Política é programa. Se não tivermos nosso programa, trabalharemos em prol do programa dos outros. Vivemos uma situação inédita, e nada mais natural que a classe trabalhadora não tenha ainda um programa adequado para tanto ineditismo.
Um bom programa depende do ponto de vista de classe e de bons diagnósticos. Portanto, entender o momento atual é fundamental.
Vivemos o colapso das condições ambientais de reprodução da sociedade formatada desde a Revolução Industrial, e corremos sério risco de este colapso atingir também as condições ambientais de reprodução da própria humanidade.
Neste contexto, um programa que una a classe trabalhadora e todos os oprimidos terá certamente como princípio fundamental a sobrevivência do máximo de pessoas e da vida de uma maneira geral. Colocará a vida acima dos interesses mesquinhos das classes dominantes e não permitirá que a dinâmica de funcionamento da sociedade capitalista leve ao fim da aventura humana na Terra. Para tanto, e talvez o mais difícil, terá que enfrentar lógicas e desejos extremamente entranhados no imaginário de nossa própria classe, inclusive pela extraordinária máquina de publicidade capitalista, mas não só por ela.
Há milênios o crescimento da capacidade de produzir energia e excedentes materiais aumenta a segurança das sociedades. Infelizmente, uma das principais características da Era do Colapso Ambiental é que esta equação se inverteu[1]. O avanço do desenvolvimento das forças produtivas desde a Revolução Industrial ultrapassou em muito os limites planetários que permitiram o desenvolvimento da humanidade e das civilizações.
Não deve ser difícil imaginar o tamanho do desafio de superar uma ideia tão antiga e que era real até tão pouco tempo atrás.
Também será preciso superar a associação entre felicidade e consumismo, tão profundamente entranhada em corações e mentes, que capturou até os projetos de superação do capitalismo ao longo do século XX e levou, primeiro a União Soviética e depois a China, a projetos de desenvolvimento industrial que pudessem estabelecer mercados de consumo de massa para sua população. Não por acaso, tais modelos de superação do capitalismo também colaboraram para o colapso em que nos instalamos.
E, finalmente, será necessário deixar para trás a própria ilusão de que somos o centro da natureza, a razão de ser da criação: o chamado antropocentrismo.
Colapso ambiental: convergência de crises ambientais
No livro Capitalismo e Colapso Ambiental, o professor Luiz Marques, ao nomear a primeira parte de “A Convergência das Crises Ambientais”, já nos dá pistas de que o que estamos vivendo não é uma mera crise, mas um colapso resultante do somatório de diversas crises produzidas pelo modo de produção capitalista[2] (e suas cópias pretensamente socialistas).
Destruição das florestas, crise hídrica, empobrecimento dos solos, produção de lixo e poluição, mudanças climáticas, perda da biodiversidade e etc., são muitos os processos de destruição e degradação da vida e todos eles marcados claramente pela extraordinária expansão das forças produtivas típica do capitalismo[3].
Urgência, Gravidade e Profundidade
Para avançar no diagnóstico, três palavras ajudam a nos guiarmos: urgência, gravidade e profundidade.
A urgência é urgentíssima. Em vários aspectos já vivemos em pleno colapso ambiental, como demonstrado especialmente desde o verão de 2023 do Hemisfério Norte. Para ficarmos apenas no aspecto das mudanças climáticas, hoje já sabemos que é impossível impedir que a temperatura aumente pelo menos 2 graus[4] em relação aos níveis médios entre 1850 e 1900. E caminhamos diretamente para a inevitabilidade do aumento de 3 graus.
Para termos uma ideia da gravidade, basta observar o que nos mostra a Figura 1[5]. Desde o surgimento da agricultura e durante toda a história das civilizações nunca havíamos experimentado a temperatura atual.
Estas imagens também nos ajudam a refletir sobre a gravidade da situação. Já vivemos na “Era da Incerteza Radical” e, se incerta a vida sempre foi, vivemos agora a incerteza sobre a própria continuidade da vida, pelo menos uma que nos inclua ou que valha a pena ser vivida.
Ninguém pode afirmar que haverá vida civilizada com 2 graus de temperatura maior do que no momento do surgimento da agricultura e o dobro do máximo atingido em toda a era civilizada. Muito menos se forem mantidas as tendências atuais e alcançarmos 3 ou 4 graus de aumento.
A Figura 2[6] apresenta a atualização do Limites do Crescimento publicado em 2023. Partindo do pressuposto de que todo organismo que demanda crescimento infinito sobre uma base material finita tende ao colapso, desde 1972 o Limites do Crescimento procura entender como e quando se dará o colapso do capitalismo.
Infelizmente, esse cenário propõe o colapso iminente da produção de alimentos, seguido pouco depois pelo colapso da produção industrial, levando a uma brutal redução da população mundial a menos de 4 bilhões de pessoas em 2100. Tal redução engloba tanto as pessoas que deixarão de nascer quanto inimagináveis números de mortes precoces.
E tudo se torna mais difícil quando percebemos que a profundidade do colapso ambiental é da ordem de um colapso do modo de produção que não pode sequer ser atenuado sem a sua superação. Ou, em outros termos, o capitalismo é incapaz sequer de deter a velocidade da aceleração da destruição das nossas condições de sobrevivência, e, quanto mais demorarmos a superá-lo, menores as chances de sobrevivência da humanidade e de inúmeras outras espécies. Como pontua Eduardo Sá Barreto em O Capital na Estufa: “… se ainda resta alternativa, ela exige, de maneira incontornável, a radical subversão da lógica do capital e de todo o ordenamento social que a ela corresponde”[7].
Para estimular o debate programático
Diante do ineditismo, urgência, gravidade e profundidade do cenário apresentado pelo colapso ambiental, vou pegar emprestado, como ponto de partida para estimular o debate, as “Propostas para uma política de sobrevivência” apresentadas por Luiz Marques no seu último livro O Decênio Decisivo[8].
Além dos oito pontos propostos pelo professor, acrescentei mais um, o primeiro na lista abaixo, porque o considero condição indispensável para a realização dos outros oito. As expressões entre parêntesis também são minha contribuição para melhor compreensão das propostas:
- Expropriação dos meios de produção e submissão de todas as forças produtivas ao imperativo de sobrevivermos ao colapso ambiental
- Redução radical e emergencial das diversas desigualdades entre os membros da espécie humana
- Diminuição do consumo humano de materiais e energia
- Extensão da ideia de sujeito de direito às demais espécies, à biosfera e às paisagens naturais
- Restauração e ampliação das reservas naturais, a serem consideradas como santuários inacessíveis aos mercados globais
- Desmantelamento da economia global e transição para uma civilização descarbonizada
- Desglobalização do sistema alimentar e transição para uma alimentação baseada em nutrientes vegetais
- Relativização da soberania nacional (e submissão de todos os povos aos imperativos da sobrevivência sob uma governança global radicalmente democrática)
- Acelerar a transição demográfica (para uma população menor) aumenta as chances de sucesso das rupturas enunciadas
[1] Capitalismo e Colapso Ambiental, Luiz Marques, 3ª ed. revista, Editora da Unicamp, 2018.
[2] idem
[3] idem
[4] https://www.columbia.edu/~jeh1/mailings/2023/Acceleration.2023.11.10.pdf
[5] https://climateemergencydeclaration.org/wp-content/uploads/2018/09/DontMentionTheEmergency2018.pdf
[6] https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/jiec.13442
[7] O Capital na Estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas, Eduardo Sá Barreto, ed. Consequência, 2018
[8] O Decênio Decisivo – Propostas para uma política de sobrevivência, Luiz Marques, Editora Elefante, 2023