Salvador Allende e o brilho da revolução chilena

A memória do governo de Allende e da via chilena ao socialismo se tornou inseparável do seu desfecho trágico.

Por Joana Salém Vasconcelos [1]

“Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales, que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto”

Violeta Parra (1966)

Na canção Gracias a la Vida, a chilena Violeta Parra diz que seu canto é formado por dicha e quebranto, ou seja, êxtase e desalento, ou júbilo e consternação. Essa dualidade do canto de Violeta parece ser também o material das memórias de muitos chilenos sobre a experiência do governo da Unidade Popular (UP), cujo triunfo eleitoral completa 50 anos em setembro de 2020 [2].

Entre os que viveram a euforia popular da eleição de Salvador Allende, a lembrança daquela alegria se tornou quase inseparável da memória de horror do golpe de 1973 e das bombas que destruíram o Palácio de La Moneda com o companheiro presidente dentro. “El 11”, dizem os chilenos em tom grave, como se quisessem reduzir à menor partícula o indizível da ditadura Pinochet.

De certa forma, a memória do governo de Salvador Allende e da via chilena ao socialismo se tornou inseparável do seu desfecho trágico: dicha e quebranto.

Vitória eleitoral e quase golpe em 1970

Salvador Allende foi eleito em 4 de setembro de 1970 representando a UP, uma coalizão de cinco partidos de esquerda que pretendia criar um caminho próprio de transição ao socialismo. Como dizia o grupo musical Inti-Illimani, na Canción del poder popular, não se tratava apenas de trocar de presidente, mas de garantir que, pela primeira vez na história, o povo trabalhador construísse “un Chile bien diferente” com suas próprias mãos.

Durante os 60 dias entre a vitória de Allende e sua posse, em 4 de novembro, planos golpistas tentaram impedir que o socialista recebesse a faixa presidencial. A eleição foi apertada, Allende ganhou com apenas 1,3% de diferença do conservador Jorge Alessandri, distância que foi bastante alargada nas duas eleições que ocorreram durante seu mandato [3]. A Constituição exigia que o resultado fosse confirmado em um segundo turno parlamentar. Mas a UP possuía 38% dos deputados e 46% dos senadores, o que a tornava dependente da ala esquerda da Democracia Cristã (DC). A pressão popular foi decisiva. Sindicatos de trabalhadores urbanos e camponeses se mobilizaram para que o Congresso referendasse o voto popular.

Enquanto isso, como conta Joan Garcés, assessor de Allende, um golpe para impedir o triunfo da UP estava sendo tramado pela CIA, a International Telephone and Telegraph (ITT), e o então presidente Eduardo Frei, da ala direita da DC, que recebeu 250 mil dólares do Comitê Quarenta [4] para impedir a posse de Allende. Frei falhou em 1970, mas depois apoiou o golpe de 1973 e foi assassinado pela ditadura em 1982.

A mobilização popular jogou um papel fundamental para assegurar a vitória de Allende e dar início a uma das experiências mais instigante da história das revoluções.

O brilho da Unidade Popular

O Chile de 1970 representava 4,5% da população latino-americana, mas os olhos do mundo inteiro estavam vidrados na sua revolução sem sangue, com empanadas e vinho tinto. O programa da UP propunha um socialismo democrático, que socializasse a economia e se mantivesse plural na política. A ideia era dividir a economia em áreas: a estatal, a cooperativa e a privada. A estatal e a cooperativa, juntas, formariam a Área de Propriedade Social; enquanto o setor privado seria nacionalizado e formado somente por pequenos e médios negócios.

Cerca de 92 empresas estratégicas foram listadas para estatização, incluindo as gigantes estadunidenses do cobre, Anaconda e Kennecott, expropriadas sem indenização. Orlando Caputo, que dirigia a Corporação do Cobre (Codelco) no governo UP, disse que possivelmente a ausência de indenizações para tais empresas foi a ação mais ousada do governo, que assim atacava a lógica imperialista no seu âmago. Segundo ele, teria sido um fator determinante para o golpe.

