Produção destrutiva e os desafios da agroecologia

Procurarmos observar em Novaes, Macedo e Castro (2019) que o Brasil é um dos maiores palcos da nova fase da acumulação “primitiva”, baseada no cercamento de novas terras em regiões “virgens” do Capital.

Obviamente para expropriar terras indígenas o capital deve eliminar membros de ONGs, indígenas, quilombolas, posseiros, etc. Os excelentes relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT) nos mostram a escalada de assassinatos, inclusive no lulismo. À medida que o capital avanço para a novíssima fronteira agrícola: regiões do Pará, Maranhão, Tocantins e oeste da Bahia, as taxas de assassinato e tentativas de assassinato de lideranças aumentaram. 

Nesta esteira da barbárie no campo é preciso destacar também as tentativas de eliminação e desqualificação de adversários nas instituições públicas: ataques à ciência e aos cientistas, filtro ideológico de pesquisas que abordam positivamente questões de gênero, movimentos sociais, que estudam criticamente o papel dos militares e que abordam temas considerados polêmicos para a garantia da “segurança nacional”. 

Perseguição a movimentos sociais do campo, vigilância tecnológica de lideranças e grande produção de contrainformação/desinformação para o povão também fazem parte da estratégia neofascista.

A acumulação primitiva permanente resultou em crimes socioambientais que se multiplicam no Brasil nos governos Temer-Bolsonaro. Num plano mais amplo, para recordar apenas alguns fatos das últimas décadas: assassinato de Chico Mendes e Doroty Stang, massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, assassinatos de líderes das Ligas Camponesas do PCB e do Nordeste, escalada de assassinatos de indígenas, quilombolas, sem terra e posseiros, crimes das mineradoras em Bento Gonçalves e Brumadinho, derramamento de óleo no Nordeste, incêndios planejados na Amazônia (Novaes, 2019). 

Nossa hipótese é que estamos diante de uma nova fase de uma longa contrarrevolução permanente (Fernandes, 1986, Lima Filho, 2019). A 1ª fase da contrarrevolução se deu de 1964 a 1985. Quando achávamos que iríamos redemocratizar o país, nos deram um olé. As diretas já viraram indiretas. A Globo elege Collor em 1989. Não há nenhum acerto de contas com os militares e a contrarrevolução permanente ganha um novo impulso com Fernando Henrique Cardoso. Passamos da ditadura empresarial militar para a ditadura do capital financeiro. Lula declara a cana de açúcar a “salvação da lavoura” e as empreiteiras passam a nadar de braçada. 

A partir dos anos 1960 há uma grande reestruturação do campo. Os militares chamam esse avanço destrutivo do capital de “nova fronteira agrícola” e no caso da Amazônia, “Integrar para não entregar”. Octavio Ianni sempre nos alertou que a ditadura do grande capital era sinônimo de avanço destrutivo do capital. Mostrou também o surgimento de novas corporações no sul e sudeste (abate de porco, frango e boi), além da instalação de grandes corporações transnacionais produtoras de agrotóxicos, adubos sintéticos, tratores e implementos agrícolas. Novas rodovias são criadas, portos, aeroportos, usinas hidrelétricas tendo em vista a criação das condições de produção do grande capital. Ele mostra também a convivência de formas de trabalho “arcaicas” no campo (trabalho análogo ao escravo) e o surgimento de um novo proletariado “rural” (Novaes, 2019).

Desafios da agroecologia frente a produção destrutiva

A barbárie promovida pelo capital financeiro tem trazido consequências nefastas para a classe trabalhadora no mundo inteiro. Saqueamento dos fundos públicos, expropriação de casas como na crise de 2008, destruição parcial ou completa do Estado de Bem-estar social na Europa e dos poucos direitos constitucionais no “Estado de mal estar social” na América Latina. Aumento do custo de vida da classe trabalhadora, fim da aposentadoria digna, destruição dos sistemas educacionais e de saúde públicos, enfim, a destruição das condições de reprodução social sob o capitalismo. 

