Em 1988 o Partido dos Trabalhadores (PT) votou contra a Constituição Federal, mas desde 2016 a defesa da mesma Constituição passou ao centro da política petista. O que aconteceu nestes 28 anos, o PT amadureceu, reformas constitucionais resolveram as contradições do texto de 88, a esquerda se rendeu?
A Constituição de 88 certamente não melhorou. As emendas constitucionais aprovadas desde então apenas aprofundaram ainda mais a contradição entre as promessas de Bem-estar Social ao estilo europeu e a manutenção das regras econômicas que nos amarram à condição de periferia do capitalismo.
Neoliberais afirmam que o problema do Brasil é um Estado inchado que interfere demais na economia e que as soluções são políticas de austeridade fiscal e desregulamentação da legislação trabalhista e ambiental.
Por outro lado, sociais-democratas, que quando governo aplicaram, na melhor das hipóteses, um neoliberalismo moderado, mas quando discursam insistem na tese da possibilidade de domesticação do capitalismo brasileiro a partir de uma aliança dos progressistas contra a “elite do atraso”, que possibilite através de um programa desenvolvimentista e distributivista, garantir o bem-estar social do povo.
Neoliberais nem demandam grandes esforços para serem refutados, representantes que são dos mais endinheirados do mundo, no fundo defendem sempre que os trabalhadores devem ser mais explorados e receber menos serviços públicos, e que a natureza esteja sempre disponível à depredação. Aceitam no máximo políticas públicas pontuais para os mais pobres e se utilizam da crise ambiental para avançar na transformação da natureza em ativos ambientais negociáveis no mercado “verde”.
As teses social-democratas me parecem mais sofisticadas e por expressarem formulações oriundas e hegemônicas entre inúmeros partidos e intelectuais vinculados às lutas da classe trabalhadora merecem mais atenção.
Em primeiro lugar, o Estado de Bem-estar Social até hoje só foi realidade em uma parte dos países centrais do capitalismo, sequer alcançando a classe trabalhadora do país mais rico do mundo, os EUA. O Estado de Bem-estar social, enquanto estratégia de contenção das revoluções socialistas no continente europeu ao final da Segunda Guerra Mundial também não valeu para os “países tampões” da Ásia, como a Coréia do Sul, ou para os aliados árabes ricos em petróleo, como a Arábia Saudita. Mesmo onde foi mais forte, retrocede cada vez mais em função tanto da crise econômica quanto do desmantelamento da ameaça socialista do leste europeu.
Nos países da periferia do capitalismo, o Estado de Bem-estar Social é simplesmente impossível de se sustentar financeiramente devido ao baixíssimo PIB per capta e a consequente pobreza relativa dos países. Mesmo o Brasil só figura entre os países de maior economia do planeta porque é um país imenso, mas levando em consideração o PIB per capta somos um país pobre. Um imenso país pobre.
Para ilustrar, algumas comparações. Segundo o ranking do IDH, em 2018 a campeã mundial da qualidade de vida era a Noruega e o Brasil estava na 79ª posição. Apesar do PIB brasileiro (1.885,48 bilhões de dólares) ser mais de 4 vezes maior que o da Noruega (434,17 bilhões), o PIB per capta da Noruega (81.734,47) é mais de 9 vezes maior que o nosso (9.001,23). E mais grave, enquanto o gasto estatal per capta anual da Noruega em 2018 foi de 39.235 dólares, o nosso foi de apenas 3.464, 67. Notem bem, para alcançarmos o gasto estatal per capta anual da Noruega precisaríamos multiplicar nosso PIB por mais de 4,4 e entregá-lo inteirinho ao Estado.
Mesmo comparando com Hong Kong, que tem o menor índice de “Estado per capta” anual entre os cinco maiores IDHs do planeta, a situação do Brasil é sofrível. Para alcançarmos o “Estado per capta” de Hong Kong (8.897,91), tínhamos que entregar quase todo nosso PIB para o Estado.