Setores da burguesia chilena que sabotaram a produção contra o governo tiveram indústrias expropriadas, transformadas em empresas autogeridas pelos trabalhadores com apoio do Estado. Esse foi o caso da fábrica têxtil Yarur, como relata o historiador Peter Winn em seu livro Weavers of Revolution [5].  autogestão das fábricas foi ganhando proporções territoriais cada vez mais amplas, até que se formaram os famosos Cordões Industriais, experiências de poder popular e produtivo demonstrativas da impressionante força da auto-organização dos trabalhadores chilenos [6].

A reforma agrária foi outra fronteira enorme de expropriações em benefício da maioria. Em três anos, quase 6 milhões de hectares foram redistribuídos, afetando mais de 3 mil propriedades e beneficiando a quase 100 mil famílias camponesas incorporadas em assentamentos e centros de reforma agrária. Isto é, mais de meio milhão de pessoas sem terra se libertaram das oligarquias rurais. Segundo Sólon Barraclough, economista da FAO, foi a maior redistribuição de terras dentro da lei na história mundial, o que mostra o quão extraordinária era a via chilena ao socialismo [7].

O governo Allende prometeu erradicar o analfabetismo dentro do seu mandato de seis anos. Para o historiador Robert Austin, a promessa seria cumprida, não fosse o golpe [8]. Em três anos, mais da metade do analfabetismo havia desaparecido, graças a dois fatores: a enorme mobilização voluntária de estudantes e educadores para ensinar onde fosse necessário e a força descentralizada da educação popular de adultos, fruto da marcante passagem de Paulo Freire pelo país, anos antes [9].

Duas revoluções

Historiadores defendem que o Chile da UP vivia duas revoluções. Uma desde baixo, construída pela experiência popular comunitária, o trabalho coletivo, as formas cooperativas de sociabilidade e a luta cotidiana contra a ganância dos patrões. E outra, desde cima, conduzida pelas direções dos partidos da esquerda que se empenhavam em garantir a força institucional das mudanças, consolidar o projeto socialista no governo e preservar a narrativa de uma via pacífica.

Em 1971, as duas revoluções se retroalimentaram e se fortaleceram. A mobilização popular dava fôlego ao governo para avançar em seu programa e, apesar das divergências internas da UP, foi um ano harmônico e criativo da revolução chilena. Mas em 1972, as ações de sabotagem interna e externa se intensificaram. O Congresso estrangulou o Executivo, votando leis orçamentárias que obstruíam qualquer política. Os empréstimos dos Estados Unidos secaram, aumentando as dificuldades de importação em um contexto de melhoria geral do poder de compra. O boicote à economia popular foi desatado pelas classes dominantes internas, sobretudo com as ações de acaparamiento, o ocultamento de estoques de mantimentos por comerciantes, que fomentava um mercado ilegal inflacionado.

Esse ataque especulativo das elites causou desabastecimento e foi respondido pela população com as Juntas de Abastecimento e Preços (JAP), cuja importância foi narrada por Eder Sader [10]. Centros de Madres, Juntas de Vecinos e JAPs tomaram conta do abastecimento nos bairros populares, para garantir os preços baixos fixados pelo governo e conter a inflação, cuja causa era mais político-ideológica que econômica. A revolução tinha forte impulso comunitário.

O auge da crise ocorreu em outubro de 1972, quando empresários de distribuição e comércio entraram em locaute, consolidando a posição da média e pequena burguesia contra o governo popular. A relação do governo com essas frações de classe era um dos eixos de polêmica: a revolução deveria proteger ou expropriar pequenos e médios proprietários? Não havia consenso.

Após outubro, o choque entre as duas revoluções se agravou. Enquanto Allende buscava preservar a constitucionalidade do seu poder e conduzir a revolução “desde cima” com cautela, a direita e a extrema direita inviabilizavam o governo com sedição, atentados violentos e boicotes, empurrando a via chilena ao socialismo a um impasse. Os mais fortes ministros de Allende sofreram acusações constitucionais sem fundamento legal.

