PSOL: entre negros, evangélicos, celebridades e flanelinhas.

Wesley Teixeira, atualmente candidato a vereador pelo Psol, em Duque de Caxias, emergiu do movimento estudantil e fazia parte da Insurgência, tendência hegemônica no Psol do Rio, até o surgimento da crise das doações, quando deixou a corrente. Ele atuava, não sei se atua ainda, no coletivo RUA – Juventude Anticapitalista e traz consigo a dimensão evangélica vivenciada desde a infância com o pai pastor, a experiência da segregação por morar na favela do Sapo e a militância de quem atua num pré-vestibular popular, para ajudar jovens carentes da cidade. A questão é que as doações para a sua campanha eleitoral feitas pelo administrador e conselheiro de banqueiros, Armínio  Fraga e pelos herdeiros de banqueiros João Moreira Salles e Beatriz Sawaya Bracher totalizam 78 mil reais, abrindo uma crise institucional. Para um partido declaradamente socialista, que referenda a campanha de um jovem de um coletivo autodenominado anticapitalista, este volume de dinheiro desperta a dúvida não só sobre a importância do mercado financeiro para as campanhas eleitorais, mas sobre a própria identidade de um partido que se originou da crítica ao PT quanto aos seus vínculos com a burguesia e seus representantes políticos, no início dos anos 2000. 

O Psol nunca teve sua trajetória no Rio como expressão da atuação da população periférica e favelada, onde Marielle Franco era mais exceção do que regra. As principais lideranças criaram um projeto classe média, Zona Sul e riocêntrica. Acostumaram a produzir uma espécie de “celebrização” das trajetórias políticas, glamurizadas pelo apoio da classe artística. Wesley está apenas replicando isso na periferia do Rio e do partido. Seu destaque nas dimensões periféricas, a partir da projeção como negro, evangélico e ativista social permitiu sua celebridade prematura, ao cair nas graças dos amigos e herdeiros de banqueiros mecenas. A reação das lideranças do partido, cogitando a devolução das doações, busca sanar algo há muito tempo pavimentado por um partido esquizofrênico que se diz de esquerda, popular e socialista, mas que se torna notável pelos benefícios que recebe dos que mais possuem. Há aqueles que definem a ação do partido de restrição a Wesley como racista e religiosamente preconceituosa. As doações recebidas são frutos merecidos do seu empenho e esforço. Logo, suas identidades permitiriam um deslocamento social na direção de uma mobilidade ascendente. Algo bem afeito aos valores da classe média, que compõe a base do partido, mas também de grupos populares que assim leem a realidade e igualmente de ongueiros e seu empreendedorismo social.

Como já não bastasse o desgaste interno e externo que o caso trouxe para o partido, assistimos à exposição das contradições protagonizada por Marcelo Freixo, ao dizer que deixará o partido, caso Wesley seja punido. Grana Marcelo recebeu da Natura, Luciana Genro recebeu da Taurus. Esses casos motivaram as discussões que resultaram na deliberação interna do partido que proíbe seus candidatos de aceitarem doações de grandes empresas. Com a mudança da legislação eleitoral, grandes CNPJs viraram grandes CPFs e o que está em jogo é menos o volume de dinheiro e mais a concepção de política eleitoral e do fazer política de um partido. Se o ativismo negro projeta suas celebridades os habilitando a ter um capital jamais visto pelos negros desamparados da Baixada, celebridades brancas projetaram um partido sem identidade que agora se esfacela em brigas intestinais. Os mesmos que ajudaram a criar um partido que revolucionariamente se abrem para pobres negros da periferia. Wesley, inúmeros membros da Insurgência e de outras tendências do Psol sempre viveram do dinheiro de cargos de assessorias nos mandatos de brancos, recentemente diversificados por mandatos de negras, fruto do pós Marielle. Ou seja, um negro agora tenta se autonomizar para ter seus próprios assessores. Enfim, chegamos à revolução das celebridades negras apoiadas por celebridades brancas no mundo da meritocracia banqueira, que sustentamos com nossos salários, impostos e desonerações fiscais que o Estado sempre praticou. Os envolvidos no caso demonstram mais afeição ao desfile de egos em redes sociais do que em construir um partido à altura dos desafios que a esquerda brasileira vive em meio à escalada da direita miliciárquica recolonial.

A crise poderia ser ensejo para uma avaliação mais profunda da realidade que se vive. Por que os evangélicos de Duque de Caxias apoiam muito mais o atual prefeito da cidade, Washington Reis e seus aliados, do que os candidatos do Psol? É porque Washington Reis está sentado em cima de um orçamento municipal anual de mais de três bilhões de reais e o Psol somente agora conseguiu 78 mil para uma campanha? Evangélicos reconstruindo projetos de vida; destruídos pela exclusão social, desemprego, dissolução familiar e dependência química; elaborando as experiências do sofrimento a partir de sentimentos e práticas empreendedoras que projetam a prosperidade como solução em meio ao desmonte dos direitos sociais da era neoliberal avançam numa direção que o Psol sequer consegue entender, em meio à classe média de sua base? Despidos de qualquer proteção social, evangélicos se lançam em projetos empreendedores, entre os quais Wesley se insere, na sua vertente socialista/banqueira? Ou evangélicos, construtores da teologia da prosperidade, valorizariam mais acordos fechados entre seus pastores e políticos, percebendo que o velho clientelismo eleitoral traz melhores resultados do que qualquer discurso anticapitalista e revolucionário? Negros na busca por mais fundos partidários, equidade de chances e protagonismo eleitoral reconhecem na formação de celebridades uma via real de luta antirracista? Render-se ao poder de empresas financeiras manifestado em doações a campanhas eleitorais seria o mínimo exigido de quem quer realmente alcançar a vitória em seus projetos políticos? Negros evangélicos ou não, e evangélicos, negros ou não, passam a compreender finalmente que campanhas eleitorais sem financiamento de vulto não são viáveis e apostam no pragmatismo político? Negros e evangélicos pobres, sem capital em suas campanhas serão sempre soterrados pela política real, onde os sem grana não tem vez? Celebridades artísticas e eleitorais finalmente se estabeleceram como a base partidária que se buscava para o Psol? Qualquer discussão de temas econômicos, políticos, sociais e culturais precisa ser feita tendo em mente as campanhas eleitorais, já que elas, em busca de altos financiamentos, expressam o que de mais avançado e revolucionário fomos capazes de produzir? Ou, numa leitura conectada aos tempos atuais, amigos e herdeiros de banqueiros estariam sinalizando uma aliança fundamental com a esquerda para a formação de uma frente anti-bolsonarista mais que desejada? Neste caso, estaríamos assistimos a um problema que as frentes sempre enfrentarão, ou seja, os fundos?

