Reformas geram revolução?

Sergio Granja entrevista Carlos Nelson Coutinho1

Carlos Nelson Coutinho é um destacado filósofo marxista e professor de teoria política da UFRJ. Nasceu em 28 de junho de 1943, em Itabuna (BA) e morreu em 20 de setembro de 2012, no Rio de Janeiro. Discípulo de Lukács, posteriormente incorporou Gramsci a suas referências intelectuais preferidas e tornou-se reconhecido internacionalmente como um dos maiores especialistas no pensamento gramsciano. Com vários livros publicados, o professor Carlos Nelson coordenou a edição das obras de Antônio Gramsci em português, editadas pela Civilização Brasileira de 1999 a 2005. Tendo militado no PCB e depois no PT, Carlos Nelson Coutinho foi um dos fundadores do PSOL. Em novembro de 2008, entrevistei-o para a TV Socialismo e Liberdade da Fundação Lauro Campos. Essa entrevista, transcrita e editada, está publicada, com ligeiras adaptações, a seguir.


Sergio Granja Carlos Nelson, você publicou um ensaio, em 1979, pela Revista Civilização Brasileira, que no ano seguinte saiu em livro: “A democracia como valor universal”. Esse ensaio não só alcançou grande repercussão como provocou acirradas controvérsias na esquerda brasileira. Daquela época até agora, há todo um percurso histórico, no decorrer do qual as forças de esquerda se acomodaram à hegemonia do capital. Com base nessa experiência e considerando a questão gramsciana da luta pela hegemonia, como você avalia hoje, em plena crise do neoliberalismo, esse ensaio de 1979?

Carlos Nelson Coutinho: Olha, eu continuo, sem dúvida, acreditando no que digo naquele artigo. Infelizmente o artigo foi, por algumas pessoas, lido mal. Eu tenho um amigo paulista que disse que muita gente que leu o artigo confundiu “democracia como valor universal” com “democracia como valor de troca”. E aí, evidentemente… É um artigo no qual digo claramente que sem democracia não há socialismo ― a experiência, aliás, demonstrou isso muito claramente ―, mas também digo que o socialismo é condição da plena realização da democracia. Talvez essa segunda parte não tenha sido enfatizada tanto quanto a primeira, porque se tratava de um artigo polêmico, ao mesmo tempo contra a ditadura e contra uma leitura esquemática, “maxista-leninista”, do marxismo, do comunismo. Agora, eu acho o seguinte: a luta pela hegemonia continua existindo no mundo moderno. O que aconteceu é que o capital ganhou a hegemonia. Ao contrário do que esperávamos naquela época, sobretudo a partir do eurocomunismo, de uma proposta claramente democrática de socialismo, que teve um impacto forte não só na Europa, mas também em outros países, aconteceu um progressivo esvaziamento, digamos assim, da luta de classes ― ela continua existindo, mas de uma maneira mais esvaziada ― e cresceu uma hegemonia do capital nessa época que nós chamaríamos de neoliberalismo ― podemos voltar a falar disso depois ― e que eu espero que esteja chegando ao fim com essa crise brutal do capitalismo. Então, eu diria, continuo ― 30 anos depois, praticamente ― de pleno acordo com as ideias que expressei naquele artigo. Eu as desenvolvi posteriormente em outros ensaios, sobretudo no meu livro “Contra a corrente”, no qual tento sublinhar mais esse momento de que sem socialismo a democracia também é limitada e não realiza as suas potencialidades revolucionárias, eu diria assim.

Sergio Granja: Quando se fala da democratização como uma via de transformação do capitalismo em direção ao socialismo, ou seja, da radicalização da democracia, é preciso levar em conta a experiência histórica, o que aconteceu e o que está acontecendo. Uma experiência marcante foi a da Unidade Popular chilena. Essa experiência não sugeriria talvez a existência de um limite a partir do qual a via democrática imbica num beco sem saída? Há hoje pelo menos três experiências importantes acontecendo: a da Venezuela, a da Bolívia e a do Equador. Como você as avalia?

