Raça e a falácia do capital humano na diminuição das distâncias sociais

Por Maria Aparecida Barrem de Souza1

Observando o acirramento de tensões e de dualidades políticas, é fácil notar que um dos campos de debate que vem ganhando destaque é o das questões raciais. A disseminação dos debates raciais, especialmente nas redes sociais, tem sido acompanhada de um esforço contrário de negação do racismo que por diversas vezes traz como argumento o discurso de um Brasil da democracia racial. Essa teoria, mesmo sendo antiga, ainda possui grande reconhecimento e continua muito popular nas análises sociais, mas é problemática ao fazer suas interpretações descartando o racismo e seus efeitos sobre as dinâmicas e estruturas sociais.

Junto dela, vem a vertente neoclássica que aponta o capital humano como elemento último que explicaria a desigualdade no mercado de trabalho e, por consequência, na estrutura social do país. Embora seja inegável a relação entre educação e distâncias sociais, principalmente no âmbito do mercado de trabalho e das possibilidades de ascensão social, ignorar o recorte racial é negar a história da própria formação da sociedade brasileira, gerando uma percepção distorcida da realidade da desigualdade no país. Essa interpretação da desigualdade foi muito presente nas décadas de 1960 e 1980, momentos de transformações econômicas de grande porte e que tiveram impacto na esfera do trabalho e na estrutura social. É a partir dessa época que se percebe uma busca por embasamento em indicadores neoclássicos que expliquem a desigualdade, apontando que as diferenças na obtenção de capital humano por parte dos trabalhadores brancos e negros resultariam em diferenças de produtividade que levariam à diferenciais na remuneração e ao consequente distanciamento social desses grupos.

Com base nisso, a forma para eliminar a desigualdade entre grupos raciais seria através da implementação medidas que igualassem as condições de investimento em capital humano entre todos os indivíduos, independente de cor ou raça. Porém, essa visão prejudica a determinação de políticas públicas apropriadas ao colocar a educação como único fator de correção dos diferenciais de inserção no mercado de trabalho e de remuneração, variáveis que impactam diretamente nas chances de ascensão social. Dessa forma, invalidam as políticas de reparação, como as cotas raciais, e outras iniciativas focalizadas, uma vez que desconsideram outros fatores ligados à raça. Identificando o capital humano, que seria a grau de escolaridade e de experiência profissional de uma pessoa, como o principal determinante da desigualdade de salários, a raça aparece como fator algo residual. Essa é uma simplificação excessiva do problema.

O modelo da teoria neoclássica da discriminação (TND) que utiliza do capital humano para fazer sua análise não é convincente ao fazer a medição dos diferenciais de remuneração. Isso porque não define uma forma específica de quantificação desse capital humano acumulado, além de considerar o acúmulo de conhecimento como uma grandeza linear. Tudo isso compromete a legitimidade dos estudos estatísticos nessa linha, que é tão difundida no Brasil. Outro ponto de inconsistência na especificação da TND é o fato que o capital humano já é anteriormente associado com a renda dos indivíduos, ou seja, quanto mais rico se é, maior a disponibilidade de tempo e de recursos que garantam uma maior acumulação de capital humano por anos de escolaridade e qualidade da educação. Dessa forma, Chadarevian (2009) afirma que, antes que a escolaridade defina a renda, é a renda que define a escolaridade. 

Também podemos encontrar contribuições relevantes na obra de Henrique (1999). Segundo ele, de 1960 a 1980, tanto os grupos associados à trabalhos manuais quanto os envolvidos em atividades não-manuais tiveram mobilidade social ascendente, mas ele aponta que o impacto dessa ascensão social é alterado por conta da influência da política de compressão de salários e de alguns fatores determinantes das chances de mobilidade. O primeiro fator é a mobilidade intrageracional, ou a mobilidade que se observa em uma mesma geração de indivíduos, que diz que quanto mais abaixo o tipo da ocupação inicial do indivíduo, maior sua chance de ascensão ao mesmo tempo que menor a distância social percorrida nesse movimento. Ainda nesse elemento intrageracional, quanto mais cedo fosse a entrada no mercado de trabalho, menor seria o status ocupacional de início e, por consequência, menor o destino também. Já para a mobilidade intergeracional, ou seja, de uma geração para outra, era o elemento educacional que proporcionava maior alavancagem para a ascensão especialmente nas camadas de ocupação não-manual localizadas acima na estrutura social do trabalho.

Dessa contribuição é possível notar que, mesmo que a educação tenha servido como propulsora da ascensão social, os estratos que mais se aproveitaram da mobilidade e das novas oportunidades da época foram os que já estavam associados a ocupações não-manuais, localizados mais acima na estrutura. Portanto, percebemos aqui uma renovação dos privilégios sociais e da desigualdade já existente, uma tendência a manutenção da estrutura social vigente sem alterações drásticas. 

