Resgatar os símbolos

É preciso que resgatemos os símbolos nacionais. Não há alternativa. São nossos, pois o que nos dá liga é o fato de sermos brasileiros: do Acre ao Rio de Janeiro, de Roraima ao Chuí. 

Tudo bem, alguns dirão que a Nação é incompleta em seu processo social, que temos que ser internacionalistas etc. Nada disso se nega. Contudo, há algo inegável: o que nos une é o fato de ocuparmos um território definido – não sem contradições –, de dimensões continentais1, com a mesma língua (apesar de suas variações internas), com os mesmos limites geográficos e interesses de soberania (ainda que uma soberania vendida e dependente, como querem os do lado de lá). Com classes diversas e seus interesses, e de seus fragmentos, igualmente variados, sim. Porém, sob o mesmo sol. Estamos sob a mesma bandeira – que nada tem a ver com as matas e riquezas, mas com a herança dos Orleans e Bragança. O que nos acontecerá será sobre o território nacional. Socialismo ou barbárie? É sobre o território brasileiro, na Nação, que isso se dará. 

Quando foi que nos desapegamos de nossos símbolos, que nos identificam, dão orgulho e esperança (mesmo que sobre um solo produtor de misérias)? Quem deu direito a uma fração da sociedade – fração libertada, como um Kraken mitológico, por um discurso odioso – de se valer dos símbolos como propriedade privada (ou privatizada, como eles tanto gostam)? E quem nos deu o direito negativo de aceitarmos a imposição deles? A nossa canarinho não é deles. Camisa usada por Leônidas da Silva, Garrincha, Pelé, Rivelino, Carlos Alberto Torres, Tostão, Sócrates, Zico e tantos outros mais – também de Marta, Formiga e outras grandes jogadoras –, que é motivo de pararmos o país em todas as Copas, de pintarmos e enfeitarmos as ruas, as escolas e ocuparmos as praças públicas para ver o Brasil jogar – e sabemos que a amarela, em jogos oficiais, sempre dá mais sorte que a azul – não é, nem pode ser, exclusividade daqueles que negam a Nação e suas contradições. 

Nossa bandeira nos dá a certeza de termos nascido no mesmo solo em que é produzida a melhor e mais diversificada música do planeta. De Pixinguinha e Caymmi, a Luiz Gonzaga, Hermeto Pascoal, Elis Regina, Ivan Lins, Alaíde Costa, Milton, Zezé Mota, Chico Buarque, Jorge Ben e tantas e tantos outras e outros; mesmo solo de Drummond, de Mário de Andrade, de Machado de Assis…  

Mesmo que uma parcela grande não seja integralmente considerada parte do país pelas disputas de classe, é o que nos dá liga. “Filha de nobres africanos, que por um descuido geográfico nasceu no Brasil…”2. É isso que importa. A nacionalidade é plural, altamente diversificada, incompleta, contraditória, cheia de sutilezas… mas é a que temos e é dela que partimos para o embate de construção, reconstrução, transformação. A Verde e Amarela, da seleção, e a Bandeira são nossas: nenhuma claque de usurpadores pode tomá-las para si e fazer com que aceitemos isso passivamente – como, aliás, vimos fazendo por algum tempo. 

Que medo é este que temos de ser identificados com aquilo que, no final das contas, somos? Que paralisia é esta em que estamos aterrados, postos neste lugar nefasto, neste ostracismo, por frações truculentas e ideológicas? “[…] vi muitas pessoas que ficaram enlouquecidas de medo, e até no mais sensato ele engendra terríveis miragens enquanto dura seu acesso.”3 Este medo paralisante nos botou exatamente no lugar em que não queríamos estar; faz com que não consigamos compreender adequadamente, para podermos agir tática e estrategicamente, o que ocorre no Brasil, pelo menos, desde aquela virada em 2013. O medo “Ora […] nos dá asas aos pés […]; ora nos prega os pés e os entrava”4. “E tantas pessoas, não conseguindo suportar as estocadas do medo, se enforcaram, se afogaram, se precipitaram, nos ensinaram que o medo é ainda mais importuno e mais insuportável que a morte!”5 Ainda seguindo de perto o belo ensaio de Montaigne: “É disso que tenho mais medo que do medo. É que ele supera em violência todos os outros infortúnios.”6

Está mais que na hora de resgatarmos, sem medos, a produção da nossa realidade, as ruas, nossos símbolos, todos eles – e isso daria um nó na cabeça da claque que sonha ter prioridade no uso de tais símbolos. 

Referências

  1. Cf. sobre um aspecto da formação do Brasil, a partir da leitura de Emília Viotti da Costa, o texto de Larissa Alves de Lira, “Espaço geográfico e a questão do negro no Brasil”, in: https://aterraeredonda.com.br/23262-2/.
  2. Jorge Ben, “Criola” (Jorge Ben, 1969): https://www.youtube.com/watch?v=c3w8MFpZ8CU.
  3. MONTAIGNE, Michel de. Sobre o medo. In: ___. Os ensaios. Organização e seleção de M. A. Screech. Tradução e notas de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2010.
  4. Idem
  5. Idem
  6. Idem

Vinicius dos Santos Xavier

Militante marxista desde o início dos anos 2000, Professor de filosofia da rede estadual de São Paulo, integrante do grupo de estudos “Repensando o Desenvolvimento”, do LABIEB-USP no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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