Quem perde com a Reforma Administrativa?

Triste país que conta com tão jovem e frágil democracia! Saímos de uma ditadura empresarial-militar que durou 21 anos, e, na primeira eleição direta para presidente, foi eleito Fernando Collor, que deu início a um processo de desmonte do Estado.

Nesse cenário, foi sendo construída e difundida a noção de um modelo de Estado ultrapassado, extremamente burocrático e com amarras que o impediam de avançar e dar respostas aos desafios de uma sociedade globalizada. É assim que o primeiro Fernando dá os primeiros passos para jogar o país nos braços do setor privado de forma direta e indireta. 

Direta, porque dá continuidade ao que Sarney já praticava: a privatização das estatais. Em 1990, cria o Programa Nacional de Desestatização1 e compreendido como uma das maiores ações do mundo de privatização do Estado. 

Indireta, porque passa a eleger, adotar e veicular os valores e práticas do setor privado como sendo mais eficientes que os do setor público.

Será o segundo Fernando, o Henrique Cardoso, no entanto, que criará os marcos legais para maior flexibilização das formas de ingresso no setor público, assim como nos processos de contratação de serviços. O gerencialismo entra em campo para ganhar e a população passa a vivenciar um 7 x 1 diariamente, com a perda de direitos contínua.

Hoje, 14 de setembro de 2021, será iniciado o debate e a votação do parecer do relator sobre a Proposta de Emenda Constitucional, a PEC032/2020 que modifica o art.37 da Constituição, o qual reza que a administração “obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” – e prega o fim da estabilidade no emprego aos servidores públicos.

Mas seriam os trabalhadores do funcionalismo público iguais a um trabalhador do setor privado?

Para iniciar essa reflexão, considero importante colocar no centro do debate a construção social em torno da imagem do funcionalismo público: “coloca o paletó na cadeira e não aparece”, “só quer saber de mamata”, “não gosta de trabalhar”… Ora, nunca é demais relembrar que o acesso aos cargos públicos foi importante rompimento com o Estado patrimonialista e colocou fim às indicações políticas. Ok, você deve estar falando: Ah… e quantas pessoas estão no serviço público indicadas? É verdade, mas estas são referentes aos cargos comissionados que cabem a cada governador, prefeito, secretário, vereador, deputados… indicar os servidores. Mas, esse número é ínfimo se comparado ao dos que foram aprovados em concurso público.

A seleção pública e a estabilidade no emprego permitem a independência dos agentes públicos em defesa da política social. Temos muitos exemplos na história, mas destaco os dois mais recentes: o servidor do Ministério da Saúde, Luís Ricardo Miranda, que avisou o governo federal do esquema de corrupção envolvendo as vacinas contra a Covid; e os agentes da Anvisa e da Polícia Federal que invadiram o campo no jogo Brasil x Argentina e expulsaram quatro argentinos descumpridores das regras sanitárias brasileiras. Esses trabalhadores teriam a mesma atitude se seu emprego corresse perigo? Um trabalhador, uma trabalhadora do setor privado possuem liberdade de expressão até que ponto sem sofrer represálias?

Para além da garantia do emprego, o funcionalismo público é que concretiza o direito da população aos serviços públicos, pois, diante de qualquer situação, a escola pública estará aberta, além dos hospitais e postos de saúde.

O concurso público e a estabilidade no cargo asseguram o devido distanciamento dos interesses particulares, colocando-se constantemente em favor da coletividade, pois as políticas públicas funcionam como um “amortecedor social” e impedem que sejam agravadas as desigualdades sociais.

A PEC 032/2020 pretende acabar com a estabilidade no emprego e, além disso, propõe criar cinco tipos de carreiras, apenas uma delas com estabilidade. As demais se equiparariam ao pior que já vivenciamos nas demais contratações, a exemplo dos contratos por tempo determinado.

A reforma seria para todo o funcionalismo? NÃO… Quem não será afetado? Militares, parlamentares e juízes. 

Quem, no setor público, recebe os maiores salários e privilégios? Justamente os excluídos da Reforma. Se a Reforma proposta é tão boa, por que esses segmentos não foram considerados no texto?

Atentem para o canto da sereia: o secretário da desburocratização fala em bilhões gastos com o serviço público. Essa classe de políticos incomodada com pobres nos aeroportos, com a empregada doméstica na Disney, com os filhos do porteiro na universidade e que prega a distribuição de restos de comidas aos mais necessitados quer fazer a reforma na “ponta do lápis”, mas a política pública não pode economizar na garantia dos direitos à população.

Portanto, quem perde com a Reforma Administrativa somos todos nós, principalmente a camada da população que depende da política pública para ir à escola, para receber tratamento médico, entre diversos outros aspectos.

Os defensores da reforma querem fazer crer que o serviço público não funciona, mas, se ele não é eficiente, a responsabilidade não pode recair sobre os que trabalham pelo bem comum.

Referências

  1.  Lei nº8.031, 12 de abril de 1990.

Selma Venco

Professora no DEPASE, Faculdade de Educação da Unicamp; Pesquisadora do Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA) e Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE); Pesquisa A Nova Gestão Pública e as relações de trabalho praticadas no setor público educacional paulista.

Um comentário sobre “Quem perde com a Reforma Administrativa?

  • 17 de setembro de 2021 at 10:49 pm
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    Depois da reforma da previdência às custas dos mais pobres, da derrubada do poder de compra do salário, do desemprego… Agora o facista da casa de vidro quer acabar com a estabilidade do servidor público?
    Cada vez mais a sociedade, que não quis aprender pelo amor, se vê obrigada a aprender pela dor

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