha vida, de uma jornada que se encerra. Hoje vocês servem como exemplo da síndrome pós-traumática da escravidão, de colo ela se materializou na minha vida.

Para o bem e para o mal, sempre tive uma relação muito profunda com meu corpo, e é a partir dele que quero discutir como o racismo, na vida de cada caboclo e cabocla, se expressa como uma repetição da história da escravidão, abrindo chagas profundas.

No meu corpo se expressou durante toda a minha vida as marcas do racismo, mas também da minha luta pela sobrevivência. Desde que nasci lutei para conseguir respirar, com 4 anos de idade tive que ser operada e, é a partir daí, que consigo diminuir minha fragilidade física e começar a me desenvolver, desenvolver o meu corpo. Mas, mal sabia naquela época que esse processo era um pequeno aviso de como seria a minha vida.

Forte e muito enérgica desenvolvi força, agilidade, vitalidade. Minha família costuma dizer que eu não tinha medo de nada, me arriscava, me equilibrava nos lugares mais perigosos, e também usava meu corpo para sumir – minha mãe que o diga…

Mas vamos para a parte que gostaria de dividir com vocês. Desde a minha adolescência, aquele corpo que era só meu, começa a ser objeto de desejo dos outros, papo também para outro dia, o que quero mesmo expressar aqui é que, no momento onde começo a me entender como mulher, meu corpo já não me pertencia. Foi fruto do desejo, da inveja, todo mundo tinha algo para mandar, para mexer, etc.

Aqui começa na minha história o roubo do meu corpo, a minha transformação em mercadoria, a minha transfiguração pessoal. Quando eu olho para trás vejo coincidências incríveis. Quem me conhece, já conheceu também a minha tatuagem de ferro quente, é nesse momento em que eu faço uma queimadura no meu braço, feita a ferro, sem entender os caminhos pelo qual eu andava, entusiasmada pela minha coragem e força, desenvolvidos contra todos os ataques que meu ego e meu subconsciente já haviam sofrido até esse momento, eu marquei meu corpo. Ali tinha um recado, para todos, inclusive para mim, essa cabocla tem dono, esse corpo pertence à um senhoril. Uma história inocente, fruto de uma aventura de amigos, deixou no meu corpo um recado, que só pude ler muitos anos depois.

O tempo passou, inúmeras outras violências aconteceram, me fazendo me odiar, me desligar do meu corpo. Mas, por diversos motivos decidi continuar a jornada do corpo. Entrei na graduação em Educação Física, mais corpo e mais história. Foi lá que eu comecei a entender que não era eu, que todos os problemas que achavam que eram pessoais, eram, na verdade, um reflexo do olhar branco sobre o meu corpo.

Muito entusiasmada por ter chegado tão longe para uma mulher cabocla, já nos primeiros momentos fui obrigada a “entender” meu lugar. Quando fui me matricular, a primeira pista. Não por coincidência, nenhum “veterano” chegara perto de mim para fazer o conhecido trote, eu fiquei de canto olhando e fumando. Depois de algum tempo, um desconhecido, hoje grande amigo, me pediu um cigarro, e foi assim que descobriu que eu era uma ingressante, apesar de ter a cara da faxineira. Não era raro nas minhas conversas com os trabalhadores/as da USP, que os mesmo ficassem surpresos ao saber que eu era uma aluna.

Pois bem, isso foi só o primeiro passo. No primeiro ano, ansiosa pelas novas amizades, não entendendo ainda o mundo onde estava entrando, decidi ir a um desses jogos universitários. Bom, foi nesse momento que eu entendi o que estava de fato acontecendo comigo. Em meio a uma festa, formou-se uma roda de mulheres, em sua maioria brancas, em volta de mim. (TOQUE DE IUNA). Essa mulheres começaram a jogar e cuspir cerveja em cima de mim (isso acontecia bastante na minha faculdade, mas não com esse teor) enquanto faziam isso, me xingavam de tantas coisas. BIXETE CACHORRA foram as palavras mais leves que ouvi naquele momento. Foram alguns minutos que, para mim, duraram anos.