Carlos Nelson Coutinho: Quanto à experiência chilena, aliás precursora do eurocomunismo ― eu me lembro que Berlinguer, o secretário geral do Partido Comunista italiano, lança a idéia do eurocomunismo a partir exatamente da experiência chilena ―, eu acho que ali houve uma interferência muito clara do imperialismo. Eu acho que aquele caminho que aparentemente poderia dar certo não deu porque houve uma sabotagem internacional e eu diria que a Unidade Popular foi derrubada, é claro, também por forças internas, mas sobretudo pela pressão do imperialismo. Olha , eu vejo com muita simpatia as experiências de Chaves, Evo Morales e Rafael Correa. Não sei o caminho que isso seguirá. Acho que ainda está pouco definido o tipo de socialismo do século XXI que o Chavez pretende construir na Venezuela, mas se isso der certo terá sido seguramente uma experiência de um caminho democrático para uma nova ordem social. Aliás ― é muito curioso ―, eu vi outro dia no YouTube um discurso do Chavez para milhares de pessoas em que ele citava frequentemente Gramsci. E, veja bem, não citava mal, citava até com uma certa competência. Ele dizia o seguinte: olha, Gramsci dizia que o poder se divide entre a sociedade política, que é o Estado stricto senso, e a sociedade civil; na Venezuela nós já conquistamos o Estado stricto senso, mas ainda lutamos porque a burguesia é hegemônica na sociedade civil. Que é, me parece, um diagnóstico interessante do caso venezuelano. Mas eu penso que talvez Chavez não tenha lido uma outra parte da obra de Gramsci, um tópico chamado estatolatria, no qual Gramsci insiste em que na construção de uma nova ordem social nós devemos lutar pelo fortalecimento da sociedade civil. Segundo Gramsci, no comunismo, que ele chamou de sociedade regulada, a sociedade civil absorverá o estado. Eu acho que o Chavez ainda confia excessivamente no poder do Estado stricto senso para construir uma nova ordem social. Mas, eu diria, certamente, sobretudo o Chávez, que é o mais ativo dos três, é algo que nós ― comunistas, socialistas ― devemos olhar com carinho.

Sergio Granja: Você tocou num ponto aí que é a questão da transição: qual é o papel do Estado, qual é o papel da sociedade nessa luta que se trava pela passagem a uma nova ordem social. Marx fala de um período de transição que seria a “ditadura revolucionária do proletariado”. E o próprio Noberto Bobbio, que está longe de ser um marxista, evoca a “categoria weberiana do status nascenti” para admitir que “o método democrático é um bem precioso, mas não para todos os tempos e lugares”. Segundo Bobbio, “existem períodos de risco ou de crise das instituições, (…) nos quais o método democrático não serve e as regras do jogo, se existem, são mandadas às favas”. Você acha que existe esse problema da transição? Como você avalia essa questão?

Carlos Nelson Coutinho: Certamente o problema da transição é alguma coisa extremamente importante para nós que pretendemos sair do capitalismo e construir uma nova ordem social. Há um antes e um depois. Como será a transição? Acho que isso é muito difícil de nós determinarmos de modo abstrato. Eu me lembro que o Feola teria chamado o Garrincha e dito: olha, você faz assim, assado e tal… E aí ele perguntou: mas o beque está avisado? Para a transição nós temos que ter clareza que depende também da outra parte. Eu me lembro que, talvez em um de seus últimos textos, numa introdução a uma reedição de um livro de Marx, o Engels dizia o seguinte: olha, todo Estado é fruto de um contrato entre o príncipe e o povo, entre o governo e o povo; se uma parte rompe o contrato, a outra está desobrigada. E Engels tinha certeza naquele momento de que, quando o movimento social-democrata, o movimento socialista da época, avançasse muito, a burguesia ia romper com as regras do jogo. Nesse momento, dizia ele, cabe a violência revolucionária, uma violência defensiva. Eu diria: isso é uma novidade em relação à tradição dos próprios Marx e Engels, nos quais havia uma ideia de que a iniciativa da violência era da classe trabalhadora. Então, a partir da consolidação do que Engels chamou de república democrática, de instituições democráticas, a violência passa a ser, para ele, uma resposta à, digamos assim, violência da burguesia. Eu diria que isso é uma lição interessante que devemos levar em conta. Agora, como exatamente vai ser a transição? Seguramente haverá momentos de conflito. Ninguém imagina que uma mera vitória eleitoral pode conduzir um partido socialista ao poder tranquilamente. Aliás, eu acho que uma eleição leva o partido ao governo, não necessariamente ao poder. Toda a dificuldade que o Chavez está enfrentando na Venezuela é uma demonstração de que não basta chegar ao governo para exercer efetivamente uma nova relação de poder. Mas, eu diria, é difícil determinar previamente de que modo vai acontecer. Se o beque não está avisado, quer dizer, se o outro não está avisado, nós teremos que, evidentemente, pensar em formas que serão múltiplas, plurais… Mas seguramente rupturas acontecerão. Eu não acredito mais numa ruptura, digamos, no dia X, na hora H. A ruptura mais como um processo, mas certamente haverá rupturas.

