Pessoas com deficiência na pandemia da Covid-19: o que o capacitismo tem a ver com isso?

Por Marinalva Oliveira1 & Anahí Guedes de Mello2

Na estrutura social contemporânea a percepção da deficiência é formada a partir dos valores ideológicos da classe hegemônica para a conquista e manutenção das relações de dominação, afastando quem não atenda às suas demandas arraigadas numa sociedade baseada na maximização da produção, do lucro e da exploração. Assim, a capacidade dos corpos para o trabalho tende a ter valor dentro de uma escala produtiva, ao passo que as vulnerabilidades e precariedades serão acentuadas à medida que aquele corpo responder ou não às condições exigidas pelas estruturas capitalistas de poder (Mello, 2020). Desse modo, “o capacitismo também tem relação com o aperfeiçoamento do sistema capitalista, à medida que há o estabelecimento de um ideal de corponormatividade que corrobora com a manutenção e aperfeiçoamento desse sistema econômico” (Gesser; Block; Mello, 2020, p. 18). 

Se o modelo presente na agenda neoliberal já era excludente para as pessoas com deficiência porque impunha uma ideia universal de pessoa, as circunstâncias atuais, agravadas pelo contexto da pandemia da Covid-19 enquanto crises sanitária, política, econômica e humanitária, mostraram um aprofundamento das situações de precariedade para as pessoas com deficiência. Ainda que os problemas enfrentados nesse contexto possuam uma origem histórica, a maioria é gerada pela ordem social de produção e reprodução da vida material. 

De fato, por causa do capacitismo as pessoas com deficiência se encontram em condições de vulnerabilidade e negação de direitos, mas o impacto da pandemia da Covid-19 sobre elas potencializou as desigualdades sociais. Isso porque as diretrizes e normativas dos órgãos e organismos de saúde para proteger e evitar a propagação da Covid-19 entre as populações humanas tendem a direcioná-las a partir de preceitos universais sobre corpo, cuidado e práticas de saúde, contribuindo para a maior vulnerabilização da população com deficiência e de todas aquelas representativas de grupos sociais que não se adequam a eles e por isso devem ser consideradas grupos prioritários à vacinação contra a Covid-19. No caso das pessoas com deficiência, o atendimento prioritário a elas em situações de risco, emergência humanitária ou estado de calamidade pública, o que é o caso da crise sanitária da Covid-19, está garantido pelo artigo 11º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e os artigos 9º e 10º da Lei Brasileira de Inclusão. O descumprimento recorrente dessas normativas constitucionais se configura em práticas de capacitismo de Estado.

O capacitismo é a discriminação e a opressão contra pessoas com deficiência ao considerá-las inferiores, incapazes de produzir, trabalhar, aprender, amar, cuidar, sentir desejo e serem desejadas (Mello, 2016; Gesser; Block, Mello, 2020). Em algumas situações mais imbricadas e complexas socialmente, essa vulnerabilidade se acentua quando atravessada por outros marcadores sociais, como gênero, classe, raça/etnia, geração, escolaridade e sexualidade, dentre outros, possibilitando compreender como as relações sociais são construídas, como as sociedades se estruturam, como as disputas de saber-poder são forjadas e como as formas de governo e gestão da vida são constituídas. 

A cultura capacitista, construída ao longo dos séculos, é a responsável pela falta de políticas públicas de educação, saúde, trabalho, habitação, transporte, lazer e cultura para as pessoas com deficiência, ocorrendo um esvaziamento de direitos e demandas que, por sua vez, é acentuado por barreiras arquitetônicas, comunicacionais, metodológicas e atitudinais em um conjunto de espaços ou situações. 

Todas as formas de opressão e exclusão das pessoas com deficiência, aprofundadas com a pandemia, tendem a permanecer. Seu aprofundamento no atual cenário, bem como o enfrentamento às barreiras impostas diariamente, denunciam a ausência de políticas públicas e sociais e a precariedade da vida das pessoas com deficiência em sociedades capitalistas. Por outro lado, está colocada a possibilidade de surgimento de mobilizações sociais que pressionem pela criação de políticas públicas estruturadas com vistas a garantir direitos às pessoas com deficiência.