Wesley condensa as contradições que o Psol arrasta no estado do Rio de Janeiro, desde seu nascimento, criadas a partir das relações entre a capital e a periferia, a classe média e a população pobre, os negros e os brancos, os evangélicos e os demais grupos religiosos, as celebridades e os simples mortais, a concentração de grana para campanhas e as campanhas pobres, de pé no chão. Mas, já que este texto é para refletir e problematizar, ao invés de lacrar, talvez o problema esteja em mim. Algo relacionado ao meu ponto de vista. Ontem, por exemplo, tive uma experiência que me levou a pensar sobre isto. Estava cruzando o Arco Metropolitano sob chuva, direção Caxias, quando de súbito vi no acostamento, com um cocar indígena e rosto pintado de vermelho, um homem correndo de pés descalços. Imaginei que fosse uma liderança indígena, num protesto individual, contra o massacre do seu povo, feito pelo atual governo, que os desprotege frente à pandemia e às queimadas. Ao transitar de volta, percebi que o referido indígena nada mais era que um guardador de carros, de um espaço de rodeios, à beira da pista, que assim se paramentava para ser visto pelos motoristas que transitavam na pista e evitar um atropelamento. A liderança indígena em protesto nada mais era do que um flanelinha tentando sobreviver. Ou seja, apesar dos meus óculos novos, que costumo chamar de luneta, aquilo que imaginava ver não era real. Logo, Wesley e o Psol podem não ser nada disso que acho que são e todos não passemos de transeuntes descalços, à beira de uma estrada, numa tarde de domingo sob a chuva, guardando os carros dos que aplaudem, numa festa, os que maltratam os animais.

José Cláudio Souza Alves

Professor Universitário, doutor em Sociologia. Autor do livro: "Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense"

3 comentários sobre “PSOL: entre negros, evangélicos, celebridades e flanelinhas.

  • 11 de outubro de 2020 at 9:43 am
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    Excelente reflexão, professor! Precisamos responder às questões registradas em seu artigo!

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  • 13 de outubro de 2020 at 9:22 pm
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    Sr. professor, doutor José Claúdio, em seu estatuto o PSOL proíbe receber doações de bancos e banqueiros.
    CAPÍTULO XI – DAS FINANÇAS E DA CONTABILIDADE

    Art. 71 – Os recursos financeiros do Partido serão originários de:
    I – contribuições de seus filiados e simpatizantes;
    II – dotações do fundo Partidário, nos termos deste Estatuto e do Regimento;
    III – Rendas eventuais e receitas de atividades financeiras e partidárias, observadas as disposições legais;
    Parágrafo Único – Não serão aceitas contribuições e doações financeiras provindas, direta ou indiretamente, de empresas multinacionais, de empreiteiras e de bancos ou instituições financeiras nacionais e/ou estrangeiros, sempre no marco das vedações contempladas pelo art. 31 da Lei 9096/95.

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  • 20 de outubro de 2020 at 3:53 pm
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    Boa provocação, ainda que excessivamente cruel em alguns momentos. Mas vale muito colocar o dedo na ferida. Não é um problema só do PSOL, é da esquerda como um todo. Minhas lentes grossas também me enganam, mas vejo duas coisas distintas: uma, é o espaço delimitado pela política institucional, de partidos e eleições: outra, é o espaço da sociedade civil,em permanente disputa. Pra esquerda, o primeiro é um meio; o segundo é o fim da ação política, ou deveria ser. No primeiro, as regras institucionais compõem um jogo de cartas marcadas. Tudo que a contesta tende a ser engolido: tão aí as fundações Lemann e os herdeiros riquinhos pra provar. O canto da sereia é forte. O financiamento é só um jeito de chegar junto pra depois tentar influenciar a ação. Luciano hulk deve estar se perguntando: porque não pensei nisso antes? Enfim, quais os limites éticos do financiamento político de CPFs? Vou viajar na maionese: ao invés de dinheiro, os doadores deveriam contribuir com a compra de livros que seriam distribuídos em comunidades periféricas. O lucro liquido da venda seria usado para o financiamento. Imaginem os riquinhos comprando 100 mil exemplares do manifesto comunista em quadrinhos pra distribuir pro povão..é só uma ideia…

    Na sociedade civil é pior: aí é que a esquerda está lascada. Mas vejo no arco de candidatura do PSOL no rio de janeiro uma diversidade que nunca vi antes, nem mesmo no PT.

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