Porque os homicídios estão diminuindo no Brasil.

Num ano de inúmeras más notícias, a redução em 20% no número de homicídios no Brasil, em 2019, soa deveras alvissareira, mesmo que ainda continuemos com uma montanha de cadáveres amontoados anualmente no país. O problema é que esta boa-notícia traz um grande desconforto. Especialistas que analisam a segurança pública não sabem explicar o porquê desta redução. Enquanto o governo federal tenta faturar politicamente, atribuindo a redução ao seu endurecimento e apoio ao “bandido bom é bandido morto”, pesquisadores, institutos e mídia em geral não chegam a uma explicação convincente. Na procura de uma causa, percebe-se que ela depende da base analítica que se adota. Olhar para a atuação policial ou para a ação do crime organizado como fator decisivo, numa lógica binária e dual, não permite ver a realidade. O Estado tem posição decisiva e privilegiada na dinâmica criminal. Os agentes públicos de segurança, com destaque para oficiais, mas também para praças que operam diretamente nos negócios criminais, influenciam, sobremaneira, a forma de atuação, a geopolítica dos grupos criminosos, os negócios e os ganhos. A maciça estrutura criminal nacional não existiria sem a presença destes agentes. A eleição da extrema direita modificou a presença dos agentes de segurança nas dinâmicas criminais. Tráfico de drogas, tráfico de armas, grupos de extermínio, milícias, sequestros, roubo de carga, etc iniciam uma transformação no que se refere ao volume de negócios, controle, sistema de suborno, preço de extorsão e correlação com a política, com destaque para a eleitoral. Estas dimensões estão sendo renegociadas. Há uma nova mensagem no sistema que passa a circular. Traficante, miliciano, membro de grupo de extermínio, sequestrador e policiais militares, civis e federais repactuam as bases dos seus acordos. As mortes prometidas pelo “bandido bom é bandido morto” bolsonariano passam pela perda de ganhos que não é objetivo de nenhum grupo envolvido. O discurso do endurecimento se transforma em prática do consenso. Inicia-se uma reestruturação do crime. Evita-se o confronto direto “polícia-bandido”, com exceção do Rio de Janeiro, envolvido no projeto político-pessoal de Wilson Witzel, que produz a morte dos membros do CV e a aliança do TCP com as Milícias, em favorecimento desta. As facções evitam a guerra entre si, ampliam-se os mercados e as negociações interfacções, eleva-se o suborno, novos projetos políticos, com forte componente eleitoral, passam a orientar ações de dentro das corporações policiais e militares visando a capilarização a partir das vitórias nas eleições municipais de 2020. O momento é de grande acordo. De ganhos financeiros e políticos para o aparelho repressivo-militar em alta. Os correlatos de cada negócio criminal, não estatal-policial, passam também a minimizar perdas, o que casa com o projeto político-eleitoral da extrema direita, não só porque traficantes votaram e carrearam votos para este projeto, mas porque se vêm diante de uma inflexão do sistema, com capacidade de serem incorporados em antigos e novos negócios. A diminuição de homicídios reflete mais as reformulações em andamento, novas fronteiras e repactuações. A classe dominante percebe também novas possibilidades e fronteiras no gerenciamento dos ilegalismos resultantes do esgarçamento e ampliação do fosso das desigualdades. Suas vitórias com a perda de direitos dos trabalhadores, desmonte do Estado, privatizações e espoliação do meio ambiente joga na bacia das almas um número crescente de pessoas, que comporão o capital humano invariável do crime.

Esta reformulação se iniciou no governo Temer. Após a crise da guerra entre PCC e CV, nos presídios do Norte e a disputa por fronteiras, no mercado das drogas, a resposta pela extrema direita foi a incorporação da rede policial e militar em esquemas mais amplos de grana e poder político. Funciona assim: a crueldade das mortes nas rebeliões em presídios denota o que está em disputa. Identificado o volume e valor do mercado, abre-se negociação que passa pela incorporação dos agentes do Estado em quantitativos maiores e com patentes mais qualificadas de comando. Nesta elevação do patamar o projeto Federal se torna decisivo. Não é só a vitória do “mito”, é o estabelecimento de um projeto de poder que alça milicos/meganhas/milícias/facções (sendo estes últimos os bodes expiatórios de sempre) a um lugar central na fronteira de ganhos internos ao capital associado aos ilícitos/ilegalismos. Este projeto prevê maiores ganhos em função da dimensão criminal. Fortalecida, a estrutura de ganhos diminui as mortes e se torna um eixo do projeto político nacional destes grupos. Enquanto o Norte revelava a superação do modelo anterior de controle das facções do tráfico de drogas sobre as fronteiras e gerava a nova aliança PCC-CV, a intervenção federal no Rio abria para as milícias a fase de consagração. O assassinato de Marielle Franco sinalizava a aliança que tem como fiadora a família Bolsonaro, enquanto elo que conecta o passado com o futuro, a polícia com os militares, a verborragia tresloucada do aumento da violência para combater a violência com a redução de homicídios do novo concerto criminal. Milícia tem como base a polícia, que pela ação em grupos de extermínio evoluíram desde a ditadura de 1964. Esta base está distribuída em todos os estados da Federação. Em cada um, os interesses dos grupos dominantes passaram a se ajustar às novas formas de ganho a partir desta base. Claro que ela já existia. Mas agora há a variável político-eleitoral. Queimar a Amazônia, assassinar índios, quilombolas, defensores de direitos humanos, sem terra, LGBTs, negros e mulheres recobre com um novo status fake/moralista/religioso/conservador o que antes existia de forma menos articulada a um projeto político. Meio ambiente, terras, jazidas minerais, extrativismo nu e cru associam-se aos demais ilícitos. Neste cenário, porque dar vazão à prática da execução desenfreada se é possível administrá-la na busca de mais ganho de capital e votos? O que se argumenta aqui é que a partir da vitória do projeto de extrema direita, construído desde a era Temer, tendo como vetores a reconfiguração do tráfico de drogas e a consolidação das milícias, um projeto político nacional foi iniciado. Ele tem na figura dos agentes públicos de segurança e no discurso do endurecimento os acentos mais fortes que se transubstancializam na ampliação dos negócios criminais, movimentação de capitais, suporte para projetos político-eleitorais bem sucedidos e, necessariamente, redução dos homicídios que se tornam contraproducentes.

José Cláudio Souza Alves

Professor Universitário, doutor em Sociologia. Autor do livro: "Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense"

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