“Síndrome de Poliana”, pequena política e eleições municipais

Após meses de inação em termos de mobilização popular e de enfrentamento efetivo ao governo Bolsonaro e sua pauta neoliberal extremada, a oposição de esquerda volta à disputa política fundamentalmente focada nas eleições municipais. Volta em situação de completa rendição à “nova chantagem do mal menor” (ruim com o centro-direita, pior com Bolsonaro), manifesta na adesão passiva à “pacificação” com Bolsonaro urdida pelo mesmo centro-direita no Congresso, no STF e na grande mídia “oposicionista” (Globo, Folha, Estadão, etc.), e trata de “cuidar da vida”. Acometida por uma espécie de “Síndrome de Poliana”, que ocorre quando as pessoas preferem se esquecer das situações desagradáveis e se concentram apenas nas coisas “positivas”, a oposição de esquerda “cuida da vida” como se não estivéssemos sob uma “democracia restrita” em acelerado processo de deterioração autoritária e fascistizante; como se a aplicação da pauta neoliberal extremada não estivesse avançando a pleno vapor com o apoio efusivo do conjunto das classes dominantes e do centro-direita e graças à “pacificação”com Bolsonaro; como se a pandemia tivesse acabado, apesar de continuar matando 600/700 pessoas todo dia e como se as condições de vida e trabalho da massa da população tivesse se “normalizado”, minorando a tragédia social e a pauperização causadas pelas crises gêmeas (econômica e epidemiológica).

Além da rendição à nova chantagem do mal menor, a oposição de esquerda também se submete à lógica da redução de seu espaço político presente na nova lei eleitoral, que proíbe as coligações proporcionais, mas não as coligações majoritárias, e obriga os partidos a buscarem um coeficiente eleitoral cada vez maior a cada eleição para manter seus registros junto à Justiça Eleitoral. A perspectiva de criação de uma frente de esquerda para enfrentar o avanço da direita e a ameaça bolsonarista fracassou miseravelmente por conta dessa submissão e do cálculo oportunista de que concorrendo em faixa própria cada partido “fideliza” melhor seu eleitorado e tem mais chances de sobreviver à guilhotina partidária. Na maior parte dos casos prevalecem os interesses dos caciques e burocracias partidárias e as conveniências locais, com os maiores partidos do centro-esquerda (PT, PDT, PSB, Movimento 65, ex-PC do B, REDE) aliando-se alegremente com todo o espectro do campo golpista em parte expressiva dos municípios, até mesmo com o PSL, ex-partido de Bolsonaro.

Este é um comportamento esperado por parte dos partidos de esquerda que tem uma inserção fundamentalmente institucional e que há tempos anunciam a intenção de negociar alianças políticas e eleitorais com partidos do campo golpista, como PDT, PSB e Rede. Porém, para os partidos que têm inserção nas classes trabalhadoras e atuam minimamente em seu movimento social e político, como PT, Movimento 65, PSOL, PCB, PSTU, PCO e UP, esta postura não só é equivocada, como é o caminho mais rápido para uma derrota política de proporções trágicas para o mundo do trabalho.

A frente de esquerda eleitoral reunindo todos ou a maior parte dos partidos deste campo foi viabilizada em poucos lugares, mesmo entre as capitais, com as alianças à esquerda se limitando principalmente às iniciativas da esquerda socialista (PSOL, PCB, UP)1. Setores desta última buscam se distinguir desta tendência e criticá-la, mas sem força para revertê-la.  Mais uma vez a institucionalidade política autocrática impõe aos partidos de esquerda um “transformismo em sentido amplo”, em que basta a simples formatação das regras do jogo para esvaziar a autonomia política e a perspectiva crítica dos adversários, fazendo-os atuar como fiadores da ordem social dominante mesmo sem terem sido convidados para o “banquete”.

