A personalidade reificada apega-se com mais tenacidade a si mesma
quanto menos tem si mesma.
A modernidade é marcada, em um de seus núcleos fundantes, pelo aparecimento do sujeito na cena histórica: por um prisma, iniciado por Descartes, o sujeito seria aquele que se define por si mesmo a partir de seu próprio pensar racional; por outro, no jusnaturalismo – como sugerido por C. B. Macpherson –, o sujeito se definiria pela propriedade privada. De um lado, puro processo da interioridade – assegurada pela existência de Deus (veja-se a 4ª meditação cartesiana). Por outro, pura externalidade como externalização (realização do indivíduo), a posse tornada algo público e garantida pelo direito (pelo Estado) e, por isso, representando o indivíduo. Adiante, já no século XIX da teoria europeia, ambas as coisas são problematizadas: nem muito ao céu da subjetividade em si mesma, nem muito à terra do para si da propriedade privada. Quem opera isso, fechando o cenário que tem um de seus pontos altos no romantismo de J. W. von Goethe, é G. W. F. Hegel. O “advento da teoria social” a partir da filosofia hegeliana (como diz Marcuse em Razão e Revolução), joga nova luz sobre a questão: as mediações sociais são o cerne da produção do indivíduo, não sua finalidade (a propriedade, então, é uma mediação – e diria outro pensador do século XIX que é uma mediação de formação das classes além dos indivíduos propriamente ditos; tal como a capacidade de reflexão, própria do “sujeito transcendental” – ponto alto da “interiorização” iniciada com Descartes –, seria um dos momentos derivados da práxis – alienada ou não –, não seu cume).
O Wilhelm Meister, de Goethe, se forma pela adversidade da experiência. Esta não se dá pela decisão do indivíduo sem antes travar uma batalha com o mundo. Sua formação é uma síntese do processo da vida – vida como algo amplo, não o simples fato do indivíduo existir: planta não se forma, apesar de respirar. Nem tudo merece o título de sujeito somente porque é vivo. O espírito hegeliano se forma por sua passagem pelo mundo, pela história: são as mediações que importam, que agregam conteúdo ao sujeito abstrato (“vazio”). Não por acaso, o subtítulo de seu livro mais famoso: ciência da experiência da consciência. Em uma palavra: Bildung, experiência formativa. É o processo que dá o tom da coisa: a consciência muda de figura a cada momento e só tem sua forma completa na projeção final: no Absoluto. Em cada momento é uma “contradição em processo” – como dirá Marx, adiante, sobre o capital –; não bastasse, se sobrepõe ao momento anterior e é superada pelo posterior. Sua “essência”: nunca ser igual a si mesma.
Ora, até aqui, a subjetividade não se fixa definitivamente em si mesma (“interioridade”) nem em sua externalidade. E em Hegel ainda há algo que vigorará pelos séculos: a possibilidade de formação se dá na relação com o outro (grosso modo, interação) e na relação com a natureza (trabalho). Até aqui, a subjetividade não se autodecreta. Marx potencializa Hegel: a interação com o outro é relação de classe, ou mediada por ela; o metabolismo com a natureza é trabalho duplamente alienado: o indivíduo não tem posse do instrumento, tampouco de si – ele se torna instrumento do capital que, por sua vez, aparece como sujeito automático e abstrato (que está em todos lugares sem ser imediatamente – sem mediações – identificável a algo concreto). Marx antecipa a categoria da Halbbildung, semiformação, que será um dos temas de T. W. Adorno.
A experiência formativa, já no escopo teórico do século XX, se dá pelo trabalho de fazimento de si e do mundo: trabalho vivo não-alienado. Dar-se-ia na capacidade de, por força própria, usar as mediações em seu favor: a luta por reconhecimento seria a luta contra a identificação reificada ao capital – Adorno chamaria de não-idêntico. Ora, em que processo o indivíduo poderia lutar contra a coisificação de maneira isolada e, ao mesmo tempo, massificada? Kant, numa passagem até hoje insuperada, diz que o caminho da Aufklärung, do Esclarecimento, somente seria percorrido por um público – isto é, não individualmente; e nunca pela publicização da vida privada. A própria experiência da emancipação – seja através do uso público da Razão (Kant), seja pela transformação das mediações da sociedade (Marx) – é um processo coletivo – e assim sempre será, se se quiser falar a verdade sem qualquer tipo de fantasia.
