Racismo e Economia – materialidade e abstração

Recentemente foi proposta uma discussão sobre a necessidade de tratar o racismo como tema fundamental da economia. Como resposta publicamos um texto na Folha de São Paulo e é pertinente expandirmos essa discussão aqui.

O racismo está sendo tratado há muito tempo como tema fundamental na economia e sociedade. Mas quais são as barreiras para que essa discussão ganhe capilaridade e seja difundida com a importância que é devida? Por óbvio, concordamos que o racismo é tema fundamental da economia e que deva ser abordado como tal. Mas o que se esconde ao compreender esta abordagem “fundamental” apenas como uma inclusão acessória da questão racial nos estudos de determinada área do saber, sem especificar de que modo e por quem ela será feita?

Nossa perspectiva é que o racismo é uma estrutura que ajudou a estabelecer o capitalismo como modo de produção hegemônico e mundial e é necessário a sua reprodução, mesmo nos dias atuais. Quer dizer que, materialmente, o racismo – em conjunto com o patriarcado e outras estruturas de opressão – articula a dominação necessária à exploração. Ele criou condições para a emergência da burguesia como classe dominante através do Colonialismo, da Escravidão e do tráfico de escravizados. E isto implica que a supremacia racial da branquitude se expressa não apenas no pensamento burguês e na cosmovisão capitalista, mas também na organização concreta das relações sociais de produção.

De todo modo, vamos nos voltar à prática das Ciências Econômicas no Brasil e nos efeitos do racismo como um articulador epistemológico de sua própria reprodução nesse campo. Assim, podemos abordar a reflexão que decorre da concretude – apresentada acima – de maneira mais próxima a todos nós. 

O Coletivo tem debatido a dominação do pensamento econômico pela colonialidade do saber desde sua criação. Isto é, um de nossos objetos é a dominação da ciência nos marcos estabelecidos pelo colonialismo e imperialismo. Uma perspectiva que questiona os reflexos da supremacia racial branca (construída pelo racismo) não apenas nas Ciências Econômicas, mas nas Humanidades de forma geral. 

Isso implica que, sob a lógica do racismo, as interpretações e políticas formuladas pelos economistas podem – e irão, em sua maioria – conter um conteúdo imediatamente ligado ao racismo e sua reprodução, mesmo que de forma implícita ou “cordial”. 

Isto dá conta da incapacidade de compreender o racismo fora do âmbito comportamental ou individual, pelo mainstream econômico – à parte do limitante individualismo metodológico dessa corrente. Mas, também, é o que reforça as noções hegemônicas na heterodoxia em entender o racismo como um problema do negro, ou de vê-lo como objeto desprovido de capacidade de autodeterminação.

Recentemente, comparamos o capitalismo à construção de um prédio e o racismo como seu fundamento. Aqui, podemos abrir mão dessa alegoria e expandir a noção de materialidade do racismo. O racismo é a relação de desigualdade entre grupos humanos, dada pela criação social das raças e normalizada nas relações de dominação e exploração do Colonialismo. No capitalismo, o racismo ganha uma forma específica, que tem como objetivo a continuidade do expurgo de riquezas das ex-colônias e da expropriação formal da humanidade do não branco, expresso na figura do negro, do indígena, dos olivas, dentre outros. Por outro lado, a justificativa desses horrores se dá pelo eurocentrismo, a noção de supremacia racial, enfim, pela ideologia racial.

Concretamente, no Brasil, o racismo como estrutura reproduz-se como ferramenta de dominação e hierarquização racial. Ele é ferramenta do Estado na tentativa de coesão política e econômica e determina a divisão do trabalho, tanto em âmbito nacional quanto internacional, frente a economia mundial. 

Mas qual o seu efeito epistemológico na Economia como campo do saber? Qual é o reflexo ideológico do racismo para os economistas brasileiros e ao pensamento social, de modo geral? Temos algumas pistas. 

Antes de mais nada, lembramos que estamos abrindo essa discussão considerando a impossibilidade da economia ortodoxa de perceber a realidade social com precisão. Sendo assim, discutiremos no âmbito daquelas teorias que superaram a ideia de um equilíbrio de mercado. 

Para além, devemos salientar que o racismo como tema fundamental da compreensão da sociedade e economia não é novidade, como nos fazem parecer. Eric Williams, Clóvis Moura, C. L. R. James, Beatriz do Nascimento, Lélia Gonzales, para dizer alguns, abordaram o racismo e a questão racial como estrutura central ao capitalismo. Todos negros, tendo escrito ao longo do século XX, tidos como leituras marginais e esquecidas, que dificilmente incorporam a bibliografia dos cursos de economia. É importante reiterar, portanto, que não estamos estreando essa discussão. Longe disso. Aqui, apenas pisamos nas pegadas de grandes intelectuais e militantes antirracistas e anticapitalistas mais velhos, que trilharam estes caminhos antes de nós.

Como primeira pista da articulação do racismo na produção de conhecimento econômico, apontamos para a própria conformação racial dessa área do saber. Qualquer um que já esteve em uma faculdade de economia percebe a clareza da pele dos que por lá circulam e não fazem parte das empresas terceirizadas. O mesmo ocorre nos economistas que estão projetados na mídia e governo. Mesmo com a adoção de cotas raciais, essa realidade permanece bem clara. Na docência é ainda mais assombroso. Nosso próprio lugar de formação [1] mais parece uma universidade europeia que, não obstante, situa-se na última cidade do Brasil a abolir a escravidão. Vejamos que essa discussão se desdobra para além de representação.