Sergio Granja: Então, vamos falar um pouco do momento que estamos vivendo, dessa época neoliberal. Você fez um artigo muito interessante…

Carlos Nelson Coutinho: Que está no site. 2

Sergio Granja: Está no site e está despertando muito interesse, um dos mais acessados…

Carlos Nelson Coutinho: É mesmo?!

Sergio Granja: É, provocando muita discussão… Que é justamente sobre “A época neoliberal: revolução passiva ou contra-reforma”. Aí você trabalha três conceitos gramscianos, basicamente: o de revolução passiva, o de contra-reforma e o de transformismo.

Carlos Nelson Coutinho: Isso.

Sergio Granja: E você aplica isso à nossa realidade, de certa forma. Então, eu perguntaria o seguinte: com a crise do capitalismo aí, que nos surpreendeu agora, que se tornou muito evidente nos últimos tempos… e aí vamos pegar também a eleição nos Estados Unidos. Eu acho que há algo de significativo nessa eleição.

Carlos Nelson Coutinho: Concordo.

Sergio Granja: Você acha que há uma crise séria do neoliberalismo, de que forma essa crise se articula com a do capitalismo e que resposta a esquerda tem para dar hoje?

Carlos Nelson Coutinho: Olha, a distinção que fiz entre revolução passiva e contra-reforma era um pouco para tentar imaginar que existe uma revolução passiva quando há pressões de baixo e as classes dominantes fazem transformações pelo alto, mas fazendo concessões aos debaixo. No caso de uma contra-reforma, eu diria que não há concessões aos debaixo, porque a pressão de baixo é menor. Então, eu diria que essa época neoliberal ― que se inicia mais ou menos no governo Reagan, governo da sra. Thatcher na Inglaterra ― é mais contra-reforma do que revolução passiva, exatamente na medida em que se desconstroem direitos e não se concede alguma coisa aos de baixo. Quer dizer, enquanto o período do Welfare State, o estado do bem-estar social, foi certamente uma revolução passiva, o período neoliberal é, a meu ver, uma contra-reforma. Mas uma coisa interessante é o fato de que em ambos os casos se dão processos de transformismo, que nós poderíamos traduzir em português como cooptação. Ou seja, as classes dominantes cooptam as lideranças das classes subalternas ou até, às vezes, como diria Gramsci, inteiros segmentos das classes subalternas. Isso ocorreu no Brasil com muita clareza no governo Fernando Henrique, quando um intelectual de esquerda, uma liderança de esquerda foi cooptada pelo status quo, e aconteceu no governo Lula de uma maneira ainda mais preocupante, porque, no caso do governo Lula, não só a personalidade de Lula foi submetida a um processo de transformismo, mas inteiros segmentos da classe trabalhadora, direções sindicais, CUT, enfim… Então, isso me parece um fenômeno de transformismo que ocorre também nos processos de contra-reforma. Quanto à crise atual, é muito difícil prever o que vai acontecer. Certamente essa crise se dá num momento em que a esquerda está tremendamente debilitada no mundo, a classe operária passiva, sem maiores reivindicações… Então, eu não creio que a saída dessa crise seja uma saída revolucionária, transformadora, que nos leve ao socialismo. Aliás, Gramsci era muito claro em dizer que crises econômicas não necessariamente têm repercussões revolucionárias no terreno da política. Agora, eu acho que o mito, a ideologia neoliberal seguramente foi atingida fortemente. Eu até brinco e sempre digo aos meus alunos: a prova de que Marx estava certo quando falou em fetichismo do mercado é essa idéia hoje de que o mercado ficou nervoso. E não adiante Lexotan. O mercado… o que é o mercado? Então, eu acho que essa ideologia de que o mercado regula tudo, de que é preciso privatizar tudo, de que o Estado é ruim, o Estado é sempre ineficiente… eu acho que essa ideologia sofreu um sério abalo. Não sei se o que virá no lugar será uma retomada de uma proposta keynesiana, tipo Welfare State. Não me parece que isso esteja no horizonte exatamente na medida em que não há uma pressão forte dos de baixo, das classes subalternas. Mas alguma coisa está mudando no mundo. E, veja bem, a vitória do Obama… Eu, há muito tempo, vejo a eleição americana como uma coisa em que ganhe um ou ganhe outro vai ser uma coisa exatamente igual, como aliás tem sido na história dos últimos tempos nos Estados Unidos: uma disputa de poder que não envolve uma disputa de hegemonia e contra-hegemonia, mas de grupos de diferentes partidos ― republicanos e democratas. Eu acho que essa vitória do Obama ― sem nenhuma ilusão também de que o Obama vai… Ao contrário do que o McCain pensa e o acusou, ele não é socialista porque quer distribuir renda. Mas certamente há uma novidade nesse quadro da eleição americana. Quer dizer, um negro presidente da república, um negro apoiado maciçamente pelas minorias raciais e também pelos jovens, eu acho que isso pode representar o início, não evidentemente de uma transição ao socialismo, mas o início de uma nova etapa do capitalismo, menos contra-reformista do que a etapa que nós vivemos nos últimos 30, 40 anos. Vamos ver. Sem ilusões, eu acho que isso é importante. Eu sempre insisto em que, diante do nosso tempo, devemos seguir aquele conselho de Gramsci: pessimismo da inteligência e otimismo da vontade. Pessimismo da inteligência no sentido de que a análise realista que fazemos do mundo de hoje não é uma análise que demonstre força da esquerda, avanço da esquerda, mas exatamente por isso é necessário o otimismo da vontade, ou seja, que nós lutemos fortemente para mudar essa situação.