A voracidade do capital mundializado, com seu “senado virtual” que decide a alocação dos capitais, não respeita decisões populares, passa por cima dos parlamentos e promove golpes em todos os cantos do mundo. Para citar apenas o caso da América Latina, vimos nos últimos anos prisões políticas de presidentes, impedimentos irregulares e mais recentemente massacres nas rebeliões populares no Equador, Chile, Bolívia, Honduras e Haiti, mostrando toda a crueldade das classes proprietárias. 

O capital fictício além de cobrar dos parlamentos a liberdade total para a sua reprodução, destruindo direitos duramente conquistados pela classe trabalhadora, também promove uma ampla manipulação ideológica e o estímulo a processos de fascistização, através das técnicas de guerra híbrida e terrorismo tecnológico. 

A produção destrutiva das grandes corporações transnacionais (bancos, seguradoras, mineradoras, empreiteiras, automobilísticas, complexo militar, etc.), alicerçada na reprodução ampliada do capital e na obsolescência programada das mercadorias, gera crimes socioambientais de grande envergadura, como vimos acima, criam cidades insuportáveis, roubam terras e outros recursos estratégicos à nova geopolítica mundial. Gera desequilíbrios ambientais que resultam em novos vírus, pandemias e epidemias, como a que atualmente nos assola. Além disso, o imperialismo gera guerras de média e baixa intensidade que matam em escala inédita e sem nenhum pudor. 

István Mészáros acredita que devemos caminhar não só para além do modelo neoliberal, mas para além do capital. É urgente a construção de um programa de transição no século XXI e a criação de ações práticas coordenadas que apontem para uma “alternativa radical e abrangente” ao sociometabolismo do capital. 

A agroecologia defendida por nós se distancia radicalmente das ações do capital e seu “mercado verde”, inclusive impulsionado pelas grandes corporações transnacionais. Se distancia do ecocapitalismo, que tende a ignorar a questão agrária e a estimular ações no campo da “responsabilidade social empresarial”. Se distancia do cooperativismo do capital, que se move em função da reprodução ampliada do capital (Novaes, Mazin e Santos, 2019).

Acreditamos que é necessária uma crítica implacável à posse e uso da terra no Brasil, gravadas a ferro e fogo pelo latifúndio e pela superexploração do trabalho, além da produção de commodities para o mercado externo. Este circuito de produção de mercadorias gera fome e subnutrição num país rico em terras e sol. Os quatro séculos de latifúndio não comandam apenas a inserção econômica dependente e associada da nossa burguesia, mas o comando político do nosso subsistema econômico ao sistema capitalista mundializado. 

A industrialização da agricultura, que além de criar um vasto negócio para o capital financeiro, coloca o Estado a serviço da criação das condições gerais de produção e reprodução do agronegócio, cria um grande mercado de agrotóxicos, adubos sintéticos, tratores, implementos agrícolas e sementes transgênicas. Além disso, subordina os camponeses, que são tragados pelo canto da sereia da “revolução verde”, e acabam endividados, trabalhando para o banco. 

Demos aos capitalistas a chance de alimentar o povo por 500 anos. Chegou a nossa vez, chegou a hora da classe trabalhadora tomar as rédeas da produção, comercialização e consumo de alimentos tendo em vista a produção de valores de uso. 

Nesse sentido, a alimentação da classe trabalhadora do mundo inteiro tornou-se um ato revolucionário. Para isso, será necessária a construção de uma revolução mundial, para além do capital, que unifique as lutas de todos os povos, e dentro dessa revolução, uma revolução alimentar, para produzir alimentos saudáveis e agroecológicos não só para as classes médias e algumas pequenas parcelas da classe trabalhadora como atualmente, mas para a classe trabalhadora de todos os cantos da terra. Esta revolução alimentar deverá fazer parte de um grande e longo movimento internacional de emancipação do trabalho. As lutas para a construção deste grande e longo movimento de alguma forma se dão no âmbito local, regional ou nacional, mas estão longe de representar uma grande ofensiva anticapital tendo em vista a emancipação do trabalho e a produção e reprodução da vida sem destruir as condições materiais de existência. 

