Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Da calma e do silêncio, de Conceição Evaristo
“Profe, queria lhe dizer: semana passada você me olhou feio porque eu estava consultando o celular durante a aula. Às vezes, escrevo o que você diz, ou copio o que você escreve no quadro. Preciso fazer alguma coisa pra prestar atenção. Na realidade, precisamos fazer várias coisas pra prestar atenção”. Fiquei de boca aberta. Também me surpreende a dificuldade dos estudantes de se escutarem nos debates. Repetem uma pergunta que acaba de ser respondida, por exemplo.
Por outro lado, outro dia fui à penitenciária da cidade para uma oficina de literatura. Surpreendeu-me a perspicácia dos detentos, a parcimônia na análise, a escuta cuidadosa entre eles. Perguntava-me o porquê dessa diferença com as aulas no exterior do cárcere e indaguei os próprios presos sobre os motivos; “Aqui a gente tem todo o tempo do mundo, e não temos celular”, disse um deles.
Acho tudo isso um paradoxo. Os presos, quando não submetidos ao regime carcerário-fabril existente em algumas penitenciárias, vivem numa espécie de suspensão dos ritmos que regem a vida dos “livres”. Há rotinas duras, castigos insuportáveis, relações regradas pelo medo. Sem habeas corpus, isto é, não têm controle sobre o próprio corpo nem sobre seu destino. Porém, e por comparação, podemos registrar as mudanças nos ritmos e usos do tempo que regem o mundo dos “livres”, encadeados aos celulares, às assim chamadas “redes sociais” e às suas demandas.1
Sentimos isso na escola, cuja disciplina da atenção2 sucumbe perante exigências que partem de um centro que parece não ter centro, que é a internet. Um domínio exercido desde um poder não localizável. No entanto, não é apenas na escola que isso acontece: até nas comunidades indígenas ouvem-se queixas pela falta de paciência para os lentos aprendizados baseados no exemplo e na palavra. As práticas da educação comunitária, tradicional e, inclusive, das escolas públicas que alguma vez foram espaços de disputa entre o Estado e os de baixo adquirem a aparência de uma perda de tempo perante “aquilo que importa”. Sabe-se lá o que é isso!
O bombardeio constante que nos sobrecarrega de demandas segmentadas, cujo sentido geral não conseguimos compor, impõe-se. Não podemos nos demorar em qualquer uma delas. É preciso correr para a próxima. Por serem pontuais, parece-nos mais fácil e menos cansativo responder a cada demanda segmentada, ainda que não lhe adivinhemos o sentido, do que seguir um plano mais prolongado. No entanto, constatamos o desgaste que provoca a interrupção intermitente do pensamento para atender à nova exigência, com a consequente sensação de estar em falta, de ser “quase”, de não responder à altura das expectativas do mundo. É frustrante. Porém, o esforço por desenvolver múltiplas tarefas ao mesmo tempo nos desdobra e nos treina, não para a alienação do trabalho em linha de montagem ou do trabalho por tarefas, mas para aceitar a dissipação da energia vital. Essa energia explode em mil partículas que se perdem suspensas no vazio antes de se esvair.
O trabalho flexível (bico, freelancer ou como quer que se chame) em suas atuais formas (contrato “hora zero”, trabalho por plataforma ou por aplicativo, uberização) fez do celular uma questão de vida ou morte. Para o trabalhador ou a trabalhadora da cidade, que depende de uma mensagem, o celular é cordão umbilical do qual dependem a compra diária de comida e o pagamento adiado das contas do mês. Não há tempo de descanso. Quando não se está efetivamente trabalhando, está-se aguardando ansiosamente a convocatória para uma tarefa.
Essa distração permanente da atenção já acontecia antes, mas durante a pandemia acelerou-se. No isolamento, a internet tornou-se a mediação predominante. E o retorno à “normalidade” não restituiu completamente as outras mediações. Preferimos usar GPS, por exemplo, a perguntar aos vizinhos por um endereço ou usar nossa própria memória e sentido da orientação3. Isolamo-nos para responder às mil notificações que cutucam toda hora, quando estamos acordados e ainda quando dormimos. Uma das torturas mais usadas pelos aparatos repressivos das ditaduras é a privação do sono. Se não dormirmos, não é só nosso corpo que não pode descansar. Sem dormir, não podemos sonhar. “Não se preocupe”, dizem-nos, “temos sonhos para todos os gostos e necessidades, já prontos para usar, nas plataformas de streaming, ou na Amazon, ou no Mercado Livre”. E, graças ao registro de nossa interação nas redes da internet, vão ajustando os sonhos que melhor se acomodam a nós. E tem mais, as dramaturgias televisivas abusam crescentemente da repetição, para as pessoas não perderem o fio da meada, sabendo de antemão que estamos fazendo outras coisas enquanto assistimos, com apenas um olho, a telenovela. Produções de plataformas de streaming já preveem que o público assistirá ao filme numa janela da tela enquanto realiza outra tarefa, no mesmo celular ou notebook, que “roubará” parte de sua atenção.
“Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido de nossa vida, é esse minuto que está passando”, dizia Antonio Candido. Nossa vida e sua qualidade, isto é, a intensidade com que a vivemos, não apenas são expropriadas durante o tempo que vendemos em troca de salário, senão também durante aquele que acreditamos reservar ao descanso e aquele que consideramos “livre”. Que classe de liberdade é essa? E que decisões podemos tomar se não conseguimos prestar nelas atenção demorada?
Em sua novela A ilha4, Aldous Huxley imaginava umas aves como os papagaios, aos que se ensinava a dizer: “Presta atenção!”. Essas aves provavelmente não sabiam a finalidade desse chamado de alerta, mas os humanos que escutavam examinavam o que vinham fazendo no “modo automático”. Ler com lentidão o mundo que nos rodeia, tomarmos nosso tempo para decidir e prestar atenção. Talvez seja um bom programa para os anos que nos foram dados: comparecer por inteiro à nossa própria vida.
Referências
- Vale a pena ler o que escreve Alfonso Ballesteros Soriano a respeito: https://rebelion.org/la-sobreexposicion-a-las-pantallas-nos-convierte-en-seres-dispersos-y-poco-empaticos/
- É muito sugestivo o que diz o professor Jorge Larrosa Bondia sobre a escola como uma suspensão do tempo e do espaço, onde se forma a disciplina da atenção. Ele sugere que na entrada de toda escola houvesse um cartaz que anunciasse: “Aqui você tem tempo”. Ver: https://youtu.be/5FtY1psRoS4?si=kIGCp1DASluplNlM
- É interessante o que diz o psicanalista e neurologista Miguel Benasayag a respeito da “atrofia” na produção de sinapses ocasionada pelo recurso a tecnologias de inteligência artificial. Ver entrevista na revistaCiencia, Tecnología y Política, maio/2024. Acessível em: https://www.researchgate.net/publication/381162554_Entrevista_a_Miguel_Benasayag_Asistimos_a_una_delegacion_masiva_de_funciones_del_cerebro_a_las_maquinas_sin_que_haya_tiempo_para_un_reciclaje E também a entrevista a Miguel Benasayag e Ariel Pennisi em: https://www.youtube.com/watch?v=p6kPZ95Hlkc
- HUXLEY, Aldous. A ilha. 3. ed. Trad. Bruno Gambarotto. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.