Problemas estruturais somente são resolvidos com mudanças estruturais, nosso “otimismo da vontade” não muda a realidade. Somente superando nossa condição de economia periférica do sistema capitalista podemos garantir qualidade de vida para nossa população.
Em tese teríamos duas opções para deixar a periferia do sistema: ir para o centro ou romper com o sistema capitalista. Disse em tese porque na verdade a primeira hipótese está bloqueada por três razões fundamentais.
Em primeiro lugar, o colapso ambiental iminente impede que o modelo de desenvolvimento capitalista se expanda, ao contrário, a natureza demanda urgentemente a superação desse modo de produção ou as condições de reprodução da vida humana tendem a desaparecer. Como migrar da periferia para o centro do sistema se a própria sobrevivência do centro está comprometida?
Outra razão muito importante é que o centro do capitalismo não nos quer lá, e o imperialismo está aí para reprimir qualquer tentativa da periferia de ir para o centro. O capitalismo é um sistema produtor e reprodutor de desigualdade, seja entre pessoas, regiões ou países. O centro do sistema não pode renunciar à exploração brutal dos recursos humanos e naturais da periferia.
Finalmente, porque as classes dominantes brasileiras não querem fazer esta disputa, ao contrário, sócias do capital internacional, as classes dominantes brasileiras estão satisfeitas em cumprir o papel de feitores modernos do grande capital, desde que possam usufruir de alto padrão de vida através da exploração brutal da classe trabalhadora e da depredação sem limites da natureza.
Então, se tanto as rupturas necessárias para irmos ao centro do sistema quanto a própria ruptura com o sistema dependem da ação política da classe trabalhadora, e se a migração para o centro do sistema está bloqueada, fica evidente que o programa da classe trabalhadora brasileira só pode ser a ruptura com o capitalismo e a construção de uma sociedade pós-capitalista.
Durante décadas uma espécie de “reformismo revolucionário” amalgamou a ação política de reformistas e revolucionários em um chamado “movimento de pinça” que combinaria a mobilização dos movimentos sociais com a atuação por dentro do Estado. Entretanto, se no campo programático o “reformismo revolucionário” foi ficando cada vez mais reformista e menos revolucionário, o mesmo aconteceu com o “movimento de pinça”, cuja atuação por dentro passou a preponderar em relação a mobilização dos movimentos sociais chegando ao ponto das razões da luta por dentro interditarem a mobilização dos movimentos.
O resultado foi desastroso, limitando a experiência do governo do PT a uma versão branda do neoliberalismo, incluindo políticas pontuais compensatórias e estímulo ao consumo, que longe de produzir mudanças estruturais, derreteram ao se tornarem inviáveis em função da crise econômica de 2008.
A partir de 2013 um impressionante movimento de “placas tectônicas” vem marcando o ocaso da Nova República.
De um lado, o petismo perdeu sua capacidade de manter o povo fora das ruas. As grandes manifestações de 2013, as maiores de nossa história, com ampla participação da juventude pobre e periférica, longe der ser fruto de uma conspiração golpista, representam o profundo descontentamento de amplos setores da classe trabalhadora com o derretimento das poucas conquistas do período áureo do governo Lula.
Por outro lado, as classes dominantes encerraram o pacto social da Nova República, radicalizaram a agenda neoliberal, não aceitam mais os limites constitucionais à exploração dos trabalhadores e do meio ambiente e nem os limites constitucionais para a condução do jogo político.
“Na lógica dos negócios das grandes corporações que comandam o Estado, tudo e todos ficam subordinados à necessidade de: aumentar a taxa de lucro do capital pelo rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores; especializar as forças produtivas nacionais numa posição mais degradada na divisão internacional do trabalho pelo incentivo à produção de mercadorias de baixo conteúdo tecnológico — agronegócio e extrativismo mineral; abrir oportunidades de negócios para o capital pela privatização das empresas e serviços públicos; e garantir a sustentabilidade da especulação financeira com títulos públicos, subordinando o orçamento fiscal às exigências dos credores do Estado.”1
E por sua vez, os Estados Unidos encontram campo fértil para encerrar de vez a insubordinação brasileira à sua agenda internacional, a participação do Brasil no BRICS, através da Lava-Jato e da nova direita, tipo MBL, que logo ganham a adesão da direita tradicional.
