Quem mandou matar a rezadora Estela Vera Guarani?

Arrendamentos em terra indígena, ferrovias e agropatriarcado no Mato Grosso do Sul

foto original de Lauriene Seraguza

Se a terra vai acabar, o nosso Ñanderu diz: vocês precisam dançar porque a terra vai desaparecer. E eles não acreditam, e o nosso Ñanderu dança, só quem acredita dança dois meses, come rora, tangu’i, caldo de peixe, somente. Isso que deveria acontecer. […] Entre os não indígenas, não tem ninguém que crê em Tupã, eles não creem verdadeiramente. Eles acreditam mais no dinheiro, não se lembram mais dos nossos Ñanderu, e é por isso que acontece qualquer coisa ruim no caminho, na casa deles, na cama, qualquer coisa. São egoístas e não se lembram do nosso Ñanderu, só fica preocupado pelo dinheiro que guardou. Não se lembram dos Ñanderu e do Tupã. E esses sabem de isso, do nosso pensamento, nós vivemos nas mãos deles, por um espelho grande eles nos enxergam, cada um de nós, como nós vivemos, e por isso que eles não respeitam os não indígenas, derruba as suas casas, vêm alagamento, granizada, até sismo.

Nhanderu [rezador] Cantalicio Godoi [Tupã Ava Veraju], Tekoha Yvy Katu(CHAPARRO et al., 2019)

A Terra Indígena Yvy Katu, majoritariamente habitada pelos Guarani Nhandeva, foi retomada em 2003 e consiste em uma área de 9.454 hectares que abrange a Reserva Indígena de Porto Lindo, demarcada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1928 no extremo sul do Mato Grosso do Sul. A TI está localizada entre os municípios de Japorã e Iguatemi, no extremo sul do Mato Grosso do Sul. Ao longo dos anos, diferentes porções do Tekoha reivindicado foram expandidas mediante novas retomadas, resultando na desocupação de 14 fazendas incidentes sobre o território ancestral. O processo de demarcação está avançado. Resta apenas a assinatura do presidente da República para efetivar a homologação de Yvy Katu, paralisada há mais de 15 anos. 

Em tradução livre, Yvy Katu pode ser entendida como Terra Sagrada. A palavra katu também é referida no Teko Katu, “o modo de ser sagrado”. O nhande reko, “nosso modo de ser”, segundo os Guarani e Kaiowá, abriga uma multiplicidade de formas de realizar os diferentes Teko, que também incluem o Teko Porã (o bem-viver), Teko Joja (o modo de ser baseado na reciprocidade), Teko Araguyje (modo de ser das divindades), entre tantos outros. A inobservância dos aspectos que abrangem a prática dos modos de ser é um fator favorável para a consumação do fim do mundo – mba’e megua

No dia 15 de dezembro, a nhandesy (rezadora) Estela Vera Guarani, de 67 anos, foi executada no meio da tarde a tiros por homens encapuzados. Neste dia, mais um Takuapu1 deixou de cantar. Estela afirmava: “Se não tiver mais reza e rezador, o mundo vai acabar. Tudo vai acabar, os sinais de que o mundo está acabando já estão aparecendo. Hoje temos menos rezadores (opuraheiva)2, chuvas sem limite. Está tudo fora do tempo”3. As rezadoras e os rezadores são os guardiões dos modos de ser na terra através dos principais rituais dos povos Guarani e Kaiowá, como o batismo do milho branco ou os grandes cantos-rezas-danças do Jeroky Guasu – reconhecidamente, vetores das retomadas dos Tekoha (lugar onde se é)4. Ao mesmo tempo, de forma intensificada desde 2019, incêndios e arrendamentos de terra devastam Yvy Katu. Em 2019, também são lançados os estudos de pré-viabilidade de um megaprojeto: o corredor oeste de exportação, a ferrovia Nova Ferroeste. 