Sergio Granja: Atualmente, existem muitas leituras de Gramsci. Lembrando o pós-modernismo de Derrida, arriscaríamos dizer que a escritura traz consigo uma traição potencial em relação à origem do discurso, digamos, um potencial parricídio do autor. Não foi à toa que Marx chegou a dizer que não era marxista. Nesse sentido, você não acha que Gramsci poderia sentir-se desconfortável em face de determinadas linhas de pensamento que reivindicam sua herança hoje?

Carlos Nelson Coutinho: Olha, certamente. Acho que todo autor pode ser traído quando lido, mas Gramsci tem uma característica especial: Gramsci não escreveu nenhum livro. Gramsci, preso pelo fascismo, tomou notas, apontamentos, que constituem os chamados Cadernos do Cárcere, e, embora eu ache que há uma estrutura sistemática por trás dessas várias notas, certamente a forma com que ela se apresenta a nós é uma forma fragmentária. E isso facilita leituras absolutamente divergentes de Gramsci. Por exemplo, uma leitura hoje muito comum na Itália ─ sobretudo depois que o Partido Comunista italiano desapareceu, depois que os ex-comunistas se tornaram cada vez mais centristas, eu diria assim ─, é uma leitura de Gramsci bizarríssima, que diz o seguinte: o Gramsci pregava o americanismo como uma terceira via entre o fascismo e o comunismo. Quer dizer, um absurdo. Quem lê Gramsci sabe que Gramsci critica o americanismo, vê no americanismo uma nova etapa do capitalismo com grande capacidade expansiva, mas evidentemente não adere ao americanismo e continua sendo até o fim da vida seguramente um comunista. Mas, eu diria, embora possam existir diferentes leituras de Gramsci, eu acho que há uma clara indicação de caminho: Gramsci era um comunista. Eu até diria que um comunista crítico, na medida em que há várias indicações nos Cadernos em que ele se distancia do modelo soviético, particularmente essa nota, a que me referi antes, sobre estatolatria, em que ele diz: tudo bem que em certo momento a estatolatria seja necessária, quando o país é atrasado, mas não se pode transformar a estatolatria num modelo teórico, devemos fortalecer a sociedade civil até o ponto em que a sociedade civil absorva o Estado. Ou seja, retoma a velha lição de Marx e Lênin de que no comunismo o Estado será extinto: o Estado deperecerá, como dizem tanto Marx quanto Lênin. Ou seja, em Gramsci há também essa ideia de que o Estado no comunismo é absorvido pela sociedade civil, pelo que ele chamou de sociedade regulada. Mas seguramente Gramsci tem sofrido muito na mão, veja bem, tanto de ultra-esquerdistas, se nós podemos usar a expressão, como de centristas. Porque o jovem Gramsci certamente era um revolucionário radical, que defendia o modelo de revolução que era o modelo inspirado na tomada do Palácio de Inverno. Exatamente no cárcere, ele passa a refletir por que esse tipo de revolução fracassou no Ocidente. E nesse momento é que ele vai propor uma nova estratégia revolucionária para o Ocidente, que ele chamou de guerra de posição, em contraste com a guerra de movimento. Então, há alguns leitores de Gramsci que se fixam muito nesse momento em que ele toma o modelo de revolução bolchevique como um modelo também válido para o Ocidente. Por isso é possível também lê-lo à esquerda, assim como é possível lê-lo à direita ─ é possível contra o texto, contra a letra de Gramsci. Mas também é possível dizer-se, como se diz hoje na Itália, da parte de alguns membros do Partido Democrático, que culminou o velho Partido Comunista italiano, essa ideia de que Gramsci prega o americanismo como terceira via entre fascismo e comunismo. É incrível.