Tempestade perfeita e Dilma é deposta, mesmo chamando o Levi e se comprometendo em fazer o contrário de tudo o que prometeu na campanha eleitoral. Traída pelo campo conservador e “atrasado” da frente ampla que sustentava politicamente os governos do PT e que se tornaram novamente aliados nas eleições municipais de poucos meses depois.
Com Temer e Bolsonaro a burguesia retoma o projeto do Levi (Guedes no atual governo), pisa fundo no acelerador e impõe as mais terríveis derrotas à classe trabalhadora e ao meio ambiente em décadas. No cenário internacional somos reduzidos a coadjuvantes da extrema-direita trumpista.
A classe trabalhadora segue inerte, hoje a pretexto da pandemia, mas desde antes, refém da busca desesperada do PT de recuperar a confiança do capital na sua capacidade de desmobilizar as lutas sociais.
E o que parecia ser o mais vergonhoso processo de capitulação do campo petista/cutista, a total desmobilização frente às reformas trabalhista e previdenciária, foi seguida pelo mais vergonhoso processo de aceitação da manutenção do trabalho presencial durante a pandemia nas indústrias e outras atividades não essenciais sem quase nenhuma resistência dos sindicatos. As poucas “greves pela vida” ou “greves sanitárias”, praticamente reduzidas aos profissionais da educação, seguem isoladas e invisibilizadas pela maioria da esquerda.
Vivemos hoje o pior dos mundos, um país governado pela extrema-direita com agenda neoliberal radical em plena pandemia de coronavírus. Além do desmonte radical das conquistas de décadas de luta da classe trabalhadora, vemos a promoção de um verdadeiro genocídio a partir do objetivo de atingirmos a “imunidade de rebanho” pela via da contaminação da população. E mesmo governadores e prefeitos que não são da base do governo, quando muito, procuram administrar o número de mortos buscando manter o funcionamento da economia no limite do colapso hospitalar.
Não se faz um genocídio sozinho e apesar de Bolsonaro ser o principal representante da ala genocida radical, uma das grandes lições desta pandemia é o escancaramento do caráter genocida do Estado brasileiro. O que já era claro para quem observa criticamente a política de segurança pública e o incremento da militarização, da população carcerária, dos mecanismos legais mais duros e da letalidade do Estado durante todo o período da Nova República, especialmente, por incrível que pareça, durante o governo petista.
A Nova República representou um sofisticado sistema de dominação política que permitiu a reprodução da profunda desigualdade social e os ajustes necessários aos interesses do grande capital ao mesmo tempo que incorporou a classe média, o sindicalismo e movimentos sociais urbanos a uma relativa segurança política, enquanto a pretexto da “Guerra às Drogas” impunha o aumento exponencial do encarceramento e das execuções da população pobre, negra, indígena e parda. Nas zonas rurais sequer cessou o extermínio de lideranças indígenas, sem terras, quilombolas e ambientalistas.
Neste momento, a esquerda segue hegemonizada pela disputa por dentro da ordem capitalista, em pânico diante das ameaças autoritárias da extrema-direita e hipnotizada pela ilusão de que a volta de Lula, o grande líder, nos conduzirá aos tempos de ouro do petismo. E que este, liderando a união dos progressistas contra a “elite do atraso”, vai finalmente realizar a mágica de, através do desenvolvimento e de políticas distributivas, prover bem-estar social para o povo brasileiro sem precisar de nenhuma ruptura com a ordem capitalista e a divisão internacional do trabalho. (Dessa vez vai dar certo!)