Lá eu entendi que, se por um lado, aquele corpo que era objeto de desejo, também era objeto de raiva, ira, inveja. Eu não sabia por que faziam isso comigo, juro que até hoje não entendo totalmente. Não consegui nem reagir, enquanto meus poucos e bons amigos começaram uma treta com essas mulheres, eu só consegui sair, fui fumar um baseado, não conseguia digerir, não conseguia gritar, não fui forte o suficiente para enfrentar. Me senti impotente, como um caboclo amarrado no pelourinho, que sem poder responder, aguenta firme cada chibatada do feitor, não chora, não demonstra dor ou fraqueza… Segui em frente, curando essas feridas, mas as cicatrizes sempre ficam, não se fecham.

Naquele momento se materializava a raiva branca sobre a mulher cabocla, eu não entendia, admirava aquelas mulheres, achava elas muito melhores, mais bonitas, mais inteligentes que eu. Mas elas me odiavam, simplesmente pelo que eu era, ou melhor, pelo que significava para elas, não era suficiente para elas serem a mulher, a figura que sempre aparecia no meu caminho, como a Senhora de Engenho, a que apesar de incompleta, por não ser homem, era humanizada, era amada, era sempre a escolha dos homens que saciavam seu desejo carnal comigo, a mulata, para encontrar o verdadeiro amor em mulheres como elas.

Com 31 anos, as contas já se perderam de quantas vezes minha subjetividade foi massacrada, torturada, por ser trocada pela branca, por ver como os homens que passaram na minha vida, muitas vezes me escondendo, desfilavam, apresentavam suas companheiras para a vida, demonstravam tanto amor e carinho por elas, um amor que jamais seriam capazes de me oferecer. Por muito tempo acreditei que era culpa minha, não entendia direito como o racismo funcionava, acreditava no que o espelho distorcido me mostrava, eu devia ser mesmo vagabunda, fácil, não podia ser querida nem amada, pois não tinha merecido. Não entendia que, travestido no desejo sexual, se escondia a violência do domínio. Mais do que uma aventura sexual, se tratava da velha forma racista de dominar, de adestrar os caboclos a partir da dominação selvagem do corpo das mulheres caboclas. Essa dominação que a cada experiencia fazia com que eu me sentisse menos gente, menos mulher, menos.

Já refém do meu próprio corpo, aprendi também que não podia ser mente, pensamento, racionalidade, inteligência. Esse é o “poder” do homem branco, e isso ficava claro em cada aula, em cada piada racista, sexista dos professores, nas histórias de assédio e abuso que percorriam os corredores. Só em pensar em levantar meu braço, para fazer uma colocação, ou mesmo uma pergunta, me lembro, eu tremia, um medo irracional tomava conta de mim, não entendia, mas agora entendo, era um alerta interno, que me apontava que deveria entender o “meu lugar”. Lá no fundo, uma parte de mim tinha percebido que aquele lugar não me pertencia, que deveria estar lavando o chão, fazendo a comida daqueles homens, que não devia falar com eles, apenas abaixar a cabeça e no máximo balbuciar um SIM SENHOR. É nesse período que me desligo totalmente do corpo que já não era meu, parei de me exercitar, de praticar esportes, rompi com aquela relação boa da criança que controlava seu corpo, sabia da sua força, que destemida, enfrentava o medo, por saber do que é capaz.

Ah, mas toda aquela situação me despertou um ódio, uma rebeldia, uma vontade de mudar o mundo. Conheci aí o movimento estudantil, a esquerda. E de forma inocente usei toda a força que me sobrava, e como uma escrava que organiza um levante contra seu senhorio eu me dediquei. Mal sabia, ou melhor não esperava, encontrar tanta hostilidade. Costuma-se dizer que quando uma mulher avança nenhum homem retrocede, SIC. Quem falou isso com certeza não reparou que quando uma mulher cabocla avança, levanta a sua voz, desperta a atenção, TODOS OS HOMENS e MULHERES BRANCAS retrocedem na mais perfeita união contra a força vívida dessa mulher desumanizada que deseja liberdade, deseja a liberdade humana, deseja a sua própria liberdade.

Foi a partir da militância, que todas aquelas cicatrizes que carregava se abriram, se aprofundaram, sangravam tão fundo que quase morri. Aí meu corpo parou de funcionar, se descolou de mim, minha alma duvidava de sua existência, me sentia uma máquina. Na força do ódio batalhei, enfrentei o diretor branco que gritava na minha cara, as ameaças de professores, os olhares feios, a repressão da polícia. Mas não entendia que toda essa luta se transformava em “capital social branco”, que assim como Simão, o Cireneu, usei minha força para ajudar a carregar a cruz de Jesus (o BRANCO) e paguei pelo meu pecado.