Sergio Granja: É incrível. Essa aí, realmente…

Carlos Nelson Coutinho: E não são poucos, não.

Sergio Granja: Você se declara comunista.

Carlos Nelson Coutinho: Sou comunista. E pretendo morrer comunista.

Sergio Granja: Está certo. Você se declara comunista no sentido de que aspira a uma sociedade liberta dos ditames do mercado e da relação capital-trabalho.

Carlos Nelson Coutinho: Isso.

Sergio Granja: Vale dizer, livre da alienação e da exploração.

Carlos Nelson Coutinho: Isso.

Sergio Granja: Ao mesmo tempo, você condena com veemência a experiência do chamado socialismo real.

Carlos Nelson Coutinho: Sim.

Sergio Granja: Essa é uma posição que pode ser compartilhada com os trotskistas.

Carlos Nelson Coutinho: É verdade.

Sergio Granja: Mas, ao mesmo tempo, você se declara favorável a uma estratégia de lutas por reformas revolucionárias. Não é isso?

Carlos Nelson Coutinho: Sim.

Sergio Granja: Isso é um oximoro, não é não?

Carlos Nelson Coutinho: Não. Uma vez o Cid Benjamin disse: isso não é um pouco como ser ao mesmo tempo flamenguista e vascaíno? Mas como eu sou fluminense… não tem problema.

Sergio Granja: Eu queria que você explicasse essa sua posição.

Carlos Nelson Coutinho: Vamos começar pelo Trotski. Eu acho que é preciso distinguir entre o Trotski e o trotskismo. Eu acho que em nome de Trotski se criaram orientações políticas que me parecem irrealistas, frequentemente fora das tendências da realidade… O próprio Trotski também fez isso. Mas o que me fascina no Trotski é precisamente o fato de que ele criticou duramente o que estava sendo feito na União Soviética e se manteve firmemente revolucionário e firmemente comunista. Eu acho que isso é uma coisa que tanto Trotski como os trotskistas fizeram e os admiro por isso. Veja bem, ser comunista… Eu diria que aquilo que aconteceu nos países do socialismo real foi uma transição bloqueada. Eu diria que nem se chegou ao socialismo; muito menos, evidentemente, ao comunismo. O comunismo continua, a meu ver, como uma proposta de transformação radical da sociedade; como você observou muito bem, na qual não exista mais alienação, inclusive a alienação política, ou seja, na qual o autogoverno, como diria Gramsci, predomine na sociedade; na qual, num primeiro momento, o que existir de mercado, seja firmemente controlado; e que, no horizonte, desapareçam tanto o Estado como o mercado. Eu acho que essa é a proposta de Marx, uma proposta na qual eu continuo acreditando. É difícil chegar ao comunismo? É muito difícil. Não tenho ilusões de que a nossa geração chegará ao comunismo. Temo que nem a da minha filha nem a dos meus eventuais netos. Mas certamente é uma idéia que continua nos inspirando e que deve nos inspirar. E toda luta de esquerda que efetivamente tem incidência sobre o real deve ter o comunismo como seu horizonte. A idéia do reformismo revolucionário ─ veja bem, eu não diria reformas revolucionárias ─ é a idéia de que é possível na ordem capitalista, quando existem instituições democráticas, quando existe uma forte participação da sociedade civil, empreender um movimento de reformas que levem a rupturas revolucionárias. Não é que o reformismo revolucionário dispense as rupturas, não. É a possibilidade de que as rupturas se dêem através de reformas profundas. Veja bem, eu não sou contra a social democracia porque a social democracia foi reformista, não. Eu acho que ela foi insuficientemente reformista. Toda vez que a social democracia avançava no sentido de golpear a lógica do capital, de introduzir uma economia política da classe operária, como diz Marx a respeito da fixação da jornada de trabalho, toda vez que isso acontecia, ela recuava e acabava gerindo o capitalismo. E, veja bem, fala-se muito em direitos sociais, mas há um direito social que nenhuma social democracia até hoje pôs em prática: é o direito social à propriedade, que é a socialização dos meios de produção. Só há direitos humanos, civis e sociais quando eles são universais. E no capitalismo reina evidentemente uma completa desigualdade no direito à propriedade. A única forma de haver no mundo moderno o direito social à propriedade é com a socialização dos grandes meios de produção. E isso é a essência do socialismo, a essência do comunismo.