O desafio é desconstruir abordagens da deficiência baseadas no modelo biomédico, passando a adotar, para o alcance de políticas públicas verdadeiramente inclusivas, um enfoque social da deficiência. Essa perspectiva da deficiência compreende que o problema central do está no ‘déficit’ da sociedade capitalista-burguesa que exclui, oprime e se mantém, hegemonicamente, pela produção e reprodução das desigualdades sociais. 

Assim, qualquer que seja a ‘natureza’ da deficiência, os principais desafios a serem enfrentados residem em promover a qualidade das interações e relações entre a pessoa com deficiência e o ambiente, provocando rupturas a múltiplas barreiras insensíveis à diversidade corporal. O que está em nossa ‘lente de aumento’ é a opressão em torno das condições de vida que delimitam a capacidade de ser e fazer da pessoa com deficiência. A emancipação e libertação de todas as formas de opressão contra a pessoa com deficiência só será possível se interseccionada com uma mudança estrutural da sociedade brasileira contemporânea em relação à compreensão da deficiência não só como um marcador de diferença, mas também uma categoria de análise marxista.

A realidade, evidentemente, impõe inúmeros desafios, dos quais nem as políticas de inclusão não têm dado conta de superar, dado que sua superação envolve rupturas com as condições concretas em que se produz e mantém as desigualdades sociais no modelo societário capitalista. 

A acentuação dessas desigualdades, processo aprofundado com a aprovação, durante o governo Temer, da Emenda Constitucional nº 95/2016, que congela por 20 anos os gastos públicos especialmente em educação e saúde, encontrou terreno fértil em um contexto em que a necropolítica (Mbembe) foi assumida como projeto de governo de Bolsonaro. Ainda assim, diante dos efeitos da pandemia sobre o nosso país será necessário um longo processo de reconstrução de instrumentos e recursos para os segmentos mais vulneráveis e precarizados da sociedade brasileira, a partir de mais investimentos em políticas públicas e sociais de acesso e permanência em áreas como educação, saúde, assistência social, emprego e renda etc. Para isso, urge a revogação imediata da referida Emenda Constitucional n° 95/2016 para a retomada da disponibilização do orçamento público para as temáticas sociais. As pessoas com deficiência não podem mais esperar, elas também querem e precisam de vacina no braço e comida no prato.


GESSER, Marivete; BLOCK, Pamela; MELLO, Anahi G. Estudos da Deficiência: interseccionalidade, anticapacitismo e emancipação social. In: GESSER, Marivete; BÖCK, Letícia Kempfer; LOPES, Paula Helena (Orgs). Estudos da Deficiência: anticapacitismo e emancipação social. Curitiba: Editora CRV, 2020. p.17-35. 

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.

MELLO, Anahí G. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro. v. 21, n. 10, p. 3265-3276, 2016. 
MELLO, Anahí G. Corpos (in)capazes: a crítica marxista da deficiência. Jacobin Brasil, n. especial, p. 98-102, 2020.

Referências

  1. Doutora em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente é professora associada IV e pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e coordenadora do Laboratório de Inclusão, Mediação Semiótica, Desenvolvimento e Aprendizagem (LIMDA).
  2. Antropóloga, doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente é pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética; pesquisadora associada do Núcleo de Estudos sobre Deficiência da UFSC. É também coordenadora do Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e membro do GT Estudios críticos en discapacidad do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO).

Marinalva Oliveira

Professora; pesquisadora na área de Aprendizagem e desenvolvimento de pessoas com síndrome de Down; Ex Presidente do ANDES-SN; Militante do Coletivo Rosa de Luxemburgo no ANDES-SN; Militante na base do ANDES-SN e dos Direitos das pessoas com deficiência.

4 comentários sobre “Pessoas com deficiência na pandemia da Covid-19: o que o capacitismo tem a ver com isso?

  • 24 de maio de 2021 at 3:02 am
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    Muito bom artigo!

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  • 24 de maio de 2021 at 1:15 pm
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    Excelente artigo em assunto como o capacitismo, que precisa ser cada vez mais discutido e difundido em toda a sociedade.

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  • 7 de junho de 2021 at 12:40 pm
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    Bom dia, vamos divulgar bastante para que mas pessoas possam conhecer um pouco mais do capacitismo.
    Muito bom, parabéns pelo artigo.

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  • 17 de abril de 2023 at 2:36 pm
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    Excelente !!!!

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