Racismo por todos os lados, seja ele programático, de negação da importância da questão racial, das pautas caboclas, do apagamento das vozes dissonantes caboclas, da perseguição política, difamação etc. Incontáveis violências, e quanto mais eu tentava lutar contra, mais violentas eram as respostas brancas. Desde acusações – aqui de outra mulher cabocla – de que eu estava levando traficantes para casa, de cobranças sobre a necessidade de “me colocar no meu lugar” – que às vezes significava propostas diretas de abandono de uma carreira acadêmica para militar onde tem caboclos, às vezes vinha na forma da raiva aberta da minha posição social confortável, fruto da batalha inenarrável de uma mãe solteira, etc. Poderia aqui dar milhares de exemplos, mas darei um último, que expressa o nível de controle que os combatentes da branquitude de esquerda queriam ter sobre o corpo caboclo: 

Veja o absurdo, cheguei a ser chamada para uma “conversa” sobre a relação amorosa que estava tendo com um “contato”, nossa, parecia um sonho, um homem me dizia como deveria agir na relação com o homem que eu amava, para que eu não destruísse os laços da organização com o mesmo. Aqui senti meu corpo sendo destituído, vendido, negociado em nome de uma relação política que nada tinha a ver com o que sentia. Eu não conseguia entender, mas agora entendo que era esse o meu significado naquele espaço, um corpo caboclo, que por um lado era a prova viva do não racismo de um setor, da pseudo preocupação antirracista, que servia para trabalhar em prol da branquitude. Seja para acalmar a raiva cabocla das merdas que falavam e faziam, seja para ser diretamente prostituído numa relação que para eles só significava vantagens políticas. Aquela conversa não era sobre mim, ou minha relação, era uma lição que deveria ter aprendido, do meu papel, do meu lugar.

Sentia o peso de tudo isso abater sobre o meu joelho, passei anos procurando médicos para resolver meu problema e nada sanava aquela dor mortal. Eu continuei, já bambeante, mas meu corpo já demonstrava os limites que se instauravam no mais profundo da alma. De repente me encontrei descendo a ladeira da vida, num skate. Foi muito pra mim, não entendia direito o que acontecia, não tinha ideia do que fazer, me sentia fraca, um rato, tinha nojo de mim mesma, me sentia dependente desse veneno que se instaurou em minhas veias, sofria diversos ataques de pânico, a loucura da ansiedade do racismo tomou conta do meu ser.

Então é chegado o momento, o meu limite. Na loucura da procura incessante, da necessidade flamejante de matar aquela dor, de estancar o sangue que jorrava das cicatrizes abertas do racismo, tentei me matar. Me envenenei, procurando o remédio para a dor que me dominava, três vezes consecutivas. Não morri, mas por um certo tempo perdi o controle total do meu corpo, não conseguia falar direito, não conseguia sequer levantar um copo sem derrubar. Enquanto algumas pessoas bradavam contra mim, me acusavam de egoísmo, egocentrismo, frescura, falta de macho, entre outros, sem perceber que o que refletiam em mim eram seus próprios monstros, alguns poucos amigos me ajudavam, a comer, a tomar banho, a dormir, a viver. 

Dentre esses, gostaria de relembrar uma mulher especial, Jaciara, cabocla sapatão e terceirizada, uma irmã que conheci nesses caminhos da militância, que juntou toda a sua força para me acordar, me ensinar a andar, a respirar, a viver. Da sua forma, me mostrou o que não estava conseguindo ver, que aquela minha derrota representava a derrota dela e de muitas outras mulheres caboclas com as quais me encontrei na vida e na luta. Foi a partir da mais dura verdade que ela me convenceu que eu merecia sim viver, e que eu poderia sim me levantar.

Foi difícil deixar para traz toda aquela dor, entender como o racismo, que na época já entendia teoricamente, se materializava em minha vida. Anos de terapia se passaram para que pudesse cicatrizar as feridas, algumas ainda estão abertas, cheguei na minha terapeuta carregada por outra grande amiga, Aurélia, balbuciando minhas mazelas. E com muito cuidado uma outra mulher cabocla, minha terapeuta, me ajudou a entender o monstro que me devorava por dentro, o monstro que eu mesma havia criado como um comportamento de sobrevivência, adaptação ao mundo que me queria morta, me queria animal domado, sem voz, apenas servindo, servindo e servindo.