Sergio Granja: Eu acho que a gente já abordou todos os pontos que tinha em vista. Então, para encerrar, eu pediria que você fizesse uma avaliação do quadro brasileiro hoje e da política necessária que a esquerda deveria encaminhar para a situação que estamos vivendo, pensando na crise do neoliberalismo.

Carlos Nelson Coutinho: Se eu soubesse isso, eu estava bem. “Que fazer?”, Lênin perguntou e respondeu. Eu não tenho condições de fazê-lo. Mas eu acho que nós vivemos no Brasil, como no mundo, um período muito difícil para a esquerda. E eu diria o seguinte: a ascensão do PT ao governo, os dois governos Lula foram trágicos para a esquerda. A ditadura nos reprimiu, nos prendeu, nos torturou, obrigou muitos ao exílio, mas não desmoralizou a esquerda. E esses dois governos Lula ─ não só pelo escândalo do mensalão, mas pelo fato de que realizam políticas claramente a serviço do grande capital, mantêm uma hegemonia neoliberal clara ─ desmoralizaram a esquerda. E isso nos obriga a um esforço muito grande para recolocar na ordem do dia, particularmente nós do PSOL, uma proposta que retoma de certo modo a proposto do PT, mas que tem que ir mais além e evitar os riscos a que esta proposta conduziu. Espalha-se no mundo de hoje o que eu brincalhonamente chamo de americanalhamento da política. Ou seja, há disputa política entre diferentes grupos lutando pelo poder, mas com propostas muito semelhantes, repetindo claramente as políticas dominantes, que é o caso exatamente no Brasil da alternativa entre o PSDB e seus satélites e o PT e seus satélites. O PSOL surgiu, a meu ver, e foi por isso que aderi ao PSOL desde o início, como uma proposta de romper com essa falsa polaridade entre o mesmo. Tomara que o PSOL cresça. Eu acho que o PSOL surge num momento difícil. Quer dizer, o PT surge num momento de ascensão do movimento social, e isso explica em grande parte o seu crescimento, a sua expansão, inclusive a sua chegada ao governo; enquanto nós nascemos num momento de refluxo do movimento social, De qualquer modo, resta a nós essa tarefa dura, difícil, de constituirmos um pólo alternativo à mesmice da política brasileira de hoje. Talvez essa crise nos ajude a recolocar na ordem do dia propostas de esquerda. Tomara que isso aconteça. Vamos ver. “Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.”

Sergio Granja: Então, vamos agradecer a Carlos Nelson Coutinho, nosso companheiro do PSOL.

Carlos Nelson Coutinho: É o meu terceiro casamento partidário: PCB, PT e PSOL. Eu é que agradeço pelo convite. E estou sempre à disposição.

Referências

  1. Publicado na revista SOCIALISMO E LIBERDADE, Ano 1, Número 1, Maio de 2009, págs. 3 – 10
  2. https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/novosrumos/article/view/2383

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *