Seria correto afirmar que entre os militantes da esquerda brasileira a estratégia dominante para enfrentar a extrema direita é ressuscitar a Nova República e garantir que as instituições democráticas prevaleçam sobre os fascistas? E sem correr o risco de mobilizar o povo e perder o controle da situação? Ainda, supondo que seja possível ressuscitar a Nova República, será que a Constituição de 88 nos dá os instrumentos necessários para deter o fascismo? Acredito que, infelizmente, não. Ao contrário, foram as contradições do Regime de 88 que criaram as bases para sua própria destruição.
Em 1988 completei 14 anos, e, ao pensar sobre este texto, percebi ainda mais a coincidência entre minha militância e o Regime que já nos deixou. Em 1986 participei ativamente de campanha eleitoral pela primeira vez, e foi justamente a eleição em que os parlamentares constituintes foram eleitos. Desde então, participei de todas as campanhas com todas as minhas energias. Em sete delas me apresentei como candidato e em duas fui eleito para a Câmara Municipal do Rio. Porém, em 2022 votei nulo no primeiro turno para todos os cargos. No segundo turno votei contra Bolsonaro.
Lembro bem da sensação de frustração com os resultados da Constituinte de 1986. Comemoramos muito as promessas, mas a percepção das contradições era mais que palpável. Pasmem – pode ser muito surpreendente para os jovens de hoje –, o PT votou contra a Constituição de 1988 e precisou de muita discussão para decidir se assinava ou não o texto final. Acabou assinando.
A Constituição de 1988 legou ao povo brasileiro muitas promessas de direitos políticos, civis, sociais e até econômicos, mas, como a História demonstrou, negou ao povo os instrumentos necessários para a transformação das promessas em realidade. A Constituição prometeu a Suécia ao povo brasileiro, mas inviabilizou a Reforma Agrária. Prometeu liberdade, mas manteve o oligopólio dos meios de comunicação. Prometeu Direitos Humanos, mas manteve intacta a estrutura repressiva que violava e viola sistematicamente tais direitos. A Constituição de 1988 prometeu democracia ao povo brasileiro, mas nunca passou de uma nova cara para a Velha Ordem. A Nova República nunca passou de uma Velha Plutocracia disfarçada, buscando em rituais supostamente democráticos sua legitimação.
Não é por acaso que não temos bons dados sobre desigualdade no Brasil. Pouquíssimas pesquisas até hoje puderam contar com dados da Receita Federal necessários para aferir a desigualdade entre os 10% mais ricos e o restante da população. E as raras existentes indicam que a desigualdade, na melhor das hipóteses, ficou estável no período estudado.
O Regime de 1988, enquanto durou, foi uma fantástica experiência de manipulação ideológica que permitiu que boa parte da população acreditasse e ainda acredite viver em uma democracia. Chega a ser difícil imaginar como um Regime que manteve inalterados os níveis pornográficos de desigualdade social e econômica de nosso país – enquanto produzia uma das mais fantásticas explosões carcerárias do mundo – possa ser considerado democrático. Como chamar de democrático o Regime que fez o número de presos subir de 50 mil em 1990 para 800 mil em 2016? O racismo, o medo do povo e a “Guerra aos Pobres disfarçada de Guerra às Drogas” naturalizam de tal forma estas mortes que quase 100 homens negros são assassinados todos os dias no país e praticamente não se vê qualquer notícia sobre isso. O extermínio sistemático dos pobres das favelas e periferias mal parece incomodar.
Sinceramente, não sei como as pessoas se surpreendem com o que está acontecendo no Brasil. A galera acreditou mesmo que nossas forças policiais topariam manter para sempre o fascismo restrito às favelas e periferias? Ao apostar na Guerra aos Pobres, a Nova República criou as bases para sua destruição. E agora, diante da crise de legitimidade de um Regime que prometeu e não entregou, eles querem tudo, não vão parar e sonham com a volta do trumpismo nos EUA, para terem apoio para tomar o poder à força no Brasil.
Se quisermos derrotar a extrema direita, teremos de remover todo o entulho de séculos de opressão que permaneceram em 88 e impedir a realização de nossos sonhos de um país bom, acolhedor e justo.