Uma ferida no território

A Nova Ferroeste une grande parte do cone sul de Mato Grosso do Sul: são 1.500 quilômetros de trilho desde Maracaju (MS), que irão atravessar mais 7 cidades no MS – incluindo as proximidades de Japorã e Iguatemi, onde está Yvy Katu – para então conectá-las através do Paraná ao porto de Paranaguá. Notadamente, abrirão uma ferida no território e, o que é mais preocupante, a possibilidade de instalação de projetos extrativistas hoje engavetados por falta de escoamento das riquezas extraídas, atiçando assim a cobiça dos exportadores.

A ferrovia é avaliada em mais de 30 bilhões de reais e buscará reduzir os custos e o tempo necessário para permitir o escoamento de commodities agrícolas: ao menos 38 milhões de toneladas de soja são estimadas para o primeiro ano de operação. Além da soja, milho transgênico, agrotóxicos, fertilizantes, carnes e celulose estão previstos para integrar os produtos destinados à exportação. O megaprojeto é tributário da subdivisão das zonas de sacrifício estabelecidas pelo antigo IIRSA/COSIPLAN, hoje plasmado nas diferentes frentes de expansão extrativista e infraestrutura voltadas ao mercado capitalista.

Apesar de Luiz Henrique Fagundes, coordenador do Plano Estadual Ferroviário, afirmar que a obra não irá impactar povos indígenas e quilombolas, apenas no Mato Grosso do Sul 33 territórios Guarani e Kaiowá5 serão afetados, subdivididos em Terras Indígenas em processo demarcatório ou já demarcadas, retomadas de terra em áreas sem encaminhamento administrativo e Reservas. Além disso, o Quilombo Dezidério Felipe de Oliveira/Picadinha, localizado em Dourados (MS), também está no caminho dos trilhos. Não por um acaso, a primeira audiência pública sobre o projeto foi realizada no Sindicato Rural de Dourados, polo de articulação ruralista para exercer as mais diversas formas de violência contra os povos indígenas e seus apoiadores. Como é possível visualizar no mapa abaixo, a ferrovia corta ao meio os territórios indígenas e quilombolas no cone sul do MS e no Paraná – abrindo uma larga ferida –, reproduzindo o modelo estadunidense de ramais ferroviários short line6, cujo princípio é a integração dos eixos da ferrovia às unidades produtivas. Este modelo fortalece a hipótese de uma estreita relação entre a Nova Ferroeste e a pressão dos arrendamentos de soja em Terras Indígenas Guarani e Kaiowá. Um “potencial atrativo para investidores”, segundo os responsáveis pelo projeto, envolve a estimativa de ampliação de 4 para 5 milhões de hectares de soja plantados nos próximos três anos com a construção da ferrovia7.

Imagem 1: Traçado da Nova Ferroeste.
Fonte: MPF.
Imagem 2: Traçado da Nova Ferroeste nas proximidades de Yvy Katu.

Os arrendamentos de terra indígena são ilegais, mas vêm ocorrendo pelo uso da figura da “parceria” e mediados pela capitania da Reserva de Porto Lindo, à revelia de outras lideranças e, em especial, das mulheres. O fato assegura a função histórica atribuída à capitania de cogestão e coparticipação nos interesses do Estado, além de delimitar um deslocamento do poder para o predomínio masculino8. O arrendamento é uma política impulsionada pelo Estado de fora para dentro. Enquanto tal, é razão de desarticulação e precarização das relações estabelecidas no Tekoha, levando a conflitos mascarados publicamente como “internos”, mas que correspondem às demandas dos grandes produtores de soja e investidores dos megaprojetos. A parceria, uma espécie de acordo patriarcal, é facilitada em 2021 pela Instrução Normativa (IN) Conjunta nº1 da FUNAI, que compreende os indígenas como “empreendedores” e institui o regime de “parceria agrícola”. Apesar de a IN afirmar que está vedado o arrendamento, na prática, as “parcerias” realizadas entre indígenas e grandes fazendeiros resultam precisamente no arrendamento das terras cultiváveis e de áreas de mata destinadas ao monocultivo e venda para exportação e/ou grandes indústrias. 