Nas ruas, a população gritava pelo fechamento do Congresso e assegurava: “Allende, Allende, el pueblo te defiende!”. A esquerda radical, dentro e fora da UP, propunha o avanço impetuoso da revolução e a ruptura com a legalidade burguesa. No entanto, tampouco dispunham das armas e métodos preparados para levar a cabo sua política de insurreição revolucionária. O impasse se aprofundou até setembro de 1973, quando as forças militares e civis mais truculentas do país sequestraram o poder.

Salvador Allende, que morreu em defesa de uma via pacífica e democrática ao socialismo, foi fotografado em suas últimas horas segurando a AK-47 que lhe foi presenteada por Fidel Castro em 1971, junto com uma mensagem: “A meu bom amigo Salvador Allende, que por meios diferentes tenta atingir os mesmos objetivos” [11].

Derrota ou fracasso?

Até hoje se discute se a revolução chilena foi derrotada ou se fracassou. Na primeira hipótese, a UP e o governo teriam feito todo possível para transformar estruturalmente o país em conjunto com as forças populares, mas o inimigo se mostrou mais forte e matou o projeto socialista com uma política de extermínio. Na segunda hipótese, os dois polos da Unidade Popular se acusavam mutuamente dos erros que os teriam levado à derrocada por motivos internos à dinâmica revolucionária.

O polo rupturista da esquerda chilena, composto por setores do Partido Socialista, pelo Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU) e o Movimento de Izquierda Revolucionaria (MIR), criticava o apego de Allende à institucionalidade, alegando que o governo constrangeu o poder popular, impedindo que a revolução avançasse de baixo para cima. Já o Partido Comunista e o setor allendista do PS acusavam a esquerda radical de fomentar movimentos irresponsáveis e ilegais (como tomas de terras, fábricas e bairros), que inviabilizaram a revolução desde cima, pois tensionavam o país e ofereciam à direita os argumentos que necessitava para um golpe.

Tal debate até parece um pouco familiar a diferentes contextos, revolucionários ou não. Na realidade, as polêmicas da esquerda chilena, com um polo rupturista e outro institucional, eram próprias do desafio da conquista do poder. Ganhar as eleições era um aspecto indispensável, mas insuficiente, de uma série de outras batalhas pelo poder, que aconteceram em todas as esferas da sociedade. No Chile, o enigma das revoluções parece visível em todos os seus detalhes.

A memória da UP aos 50 anos

Conhecer e valorizar a história da UP é importante por vários motivos. A revolução chilena foi comunitária e autogestionária. As cooperativas de trabalhadores eram uma forma econômica fundamental. Se imaginamos um futuro para a UP sem golpe, veríamos um socialismo horizontal, com a centralidade no poder popular, com uma diversidade de sorrisos, com forte sentido de dignidade no trabalho e nos mais variados territórios.

A revolução chilena foi plural, cheia de vozes discordantes e objetivos comuns. A cultura política evocada pela revolução chilena é do diálogo e da práxis. Salvador Allende foi um revolucionário gigante, com uma coerência sem paralelo, que deu sua vida a um projeto socialista profundamente democrático. Em seu último discurso, pronunciado dentro de um palácio presidencial em chamas, anunciou o retorno da revolução: “a história é nossa e a fazem os povos. Mais cedo ou mais tarde, se abrirão as grandes alamedas por onde passe o homem livre”.

Em outubro de 2019, o estallido social chileno desencadeou a experiência mais transbordante de mobilizações contra o legado da ditadura de Pinochet, cristalizado na constituição de 1980 e seu estado subsidiário. Desde a revolução chilena, não ocorriam lutas populares tão massivas e contundentes, com milhões de pessoas envolvidas na busca de um novo modelo de sociedade. A constituição do Pinochet, que se desresponsabiliza de garantir direitos sociais e mínimas condições de vida digna à população, foi a válvula de segurança das elites chilenas contra a repetição de qualquer experiência popular semelhante à UP. Não por acaso, a Assembleia Popular Constituinte foi alçada ao centro da luta atual.