A semiformação, uma formação substitutiva, tal como teoriza Adorno, se dá de modo duplo: tanto o indivíduo é levado a se identificar com o “mastigadão” deformado da profusão midiática (altamente propagandeada visual e sonoramente – veja, por exemplo, O fetichismo na música e a regressão da audição, de Adorno), quanto é produto de uma sociabilidade alienada, relações sociais formatadas a partir não da interação entre indivíduos, mas da imposição de parâmetros pelo capital em seu automovimento.1 A produção da indústria cultural, diferente de como é entendida correntemente, não é uma massificação, algo imposto de fora, ou de cima, que deforma o sujeito. Ao contrário, a indústria cultural produz os sujeitos, não apenas os manipula. De outra maneira, ter-se-ia um curto-circuito: tudo que pode ser manipulado é porque já foi formado em alguma instância – a questão é: em que lugar e tempo isso se deu? Ter-se-ia o caso de um sujeito além do tempo, e se cairia no equívoco habermasiano da colonização: sem tal imposição externa seria razoavelmente harmônico.
O tipo de “formação” atual, por ser um movimento no qual o indivíduo se vê em autonomia para decidir sobre o que e como se formar, tem algo de autoritário. Tanto faz absorver parâmetros reificados como critérios para inserção na sociedade de classes – e assim a manter como a forma natural (que se instala como segunda natureza nos indivíduos), ou mesmo a forma mais elevada da existência social –, quanto implica em impor tais parâmetros àquilo ou àquele que não se identifica: mais que massificação, um traço de fascismo. A semiexperiência, ainda que tenha a participação do indivíduo, poda sua autonomia de um fazer e refazer sem parâmetros preestabelecidos. Os indivíduos fazem, mas não sabem o que fazem; operam, mas de acordo com o movimento quase imperceptível da dominação da sociabilidade pelo capital.2
Tal autoritarismo tem mão dupla: tanto o indivíduo decide, por si, como se formar – e para isso articula discurso e fragmenta a história para se legitimar –, quanto, como consequência, tende a eliminar toda existência do diverso: “A semiformação é defensiva: exclui os contatos que poderiam trazer à luz algo de seu caráter suspeito” (Adorno). Ou se pensa e age igual, ou se é anulado (“cancelado”, dizem). É preciso que todos se identifiquem e, ao mesmo tempo, que se representem como diversificado. Qualquer desvio do padrão imposto, ou quando se entra em contradição com tal padrão, se torna difícil de explicar: apela-se à moral, à deturpação da natureza (Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, é um exemplar; Kátia Abreu, ruralista, outro. E haveria tantos outros. Porém, bastam como exemplares).
De tal modo, nesse processo moderno da decadência das possibilidades de experiência – e do fechamento quase total das possibilidades de formação pela experiência mais ou menos autônoma –, a formação substitutiva é uma elevação de traços isolados ao primeiro plano – traços que se tornam irrelevantes exatamente porque isolados, afastados mecanicamente das mediações. Não se trata de deformação, que implicaria impor qualquer alteração a um modelo primordial. Tampouco se trata de uma simples formação pela metade. O ataque duro do capital não é direto: ele impõe a subversão da massificação tornando-a experiência autêntica, fazendo o indivíduo senhor de si… como títere. Ele tudo pode na medida em que em nada adere; é um sujeito vazio, não apresenta contrapartida – tal como concebem Pierre Dardot e Christian Laval em A nova razão do mundo –, que pode ser preenchido por demanda – seja a da ordem vigente, seja a da moda (que não deixa de ser a da ordem floreada).
* * *
O sentido tradicional de formação, tal como concebido pela moderna filosofia alemã, tem ao menos um elemento que serve para se pensar, ainda, as possibilidades da Bildung: ao mesmo tempo em que absorve os parâmetros da sociedade burguesa, como condição e mediação da experiência formativa, deve dela se distanciar. O momento da crítica é de suma importância. Não a crítica como simples palavrório, como teoria. Antes, a práxis, crítica ativa, atividade revolucionária, que não se adapta, tampouco se identifica; que é intransigente mesmo lá onde precisa se adequar minimamente.