Anos andando no escuro, tentando reacender a minha própria luz, sem saber se um dia conseguiria ver. Anos de luta para conseguir sair do labirinto escuro da minha graduação, eu tinha ataques de pânico só de pensar em pôr os pés na minha faculdade. Mais anos para saber quem eu era, e o que eu queria, um movimento que tirou o peso das minhas pernas que, com medo de caminhar, travou meu joelho. 

E com muito esforço fui parar na pós-graduação em Economia. Uma vida nova começava, um pouco mais forte e mais crente da minha força fui caminhando, não sem desafios, claro. Se já era ruim uma cabocla numa graduação imagina na pós, só eu sei o medo que passei ao ser entrevistada pelos homens brancos, ouvir os comentários brancos sobre a minha tese cabocla sobre racismo, quantas vezes saí da sala de aula para chorar, o quanto me senti excluída – passei praticamente um ano sem orientador –, quantas vezes pensei em desistir, quase cedi de novo ao poder da branquitude, amedrontada pelos caboclos que ali estavam, como fruto da luta cabocla por cotas na pós. Eu tentava, em vão, explicar o racismo, mas eles só ouviam identitarismo, reformismo, besteira, coisas que não dizem respeito ao mundo econômico, etc.

Mas dessa vez, com a lição já aprendida, decidi fazer diferente, não estava mais sozinha, haviam outros caboclos e caboclas, que como eu sentiam o peso de ocupar esse espaço, de ser bucha de canhão de uma política que era odiada – e ainda é – pela branquitude ali instalada. Nos juntamos, nos organizamos, lutamos, ensinamos, construímos, alguns seguiram seus próprios caminhos, mas uma coisa é certa, todos nós nos fortalecemos, e a nossa força amedrontou. Ora, que despautério, caboclos reunidos fazendo piadas sobre a branquitude racista, levantando a voz, a cabeça, formulando, confabulando. Ainda hoje pagamos pelo nosso pecado.

Agora sem medo de cara feia eu tento prosseguir, curando minhas feridas, pensando, construindo pensamentos que curam, que alertam e que mostram para caboclos e caboclas como eu, que essa loucura não é nossa. Minha voz se tornou o eco, minhas palavras hoje soam como os raios de Oyá, que trovoam as vozes imortais das guerreiras caboclas que me antecederam. Minha vontade verdadeira e reluzente de verdade, de liberdade, hoje funciona como o espelho de Oxum, que por um lado reflete a beleza, delicadeza e força cabocla e, por outro, devolve o veneno do olhar branco que tenta colocar na minha pele os seus problemas. E cada passo, cada fortaleza que construo em conjunto com meus camaradas, traz de volta as forças representadas pelos Orixás, que nos foi roubada, por nos ser necessárias para a vida, para a luta, para a resistência, para poder, a partir da subversão, construir a liberdade.

Não me enganam mais os falsos revolucionários, não me enganam mais os novos Senhores, não me enganam mais os capitães do mato. Hoje eu vejo com a clareza dos guerreiros da mata, minha flecha é uma só, mas é certeira. O meu caminho ainda não acabou, posso tropeçar no percurso, mas hoje sou capoeira, não caio, mas sei fazer cair, derrubo, mas não mato, e fiz da arte da luta cabocla revolucionária minha fortaleza, meu remédio, meu destino. A cada dia se revela nas cantigas, histórias, danças, na herança que nos deixaram nossos ancestrais, uma nova lição, um novo recado, uma verdade que precisou ser escondida para que pudessem ter acesso aqueles que com coragem desejam continuar a luta que se iniciou com o primeiro caboclo escravizado que pisou nesse “Novo Mundo”.

Coletivo Clóvis Moura

Coletivo de pesquisadoras e pesquisadores negros. Sua luta é pela projeção da interlocução negra na academia.

Um comentário sobre “Pequena história da minha vida cabocla

  • 10 de dezembro de 2020 at 11:47 am
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    É impressionante a força de alguém que é judiado pela vida e consegue achar um caminho sem volta para alcançar vitórias. Parabéns, Marcela.

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