Poderíamos assumir que isso tudo não tem peso, caso os intelectuais da universidade estivessem dispostos a quebrar o silêncio da questão racial na academia. Entretanto, o processo de inclusão de cotas raciais nas universidades de São Paulo mostram o oposto. Os intelectuais que lá estavam – mesmo os que fizeram carreira pesquisando racismo e escravidão –, em sua maioria, não moveram um dedo sequer para instaurar a política. Pelo contrário, o próprio Instituto de Economia da Unicamp ficou conhecido pela exposição de professores que abertamente se demonstram contra as cotas de forma racista [2]. A discussão não acaba por aí, já que a direção da instituição, nos seus órgãos deliberativos, fez vistas grossas à necessidade de garantir a eficiência dessa política pública e minar a ocorrência de fraudes no ingresso de estudantes através do processo de heteroidentificação.

As bibliografias dos cursos de graduação em economia quando muito tangenciam o racismo, mas sem aprofundar a compreensão dele como elemento estrutural de nosso sistema econômico. A regra é o absurdo de valorizar teorias já superadas – como as de Gilberto Freyre –  ao passo que fecham os olhos para os autores negros que se designaram a combater o racismo no pensamento e sociedade brasileiros há muito tempo.

Não precisamos nem ir tão longe. Ao mesmo tempo que os progressistas da economia apontam o dedo para a teoria ortodoxa, chamando-a de individualista e racista, aplaudem autores como Celso Furtado e Caio Prado Júnior, que entendiam os negros e não brancos de modo geral como selvagens, atrasados, inferiores e incapazes de, enquanto classe social, ter feito parte de forma consciente e consistente da formação econômica do país. Um julgou os negros incapazes de terem contribuído ativamente para a modernização do Brasil, pois teriam um desenvolvimento mental rudimentar como reflexo da escravidão. O outro, apesar de marxista, não escapou do eurocentrismo expresso pela recorrente constatação de negros e indígenas como selvagens, bárbaros e semicivilizados. 

Outras pistas da articulação do racismo na produção de conhecimento econômico, mais gerais e não menos importantes, dizem respeito a inexistência de disciplinas de graduação e pós-graduação que apresentem discussão sobre racismo e economia. Também, a ausência do debate nas reuniões oficiais de conjuntura. E, por fim, constante afirmação de desconhecimento de bibliografia e referencial teórico quanto à temática racial por parte dos economistas que orientam trabalhos de conclusão de graduação, mestrado e doutorado.

Enquanto continuamos o esforço Ogunesco [3] de realizar o debate fundamental sobre racismo na Economia, há uma recusa, ao menos por inação, dos que dominam as instituições – teimosas em manterem-se racistas – à discussão do tema com seriedade. Que novamente seja dito, esse esforço foi precedido por um grande referencial teórico ativamente apagado e rejeitado.

É imperativo que haja uma mudança dessa realidade, que só pode vir da prática. Na medida em que o racismo satura a sociedade e o capitalismo, é evidente que a Economia e a ciência não estão imunes a ele. A decisão que se impõe é entre recuperar o pensamento social brasileiro sob uma perspectiva crítica; ou seguir reproduzindo o racismo. É, de fato, compreender o racismo como estrutura do capitalismo; ou continuar as miríades de elucubrações sobre a possibilidade do desenvolvimento na periferia. É, por fim, entender que o capitalismo não se mantém sem o racismo, o que implica na impossibilidade de superá-lo por políticas paliativas e circunstanciais, dentro da ordem do capitalismo.

Não é uma temática nova, que ganha relevância apenas em função da explosão das lutas raciais pelo Brasil e no mundo afora. Essa perspectiva que apresentamos exclui a surpresa ao nos deparamos com levantes como os dos EUA, ou mesmo as lutas contra o racismo no Brasil, pois estes fazem parte da realidade do capitalismo.

Já passou a hora de abrir mão dos referenciais teóricos incapazes de abordar o racismo e suas relações concretas. Não apenas na ortodoxia, mas também para os heterodoxos. Estes economistas precisam romper com a herança da escravidão e do colonialismo que os favorecem, com a ideologia de raça que está expressa nestas teorias e na organização das instituições que lideram. 

Caso contrário a Economia continuará sendo uma abstração identitária da branquitude, no maior país negro fora da África.


1 –  Nos referimos aqui à cidade de Campinas, sede do maior campus universitário da UNICAMP. 

2 – Greve gera conflito entre professores e alunos no Instituto de Economia da Unicamp. Disponível em: https://cartacampinas.com.br/2016/06/greve-gera-conflito-entre-professores-e-alunos-no-instituto-de-economia-da-unicamp/

3 –  Ao invés de hercúleo. Assim evitamos o romantismo iluminista eurocêntrico.

Coletivo Clóvis Moura

Coletivo de pesquisadoras e pesquisadores negros. Sua luta é pela projeção da interlocução negra na academia.

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