Uma lógica semelhante pode ser visualizada no caso da Terra Indígena Sangradouro (MT), onde o projeto nomeado de “Independência Indígena” ou “Agroxavante”9, também definido como parceria agrícola, reúne vereadores, governadores, prefeitos, sindicatos rurais e até mesmo integrantes da FUNAI, que atuam em conjunto – quando não sozinhos – com grandes fazendeiros para a expansão da soja em Terras Indígenas. É uma forma de controlar a produção sem deter a propriedade privada da terra diretamente, estratégia interposta pelo arrendamento.

Na região da Reserva de Porto Lindo e Yvy Katu, o próprio prefeito de Japorã, Paulo César Franjotti (PSDB), afirma em vídeo divulgado em sua página de facebook10 que “desconhece os arrendamentos”, mas que “os companheiros aqui da aldeia têm trabalhado em parceria com os não-índios […] e trazido uma evolução da produção agrícola”, referindo-se à retomada nominalmente. Ele tenta responder sobre a presença de maquinário agrícola diretamente disponibilizado pela prefeitura utilizado diretamente no plantio de soja nas terras arrendadas da Yvy Katu. O prefeito também aparece, na mesma época de agravamento das denúncias resultantes das ameaças de morte e impulsionamento da soja e das queimadas no Tekoha, ao lado do deputado federal Vander Loubet (PT) realizando entrega de cestas básicas na aldeia Porto Lindo com a capitania. Vander Loubet já se posicionou publicamente a favor da Nova Ferroeste11, sem poupar elogios ao megaprojeto. Na mesma época, o córrego que atravessa Yvy Katu e servia de local para banho, espaço lúdico das crianças, extração de remédios tradicionais e pesca, secou.

Yvy Katu está localizada na fronteira dinâmica da soja, mas os arrendamentos não são apenas para soja, senão também para o milho transgênico (que intercala o cultivo de soja), mandioca e fecularia. Para tal, utilizam-se maquinário que atravessa o território e agroquímicos que contaminam o solo, a água e o ar. A introdução dos maquinários, dos agrotóxicos e das sementes transgênicas ou ramas modificadas envolve a participação de vereadores, prefeitos e deputados federais, com apoio jurídico de uma rede de advogados da região de Japorã e Iguatemi, onde se encontra Yvy Katu. 

O assassinato de dona Estela e a força do Mbaraká

Os arrendamentos afetam especialmente as mulheres, para quem a terra não é fonte de lucro, mas o espaço sagrado da vida e da reprodução do Teko Porã. Lideranças mulheres têm sido ameaçadas e agredidas nos últimos anos, por se oporem aos negócios praticados nesse pacto patriarcal que envolve capitania, fazendeiros e Estado, ainda driblando a letra da própria Constituição. Essas ameaças e agressões visam o disciplinamento das mulheres. Elas agem como guardiãs da terra que pretendem integrar às cadeias destrutivas de acumulação.

Em 1º de agosto deste ano, a Secretaria de Justiça do estado de Mato Grosso do Sul, por meio da Resolução nº 938, instituiu um Conselho Comunitário de Segurança da Aldeia Indígena Porto Lindo do Município de Japorã-MS, com a participação da Polícia Civil, da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, presidida pelo capitão Roberto Carlos Martins e com irrisória representação feminina. 

É esse o contexto de intimidação em que ocorreu o assassinato da dona Estela Vera Guarani. Ela velava, assim como fazem as outras nhandesy pela continuidade da vida: “Vivo com a minha reza ainda pela vida dos inocentes, pois ainda aparecem crianças que esperam muitas coisas de mim. Por isso tenho forças para continuar a minha vida como opuraheiva12. Porque a destruição da terra, da água, do ar tem sua resposta, sua reciprocidade, e todos vamos sofrer com isso. A palavra, o canto, a dança e o som do Mbaraká da opuraheiva transmitem o conhecimento de respeitar a vida e a reciprocidade. Isso quiseram matar, matando dona Estela. Podem ter sido dois homens encapuzados que fizeram o trabalho sujo lá na ponta. Mas estavam a serviço daqueles que querem matar a terra para fazer dinheiro. Para isso, precisam calar a voz profética das nhandesy e – parafraseando Kunhangue Aty Guasu13 ˗̶  o som do Mbaraká e Takuapu.

