Pra começo de conversa: o que é Racismo Estrutural?

Para iniciar nossa coluna, nada mais justo do que começarmos discutindo o conceito de Racismo Estrutural, um termo que tem sido recorrente nas discussões sobre racismo atualmente. Ele tem recebido diferentes significações de acordo com os interlocutores que o utilizam e, assim como outros conceitos, está em disputa. Nossa meta aqui é defender uma visão de Racismo Estrutural balizada na tradição negra que levantou e ainda levanta a necessidade de uma transformação radical na estrutura da sociedade como processo para erradicar as desigualdades raciais. Durante o caminho, negros e negras se apropriaram do marxismo como ferramenta para entender a sociedade de classes e a nossa realidade dentro dela, e a partir de suas interpretações puderam desvelar a realidade racista do capitalismo, organizar e protagonizar lutas pelo mundo inteiro contra a opressão e a exploração.

O que significa Racismo Estrutural?

O racismo em sua forma atual é um fenômeno que não está alienado de outros processos históricos e sociais, como a exploração do proletariado. Sobre o conceito de raça, por exemplo, considera-se que é um conceito dinâmico e que foi manipulado historicamente de acordo com interesses e conflitos de época, inclusive econômicos. Dessa forma, por causa de sua formação histórica nos desdobramentos da expansão mercantil, o racismo se configurou como um determinante para as relações de classes: foi necessário para a existência de um mercado mundial organizado a partir do tráfico dos negros africanos e de seu trabalho compulsório nas colônias. Posteriormente, durante a consolidação e o desenvolvimento do modo de produção capitalista, o racismo se manteve como determinante das relações de classe no novo modo de produção.

A estrutura capitalista é uma relação material, uma totalidade, sobre a qual se aplicam diferentes forças sociais. Para pensarmos na relação raça e classe, podemos ilustrar através da física mecânica[1]: a aplicação de força sobre um objeto cria uma reação, que é a mesma força aplicada, com mesmo módulo e na mesma direção, porém com sentido oposto. Se considerarmos o racismo e a exploração dos trabalhadores como forças sociais aplicadas ao modo de produção, as reações criadas a partir de tais forças podem ser entendidas como resistência. Dessa maneira, há um processo de movimento dialético que conforma a realidade social a partir dos conflitos entre as forças aplicadas e suas reações. No entanto, as reações não se realizam apenas no sentido oposto da força aplicada, criando um equilíbrio, como querem os neoliberais. As reações às forças sociais podem, na verdade, reforçar o sentido inicial.

 A exploração do proletariado aparece apenas como um problema de classe, quando na verdade, é conformada por múltiplos processos: além de dividir os que não têm capital dos que o tem, hierarquiza mundialmente as raças e atribui papéis e tarefas sociais de acordo com o gênero. Assim como controla a sexualidade para garantir um núcleo de organização que é fundamental para sua reprodução: nos referimos à heterossexualidade compulsória, que garante a monogamia e o ideal de família burguesa.

Essa visão nos permite entender que por se tratarem de forças sociais que atuam de forma conjunta e indissociável, e que estruturaram a sociedade: (i) é impossível entender a realidade de classe como uma categoria separada da dominação racial e patriarcal; (ii) racismo, machismo e lgbtfobia são partes necessárias e constituintes do capitalismo no seu todo, por serem determinantes da estrutura social; (iii) classe e luta de classes não são categorias metafísicas, nesse sentido precisam de materialidade, de cor, de gênero, de sexualidade; (iv) o capitalismo ser um sistema mundial tem o efeito de que mesmo nos países capitalistas onde não existam “raças oprimidas”, a partir da hierarquização racial eurocêntrica, o racismo ainda se constitua como um elemento estrutural nessas formações capitalistas; (v) por fim, raça não é uma categoria que possa ser analisada em separado, pois está umbilicalmente ligada a classe e ao patriarcado, nem o racismo pode ser superado por fora de estratégias que levem em consideração esses determinantes.

A partir das determinações do racismo para o modo de produção capitalista, podemos dizer que existem reações de naturezas distintas. Podemos destacar duas, sendo a primeira delas o modo como o indivíduo concebe o racismo: se o entende como um problema moral e individual, ou como um resquício de um passado distante e que será superado com o tempo, como uma estrutura estática que é imutável, etc. Esse tipo de reação individualizada tem o efeito de causar  inércia, negação e de produzir um combate ao racismo restringido à esfera dos comportamentos.

A segunda reação destacada se refere à racionalidade eurocêntrica que tira o negro da régua da normalidade/humanidade, do universal, ao passo que entende como humano apenas o homem branco europeu, proclamando sua realidade e história como universais. Essa pode ser entendida também a partir da colonialidade do saber, que garante a continuidade da reprodução de uma racionalidade podre, bárbara e decadente, como verdade universal, disfarçada de ciência – o único conhecimento válido nesta tal racionalidade. Falamos de homens brancos que defendem como os maiores intérpretes do Brasil homens brancos e ricos que, sem nenhum pudor, reproduziam absurdos racistas, enquanto apagavam as vozes negras – como a de Clóvis Moura –, que se levantavam inclusive contra esses mesmos “grandes intérpretes”.

Os séculos de hierarquização racial, colonialismo e escravidão não foram seguidos somente de uma posição de privilégio para as pessoas brancas e desigualdade econômica na civilização moderna. Sua instrumentalização está também no campo das ideias e nas imagens construídas acerca da raça negra, isso descreve o modo pelo qual cada indivíduo enxerga a raça no outro, como o branco vê o negro e como o negro se vê. Por outro lado, demarca também as agressões racistas explícitas, que se fundamentam nessas mesmas ideias de inferioridade racial. A incompreensão do Racismo Estrutural como apresentada é o que permite que ele se transfigure nesse bicho-papão, responsável por uma autojustificação de atitudes racistas dos indivíduos. É o que possibilita que ele vire um chavão para pessoas progressistas ou programas políticos de partidos de esquerda, utilizado para fingir que se está considerando o racismo nas suas elaborações. É, ainda, a forma pelo qual ele é monetizado e esvaziado, estando presente até em embalagens de produtos capilares.


[1] Vale dizer que a utilização das Ciências Naturais para a explicação de assuntos subscritos às Humanidades é tarefa antiga. A diferença está que aqui usamos uma metáfora para explicar a dinâmica dialética da luta de classes. No passado, o eurocentrismo por instrumento da branquitude, tomou da Biologia as raças e criou a ferramenta central de dominação do colonialismo por meio da hierarquização da humanidade em raças.

Coletivo Clóvis Moura

Coletivo de pesquisadoras e pesquisadores negros. Sua luta é pela projeção da interlocução negra na academia.

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