No período estudado por Henrique, a interpretação conservadora considerava que esse aumento da renda média e da mobilidade social se tratava de um indicativo de melhora do país, com avanços de igualdade e de homogeneização social. Além disso, seriam resultado direto do desenvolvimento econômico da época e trariam a diminuição das desigualdades sociais e da pobreza. Foi para manter a visão otimista e não comprometer a aparente eficiência das políticas econômicas do governo que se adotou a TND e o discurso da democracia racial, negando quaisquer desigualdades raciais de oportunidade de melhora nas condições de vida e atribuindo ao capital humano a responsabilidade pelas diferenças de remuneração entre brancos e negros.

Hasenbalg também se dedicou à observação histórica das disparidades raciais na estrutura sócio-ocupacional brasileira. Em seu trabalho, estudou as diferenças significativas no percentual de brancos e não-brancos envolvidos nas atividades manuais ou não-manuais, no meio rural ou urbano. Daí, notou uma participação extremamente baixa de não-brancos nas atividades não-manuais urbanas, que são as localizadas mais ao topo da estrutura, e maior proporção nas atividades manuais rurais, referentes à base. Com base nisso, relacionou esses dados com o nível de escolaridade de ambos os grupos e concluiu que “O horizonte de mobilidade social dos não-brancos é restringido por discriminações que atuam nas fases pré-mercado de trabalho e no próprio mercado de trabalho” (HASENBALG, 1999, p. 28) e que “À menor dotação de educação, recurso cada vez mais importante na competição por lugares na estrutura ocupacional, acrescentam-se os resultados da discriminação racial no próprio mercado de trabalho, fechando-se o círculo vicioso que confina pretos e pardos em posições sociais subordinadas.”(HASENBALG, 1999, p.31).

Percebemos, então, que ainda que exista alguma semelhança com o argumento da acumulação de capital humano para se inserir no mercado de trabalho, Hasenbalg não descarta a influência da raça na dinâmica, atuando inclusive nas fases anteriores do ingresso na força de trabalho. A indicação do “capital humano” como a causa da discriminação racial no mercado de trabalho dá margem para entender que esse problema seria eliminado por completo com a ampliação do acesso e da qualidade da educação para os grupos. Contudo, devemos considerar o histórico de escravidão no país e de limitação do acesso a estruturas básicas para a população negra. A trajetória do desenvolvimento da educação pública, que dificultou o acesso dos negros a educação tem influência nos diferenciais históricos de acesso à educação entre os brancos e não-brancos, mas é principalmente pela reprodução das várias instituições de cunho racista, que falham em prover serviços de forma apropriada aos grupos raciais, que se dá a manutenção de regras e padrões sociais que refletem uma estrutura social racista previamente existente.

O racismo institucional – o modo pelo qual instituições mantêm seu controle e distribuição de poder baseado na supremacia branca – está diretamente vinculado ao racismo estrutural – que organiza parte da produção e reprodução da vida pela dominação racial. Apenas promover educação de forma igualitária a todos os grupos raciais já é um desafio frente ao racismo institucional. De toda forma, caso isso fosse alcançado, como sugerem os adeptos da TND, outras as barreiras e desvantagens na esfera do mercado de trabalho ainda permaneceriam, como na alta rotatividade no emprego, a necessidade de conciliação entre estudo e trabalho, entre outras mais. Todas elas agem em conjunto, aprofundando as diferenças nas experiências e na remuneração dos indivíduos brancos e negros. Portanto, a conclusão que chegamos é de que somente o capital humano e a educação não seriam suficientes para reduzir esses diferenciais de raça na estrutura social, pois, sozinha, não é capaz de dar conta das outras dimensões nas quais o racismo compromete a vivência do negro no Brasil.


Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Sílvio. Racismo Estrutural. Pólen Produções Editoriais. São Paulo, 2019. (cap. 1)

CHADAREVIAN, P. C.. Elementos para uma crítica da teoria neoclássica da discriminação. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política 25, 104-132, 2009.

HASENBALG, Carlos Alfredo; DO VALLE SILVA, Nelson; LIMA, Marcia. Cor e estratificação social. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1999.

HENRIQUE, W. O Capitalismo selvagem: um estudo sobre desigualdade no Brasil. 1999. Tese (Doutorado) – Instituto de Economia – Universidade Estadual de Campinas, cap.1, item 1.4, pp. 81-106.

Referências

  1. graduanda em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da UNICAMP

Coletivo Clóvis Moura

Coletivo de pesquisadoras e pesquisadores negros. Sua luta é pela projeção da interlocução negra na academia.

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