 Imagem de capa – Fonte: CHAPARRO, 2020, p. 376. Autoria: Yan Chaparro. Casa de reza Guarani em Yvy Katu.

Referências:

Chaparro, Y. L.; Maciel, J. D. C.; Rodrigues, E. M.; Morinigo, A. O mundo e o fim do mundo: palavras de um rezador Avá Guarani/Ñandeva sobre o desenvolvimento. Tellus, v. 19, n. 38, p. 289–318, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.20435/tellus.v19i38.554>.

Chaparro, Y. L. Os Avá Guarani/Ñandeva de Porto Lindo (Jakarey) Yvy Katu: terra, território e palavras guardadas. Aceno, v. 7, n. 15, p. 367-378.

Referências

  1. Instrumento musical sagrado feito de bambu utilizado pelas nhandesy (rezadoras).
  2. Outra designação para rezador/rezadora, que pode ser traduzido por “aquele que reza” pela junção das palavras mborahei e avá.
  3. Depoimento recolhido e transcrito por Lauriene Seraguza (Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo), traduzido com Jacy Caris Duarte Vera (Licenciada em Ciências da Natureza, professora Ava Guarani), em fevereiro de 2016. Disponível em:<https://pib.socioambiental.org/pt/%22Se_n%C3%A3o_tiver_mais_reza,_o_mundo_vai_acabar%22>. Acesso em: 19 dez. 2022.
  4. Benites, 2014. Disponível em: <https://journals.openedition.org/jsa/14022>. Acesso em: 19 dez. 2022.
  5. Reserva Indígena de Dourados e as 8 retomadas em seu entorno; Pakurity (retomada); Apyka’i (tekoha reivindicado e atualmente acampamento na beira da estrada); Nhu Porã (retomada); Panambizinho (homologada); Panambi/Lagoa Rica (identificada); Dourados Amambaipegua I (identificada); Reserva Indígena Tey’i Kue e as 9 retomadas em seu entorno; Takuara (retomada/Terra Indígena declarada); Guyraroká (retomada/Terra Indígena declarada); Iguatemipegua I (Identificada); Nhandevapeguá (em identificação); Sombrerito (declarada); Yvy Katu (retomada/demarcada); Porto Lindo (Reserva).
  6. Disponível em: <https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2021/12/16/nova-ferroeste-sera-inspirada-em-modelo-dos-estados-unidos.ghtml>. Acesso em: 20 dez. 2022.
  7. Disponível em: <http://www.ms.gov.br/nova-ferroeste-sera-o-corredor-de-escoamento-de-graos-de-mato-grosso-do-sul/>. Acesso em: 20 dez. 2022
  8. Argumento utilizado por Lucia Pereira (2019), antropóloga Kaiowá, em sua dissertação de mestrado.
  9.  Para mais informações, ver: <https://ojoioeotrigo.com.br/2022/09/integrante-do-governo-do-mato-grosso-admite-que-producao-de-soja-em-terra-indigena-e-ilegal/>. Acesso em: 20 dez. 2022.
  10. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=470355384970605&ref=sharing>. Acesso em: 20 dez. 2022.
  11. Disponível em: <https://correiodoestado.com.br/economia/ferrovia-vai-causar-grande-impacto/116239/>. Acesso em: 20 dez. 2022.
  12. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/%22Se_n%C3%A3o_tiver_mais_reza,_o_mundo_vai_acabar%22>. Acesso em: 19 dez. 2022.
  13. Grande assembleia das mulheres Guarani e Kaiowá.

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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