No âmbito atual, a autoafirmação da subjetividade prescinde da história. Somente a utiliza como acessório para, de alguma maneira, legitimar um discurso, seja qual for, ainda que, por vezes, a deturpando para alcançar um resultado. O princípio de desempenho, diria Marcuse, que tudo absorve e ressignifica, inverte a situação: o indivíduo não é resultado de um processo histórico-social e de sua experiência formativa neste processo; ele se serve do processo, remodelando-o a bel-prazer, para justificar seja o que for. Nisso, é claro, uma das pontas da ideologia se apresenta com força: esquarteja a história e dela faz uso lacunar.
Se não há mais experiência, a subjetividade se dá como que por mágica. Ela é um dado que o indivíduo profere, sem conexões com o passado, com o processo e com as projeções. A definição se dá por uma afecção – um acidente, diria Aristóteles –, elevando-a à primazia. O que não serve se anula; o que serve, é deturpado, invertido. Não é o cogito cartesiano, o Eu sou simples; agora o que vige é um Eu sou que reduz o mundo à sua órbita: a personalidade reorganiza a experiência histórica como se fossem dados matematizáveis. Quanto menos espaço para a experiência do diverso, mais o indivíduo se agarra a um simulacro de si, às formas já estabelecidas socialmente, enquadra-se, anula-se e se diferencia somente ao ser igual. Ao mesmo tempo, coloca abaixo de si os demais, mesmo quando o discurso é “coletivo”. A experiência do diverso é socialmente desqualificada. Quem ousa, tem decretada sua morte social. O indivíduo é sempre igual a si mesmo: qualquer experiência do diverso é afastada antes mesmo que possa oferecer qualquer risco à certeza a priori.
O indivíduo autocentrado, e coisificado por excelência, não é mais mediado pelo mundo: ele é mediação primordial, a verdade emana dele. De outra forma, ele aparece como a encarnação da história, do “espírito do mundo”3, da verdade a ser realizada. É uma personalidade que supostamente detém todo o desenrolar do processo, o “salvador da pátria”, o herói hipostasiado – sem heroísmo.4
Assim, se a formação se dá por decretos dos detentores da verdade, num mundo no qual a definição biológica (vulgar) e a autodefinição tomam de assalto o lugar da construção pelo processo, prescindindo de mediações, que tipo de revolução seria possível – ou desejável? Ao que tudo indica, a experiência que tem sido possível de modo hegemônico nesse quadro complexo, no qual os atores se esbatem numa sala escura trancada (como Huis Clos, de Sartre), é uma experiência coisificada, sem tempo para terminar exatamente por se compreender autêntica – ou por não se perceber antiexperiência. O bloqueio, que parece vir de cima, é levado adiante até com mais afinco por seus fiéis críticos. A personalidade autoritária, reificada por excelência, aparece até mesmo lá onde dá suspiros de oposição àquilo que a coisifica: eles não sabem o que fazem e fazem mesmo assim.
Vinicius Xavier – Núcleo Brás | Psol pela Base
Referências
- O Marcuse da década de 1940 chama isso de “aparato”; após a década de 1950 – ou a partir de Eros e Civilização, de 1955 –, dá o nome de “burocracia” ligada ao “princípio de desempenho”. Oskar Negt e Alexander Kluge formulam como um poder abstrato do capital em impor formas na medida em que toma para si, e as repõem a bel-prazer, uma das sínteses da vida humana em sociedade: as relações sociais – fetichismo da produção capitalista, não apenas da “mercadoria”. Tratei disso aqui: XAVIER, V. dos S. Centralidade da crítica ao trabalho: apontamentos sobre a categoria trabalho nos Manuscritos de 1844 e nos Grundrisse de Marx. Revista Educação e Filosofia, v. 30, n. 60, pp. 575-602, jul.-dez. 2016. https://bit.ly/centralidadedacríticaaotrabalho.
- O capital, portanto, é núcleo gerador da totalidade da sociedade e da sociabilidade. Não se trata de o identificar com a “economia”, em sentido amplo e vulgar (economicismo), tampouco com algo concreto (dinheiro, poder político, maquinaria etc.).
- Em 1806, Hegel lecionava em Iena e viu a passagem de Napoleão por lá. Teria dito na ocasião: “eu vi o Espírito do Mundo: ele andava a cavalo”, referindo-se àquele que encarnava, de fato, a transformação da história e do mundo moderno.
- Escrevi sobre isso aqui: https://contrapoder.net/colunas/lula-livre-para-que/