Por que Zinho se entregou? Ou, as eleições municipais de 2024 chegaram.

Seropédica, 26 de dezembro de 2023.

O que fez o líder da maior milícia do Rio de Janeiro se entregar, nas vésperas do Natal? O que o fez dar esse presente natalino para seus adversários, que disputavam com ele o chão das ruas do Recreio, Terreirão, Beira Rio, Barra da Tijuca, Vargens, Campo Grande, Santa Cruz, Itaguaí, Seropédica e Nova Iguaçu a partir dos múltiplos negócios que geravam de milhões? Porque depois de ter seu sobrinho assassinado pela polícia e incendiar 35 ônibus, vagões de trem para escapar de um cerco ele se rendeu? Porque desistiu da dinastia de liderança que sua família mantinha à frente da milícia, desde seu irmão Carlinhos Três Pontes, passando por Ecko? Foi o medo de ser assassinado pelas forças policiais? Talvez o receio de ser liquidado por Tauã ou Juninho Varão, seus inimigos milicianos mais próximos?

Sim, todos esses fatores podem ter pesado nesse induto natalino às avessas, mas há um fator mais pesado, em todos os sentidos. Zinho perdeu a sustentação política. Aqui está a chave. Claro que toda a mídia vai voltar-se, mais uma vez, para as características individuais do “bandido mais procurado pela polícia”, o Lampião da vez, escolhido para ter sua cabeça exposta nas vitrines dos meios de comunicação, enaltecedores dos grandes homens do Estado, guardiões da segurança e da ordem. A cabeça degolada ou rendição dá muito mais ibope. Detalhes sórdidos da crueldade sanguinária do facínora. As mortes que carrega, o sangue que espalha. Isso sim, vende, e distancia todos do grande jogo daqueles que por trás do palco, permanecem no controle do Estado, no executivo, legislativo e judiciário, conduzindo o pão e circo nosso de cada dia. A mídia continuará faturando com os destemétricos magnônimos comentaristas globais enaltecendo a refundação da democracia que garante que tudo mude para que tudo permaneça como está.

Zinho se entrega à polícia há exatos 6 dias após Lucia Helena Pinto de Barros, a deputada estadual Lucinha (PSD-RJ), ter sido afastada do cargo pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e tornar-se alvo de investigações da Polícia Federal (PF) e Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), que tentam apurar sua ligação direta com ele. Mas se tantos parlamentares possuem preservadas as trajetórias vinculadas à atuação miliciana, porquê Lucinha, com uma longa história na Zona Oeste, justamente agora, foi atingida? Tudo indica que aqui reside o eixo central da rendição.

Milícia, há muito tempo, deixou de ser joguinho entre indivíduos ou grupos de criminosos, em busca de grana e poder. Milícia virou jogo pesado de muito dinheiro e voto. Logo, nas vésperas da mais importante eleição do país, as municipais, em 2024, a retirada de Lucinha, do tabuleiro eleitoral, reconfigura todo o cenário. Esse fato se segue após outro movimento importante, que ocorreu há aproximadamente dois meses atrás, quando da nomeação do novo secretário de polícia civil do estado. O casuísmo que fez os deputados da Alerj alterarem a Lei Orgânica da Polícia Civil do Rio para permitir a referida nomeação fez parte das disputas por verbas disponibilizadas pelo Governador Cláudio Castro, no total de 4,5 bilhões de reais, provenientes de fundos estaduais temáticos, que foram autorizados pela Alerj a serem gastos em outras despesas, inclusive salários. Ou seja, o balcão de negociações que movimenta milhões de reais, de forma legal, dentro do Estado, conecta-se a milhões de reais ilegais, dos negócios milicianos, que estão fora e dentro do Estado, também. Esse balcão legal-ilegal, e aqui está o pulo do gato, torna-se decisivo para as eleições que se aproximam. Nesse grande tabuleiro, Lucinha e Zinho tornaram-se peças fora do jogo. Quem serão os novos personagens? Quem substituirá a madrinha, ou será a rainha? Quem montará os cavalos, à frente da tropa policial e miliciana? Quais serão os novos peões que irão matar e morrer nos confrontos dos grupos armados estatais e não estatais, vendendo violência e ocultando, por baixo do sangue, os interesses que se mantem? Que novos acordos serão fechados entre os grupos armados que controlam Zona Oeste e Baixada Fluminense, atravessando fronteiras de um território com mais de 6 milhões de habitantes, quase 50% do eleitorado do estado?

Entram em cena os interesses de várias municipalidades, com suas prefeituras e câmaras municipais. Novas regras do jogo foram criadas simultaneamente ao movimento de cada jogador. Muitas pessoas, em associações de moradores, escolas, postos de saúde, sindicatos, empresas de terceirizados, empreiteiras, igrejas, lideranças de movimentos sociais e todo e qualquer espaço de poder fazem suas vinculações na busca por ganhos, acordos, votos, vitórias, projeção, renovação e continuidade. A antessala da maior manifestação democrática do país se abriu, por trás dos ilustres convivas, na mansão à beira-mar, na ilha dos donos do poder, o cheiro de esgoto e sangue sobe, mas a música segue tocando, as flores perfumando ambiente e a maquiagem disfarça bem a decrepitude da canalha que baila.

Precisamos olhar para além da farsa da segurança pública que nos vendem a cada dia, para além de cada assassinato, seja de quem for, de ladrão a doutor, por bala perdida ou achada, nas telas da dor e da desgraça. Temos que encarar a miséria de uma sociedade que vive da morte de tanta gente, em chacinas, favelas e periferias e não nos alinharmos ao coro dos que consentem com tudo isso. Temos que questionar os que disseram que tudo isso ia mudar e que hoje perpetuam tudo isso em busca de apoio político no Congresso para passar suas migalhas de ajuda aos que são triturados diariamente, sem esperança. Olhemos nos olhos de cada mãe que tem seu filho assassinado, olhemos a face dos que foram despejados de dentro de si mesmos, na dor, desistência, de um futuro que não existe. Ou desmascaramos todo o jogo por trás do jogo e viramos o tabuleiro, ou nós seremos a próxima peça a ser comida.

É preciso descriminalizar as drogas e colocá-las no seu devido lugar, não como um problema de polícia, facções e chacinas, mas como problema de saúde, educação e cultura. É preciso desmontar e reconstruir o sistema do judiciário, passando pelas polícias e presídios. É preciso ouvir as maiores vítimas, sobre as quais a crueldade punitivista recolhe cada gota de sangue, na vingança dos quem tem sobre os que não tem, e transformá-las nas construtoras da política de segurança, não a que mata mas a que protege a vida. É preciso solidariedade de classe com os mais frágeis. É preciso compaixão, ao se colocar no mesmo lugar dos que são mortos. Matar ou morrer, nessa guerra, entre grupos armados do Estado ou não, submersos na corrupção, no crime, na vingança e na grana fará de qualquer vitória política uma miragem, que será desfeita no dia seguinte a cada eleição. Ou seguramos nos braços nosso futuro recolhido em espaços livres de medo, ódio, assassinatos e mentiras ou jamais sairemos desse labirinto chamado Brasil.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

José Cláudio Souza Alves

Professor Universitário, doutor em Sociologia. Autor do livro: "Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense"

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