No livro “Mundo do trabalho associado e embriões de educação para além do capital” (Novaes e outros, 2018) retratamos as lutas de resistência das trabalhadoras e trabalhadores camponeses, o prenúncio de formas alternativas de trabalho, educação e de vida, que poderão desembocar numa sociedade para além do capital. Surgidas das entranhas do sociometabolismo do capital, as novas formas de produção e de vida tem um enorme potencial emancipatório, que podem avançar, mas também podem rapidamente se esgotar, caso os trabalhadores do mundo inteiro não saiam da defensiva. 

Uma destas lutas é a luta agroecológica. Dentro do debate da agroecologia estão sendo tratadas questões vitais, tais como a crítica a propriedade privada da terra e das sementes, a necessidade de dar um outro sentido ao trabalho no campo, a igualdade de gênero, e caminhos para alimentar o povo na cidade. Não podemos ignorar as inúmeras ações que foram realizadas nos anos 2000 contra os agrotóxicos, a venda de transgênicos, exibição de filmes e documentários, ações em parceria com universidades públicas.

Poderíamos destacar as feiras em parcerias com sindicatos e universidades, as ações para realizar a transição agroecológica nos assentamentos, as inúmeras atividades de formação realizadas pela Via Campesina e as lutas das mulheres que combinam mudanças no trabalho produtivo e no trabalho reprodutivo. 

No entanto, este movimento agroecológico que envolve povos da floresta, camponesas, posseiros, seringueiros, etc. não tem força para fazer avançar suas lutas. O Estado capitalista – a serviço das classes proprietárias no Governo Bolsonaro – ou tenta eliminar estas forças ou enquadrá-las dentro da abordagem conservadora do “desenvolvimento sustentável”. A maior parte da classe média – com sua visão umbilical – quer resolver seu problema alimentar e consumir alimentos saudáveis. A menor parte das camadas médias chega a simpatizar por uma agenda ambiental mais radical, mas está longe de lutar até o fim pela construção de um novo modo de produção para além do capital. E na dianteira deste processo as corporações transnacionais obviamente ditam o que colocar e como colocar a agenda ambiental. Diante disso, assumir a rédea da questão ambiental e dar um novo sentido a ela será um dos maiores desafios que a classe trabalhadora terá neste século XXI.

Referências

FERNANDES, Florestan. Nova República? São Paulo: Zahar, 1986.

LIMA FILHO, Paulo Alves. Pensando com Marx (I). Marília-São Paulo: Lutas anticapital-Aramarani, 2019. 

NOVAES, Henrique Tahan e outros. Mundo do trabalho associado e embriões de educação para além do capital. Marília: Lutas anticapital, 2018. 

NOVAES, Henrique Tahan. O avanço destrutivo do capital no governo Bolsonaro e 

os desafios da luta ecocomunista. Blog Marxismo21, 2019. Obtido em: marxismo21.org› wp-content › uploads › 2019/12

NOVAES, Henrique Tahan.; MACEDO, R. F. CASTRO, F. A atualidade da “acumulação primitiva”: roubo e cercamento de terras nos séculos XX e XXI. In: NOVAES, Henrique Tahan.; MACEDO, R. F. CASTRO, F. Introdução à crítica da economia política. Marília: Lutas anticapital, 2019, p. 371-395. NOVAES, Henrique; MAZIN, Diogo; SANTOS, Lais (orgs.). Questão Agrária, Cooperação e Agroecologia. Marília: Lutas anticapital, 2019. 3ª Edição.

Henrique Tahan Novaes

Professor da FFC e do PPGE Unesp, autor de “O fetiche da tecnologia - a experiência das fábricas recuperadas” entre outros títulos, pesquisado da área produção destrutiva, cooperação, autogestão, agroecologia e escolas de agroecologia.

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