O rechaço ao neoliberalismo e ao individualismo contidos no estallido social de 2019 recuperou o sentido comunitário e horizontal ecoado da revolução chilena. Lutadores populares do século XXI mostraram uma generosa dedicação nas batalhas de rua pela “dignidade” de todos. Essa palavra, que é evocada com frequência pelos chilenos que viveram a UP, convergiu para as múltiplas lutas de agora.

O sentido comunitário e combativo da revolução chilena, bem como a profunda representatividade popular da UP, são lições para nossos dias. Se nunca fomos tão individualistas e concorrentes uns dos outros, a história da UP nos oferece a comunidade, a pluralidade e a organização territorial das bases populares como valores necessários à luta anticapitalista.


1 Doutoranda em História Econômica na USP, com uma pesquisa sobre a reforma agrária e pedagogias camponesas no Chile, incluindo o período da Unidade Popular.

2 Assim diz o título de um documentário sobre a reforma agrária chilena, chamado justamente Dicha y quebranto. Disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=XOjzHbjBMAM

3 Em abril de 1971, a UP obteve 48% dos votos nas eleições municipais, contra 26% da DC e 18% do PN. Em maio de 1973, nas eleições parlamentares, a UP obteve 44% dos votos, contra 55% da aliança entre DC e PN juntos. Essa eleição foi considerada um triunfo da UP, que superou em 50% o tradicional terço do eleitorado que lhe cabia e reduziu a pouco mais da metade os dois terços da DC e PN.

4 O Comitê Quarenta era um grupo governamental e empresarial dos EUA, que fazia política externa com uma perspectiva de negócios. Ver Joan Garcés, Allende e as armas da política. São Paulo: Scritta, 1992.

5 Peter Winn, Weavers of Revolution. The Yarur workers and the Chile’s road to socialism. New York: Oxford University Press, 1986. Em espanhol: Tejedores de la revolución. Los trabajadores de Yarur y la vía chilena al socialismo. Trad.: Verónica Huerta e Paula Salazar. Santiago: Lom, 2004.

6 Elisa C. Borges, “Con la unidad popular ahora somos gobierno!” A experiência dos cordones industriales no Chile de Allende. Rio de Janeiro: Luminária Academia, 2015.

7 Sólon Barraclough e José A. Fernandez, Diagnóstico de la reforma agraria chilena. México DF: Siglo XXI, 1974.

8 Robert Austin, State, Literacy and popular education in Chile (1964-1990).

9 Entre 1965 e 1969, Freire viveu exilado em Santiago. Como consultor da Unesco, trabalhou para os ministérios da agricultura e da educação, difundindo seu método de alfabetização e ação cultural. Foi nesse período que escreveu Pedagogia do Oprimido, cuja matéria prima foi sua experiência de diálogo com os povos nordestino e chileno.

10 Eder Sader, Um rumor de botas. A militarização do Estado na América Latina. São Paulo: Polis, 1982.

11 Citação em Winn, A Revolução Chilena. São Paulo: Ed. Unesp, 2010 (p. 177). Sobre a visita de Fidel Castro ao Chile de Allende em 1971, ver: Elisa Campos Borges e Joana Salém Vasconcelos, Cuba e Chile: diálogos revolucionários para América Latina. In: Sales, Jean; Araújo, Rafael; Silva, Tiago, Revolução Cubana. Ecos, dilemas e embates na América Latina. Disponível em: https://bit.ly/3jHe3HQ


Publicado originalmente em: https://www.thetricontinental.org/pt-pt/brasil/salvador-allende-e-o-brilho-da-revolucao-chilena/

Joana Salém

Historiadora, doutora em História Econômica pela USP e professora da Faculdade Cásper Líbero. Pesquisa América Latina, sendo autora do livro "História Agrária da Revolução Cubana: dilemas do socialismo na periferia".

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