Política é disputa de programa, que varia de acordo com o ponto de vista de classe e depende de bom diagnóstico. Se erramos nas nossas análises não seremos capazes de produzir um programa adequado à nossa classe. Do ponto de vista da classe trabalhadora brasileira é impossível o bem-estar social nos marcos de uma sociedade capitalista, da mesma forma é impossível a superação do colapso ambiental neste sistema.
Esta é uma chave essencial para entendermos a crise em que a esquerda brasileira se meteu. Hegemonizada por um programa reformista inexequível, ao governar, o máximo que a esquerda conseguiu fazer foram políticas neoliberais moderadas por políticas assistenciais pontuais, isso enquanto a valorização das commodities permitiu. Quando deixou de permitir, o derretimento dos efeitos de tais políticas levou à desmoralização da esquerda abrindo uma avenida para o crescimento da extrema-direita.
É preciso romper a hegemonia do reformismo e do desenvolvimentismo entre a classe trabalhadora e a esquerda. E é preciso coerência entre a compreensão da necessidade de ruptura com o capitalismo e a prática política.
O “reformismo revolucionário” e a “tática de pinça” já demonstraram ser caminhos férteis para a dinâmica de burocratização e traição de classe. Ao disputar por dentro o Estado capitalista, o mínimo de sucesso na conquista de mandatos parlamentares e executivos já produz um intenso processo de burocratização, que somados ao processo de burocratização dos sindicatos, instigado pela legislação trabalhista, retira das bases de trabalhadores dos partidos e sindicatos a direção política das entidades que deveriam ser seus espaços de auto-organização. Métodos cada vez mais antidemocráticos são instituídos para garantir a hegemonia burocrática e os interesses de reprodução destas burocracias passam a ser o objetivo político dessas instituições.
Para colaborar para que a classe trabalhadora possa cumprir as tarefas de ruptura com o capitalismo e construção de uma nova civilização, e ao mesmo tempo nos proteger dos processos de burocratização, precisamos de uma organização política de novo tipo com programa, funcionamento, estratégia e tática radicalmente diferentes do que vem hegemonizando a esquerda brasileira até aqui.
Um programa que seja coerente com a impossibilidade de prover bem-estar ao povo sem ruptura com nossa condição de periferia do sistema e com a impossibilidade de migrarmos para o centro do capitalismo. Ou seja, um programa capaz de nos levar à construção de uma sociedade pós-capitalista.
Também é muito importante que o programa incorpore as imposições categóricas da natureza que exigem a descarbonização total e urgente da economia, o que por si só já demanda a superação do capitalismo em escala global. Não podemos reproduzir o desenvolvimentismo das experiências socialistas até hoje existentes.
E não podemos perder a oportunidade de, com o privilégio do nosso ponto de vista histórico, evitar os desvios autoritários que tanto favoreceram a degeneração burocrática e restauração capitalista nas experiências socialistas até agora existentes.
A estratégia central dessa organização deve ser a colaboração para a construção de mecanismos de organização popular desde as bases da sociedade, horizontais e radicalmente democráticos, que se transformem em um poder paralelo que venha a substituir o Estado burguês.
O poder político da burguesia tem base econômica, institucional, cultural e militar. Portanto, as organizações populares também devem buscar se constituir em economia popular, comunicação popular, cultura popular e autodefesa para que possam se constituir em poder político popular capaz de derrotar o poder político das classes dominantes.
Uma organização política desta natureza, para ser coerente com este programa, também precisa ser radicalmente democrática e horizontal. E não deve perder tempo com a inútil disputa por dentro do Estado, que nunca conseguiu sequer mudar o caráter genocida do Estado brasileiro, mas também abriu os flancos para a burocratização e traição de classe.
Tarefas difíceis, talvez irrealizáveis, mas claramente indispensáveis se combinamos na nossa análise o “otimismo da vontade” com o “pessimismo da razão”.
Dixi et salvavi animam meam.
Referências
- Plínio de Arruda Sampaio Jr., “Estagnação Estrutural” , Contrapoder, 4 de setembro de 2019 https://contrapoder.net/colunas/estagnacao-estrutural/