O “cuidar da vida” reflete nada mais que o institucionalismo crônico que acomete a esquerda brasileira desde há muito e se resume em instrumentalizar a campanha eleitoral para tonificar as burocracias partidárias, manter ou aumentar a inserção institucional conquistando mandatos (prefeitos e vereadores), testar alianças para 2022 e aproveitar a propaganda partidária obrigatória para fazer proselitismo e recuperar legitimidade no imaginário popular, na ausência de um trabalho real de mobilização e organização. No discurso de campanha das candidaturas de esquerda, particularmente naquelas que têm inserção no mundo do trabalho, prevalece um conjunto de propostas que configura um programa amorfo, “sem classe”, relativamente indiferenciado do discurso da direita, girando em torno das mesmas pautas de sempre como mobilidade urbana, saúde, educação, emprego e desenvolvimento, etc. A dissonância se limita ao foco maior na questão da moradia e da especulação imobiliária e no combate às opressões, enquanto a direita foca nos temas da segurança pública, da “gestão” e da corrupção. No entanto, as promessas se sucedem num debate político completamente esquizofrênico e ensimesmado, como se as condições para sua efetivação dependesse apenas de “vontade política” e do compromisso com o eleitor. Promete-se mais escolas, mais creches, mais centros de saúde, mais saneamento básico, mais asfalto, etc. num momento em que as prefeituras vivem sob uma asfixia financeira brutal imposta por uma legislação pró-rentista (Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei do Teto de Gastos) e por um ajuste fiscal draconiano operado pelo Ministério da Economia e apoiado por toda a direita, o que dificulta enormemente qualquer investimento público. No momento em que o serviço público sofre como nunca um processo de desmonte e arrocho salarial em favor do clientelismo e da contenção de gastos, promete-se a valorização do servidor público, mais concursos e a melhoria no atendimento sem problematizar as reais condições para sua viabilização. Sem que haja qualquer questionamento do caráter restrito da democracia vigente desde o golpe de 2016, da escalada autoritária em curso e das ameaças de golpe fascista, os candidatos se comprometem em garantir a participação popular na definição dos destinos da cidade. Como se tudo isto fosse realizável simplesmente graças à força do voto popular e o compromisso dos candidatos, e não por um processo duro e prolongado de enfrentamento político, que exige dos trabalhadores um movimento massivo e permanente de politização, organização e contestação nas ruas, escolas e locais de trabalho e moradia.

A atual campanha eleitoral revela, na verdade, a vitória da “pequena política” – ou seja, do debate e da disputa em torno das questões imediatas, superficiais e de momento, sobre a esquerda vinculada ao mundo do trabalho, que em termos majoritários abandonou a perspectiva de classe em favor de uma defesa abstrata da “cidadania”, dos “direitos” e de pautas identitárias auto-referentes, que não consegue apresentar uma perspectiva não apenas antineoliberal, mas anticapitalista, e que substituiu a mobilização de massas e a organização de base pela inserção institucional e pelo “oposicionismo de resultados”. 

Uma amostra desta situação trágica pode ser vista na disputa para prefeitos das 26 capitais, cidades que concentram grande parte do eleitorado e cujas eleições municipais têm influência nas articulações políticas e na emergência de lideranças para as disputas estaduais e nacional de 2022. De acordo com as pesquisas de intenção de voto mais recentes, entre os três candidatos melhor posicionados em cada uma das 26 cidades, 39,74% pertencem a partidos do “Centrão” (PP, PL, Republicanos, Solidariedade, PTB, PSD, PROS, Podemos, PSD, DC, Avante, Patriota), que são aliados do governo Bolsonaro, ou afinados com sua pauta fascistizante (PSL); 32,07% pertencem aos partidos de centro-direita (DEM, MDB, PSDB, Cidadania), que se opõem ao governo Bolsonaro, mas apoiam a sua pauta neoliberal extremada e tem segmentos que se articulam com o “Centrão”; 24,35% pertencem à oposição de centro-esquerda (PT, PDT, PSB e Movimento 65) e apenas 3,84% pertencem à esquerda socialista (PSOL). Por enquanto o PT, maior partido de oposição, não lidera em nenhuma capital, nem mesmo no Nordeste, onde seu candidato venceu as eleições presidenciais em 2018.

Esta amostra indica que mesmo que os candidatos bolsonaristas ou apoiados abertamente por Bolsonaro não tem apresentado o desempenho esperado, levando alguns a considerar que o bolsonarismo está politicamente isolado, a tendência eleitoral hoje predominante é de um fortalecimento político das forças que apóiam o governo e/ou das forças que dirigem a “pacificação” com ele, o que significa a manutenção da pauta política e econômica antipopular e antinacional prevalecente desde o golpe (democracia restrita e neoliberalismo extremado). É claro que este é um retrato momentâneo, que pode se alterar nas semanas seguintes, mas se a oposição de esquerda ligada ao mundo do trabalho continuar abdicando da “grande política”, ou seja, do debate sobre os temas decisivos do atual período da luta de classes e do enfrentamento efetivo com o bloco no poder e o campo golpista, por meio da mobilização de massas e não apenas pela campanha eleitoral, é bastante provável que saia menor das eleições municipais em termos de inserção institucional, com menos prefeitos e vereadores do que atualmente, e politicamente ainda mais fragilizada. Urge reverter este comportamento político e ideológico para evitar uma derrota de conseqüências duradouras para as classes trabalhadoras e suas organizações políticas e sociais.

Referências

  1. ver: https://www.metropoles.com/brasil/psl-e-pt-deixam-ideologia-de-lado-e-se-unem-145-vezes-nas-eleicoes-2020; e https://eleicoes.pcdob.org.br/2020/09/17/pcdob-lanca-numero-inedito-de-candidaturas-nas-capitais-do-pais/

David Maciel

Doutor em história, prof de história, membro da coordenação da escola de formação socialista, membro da editoria de marxismo21, e da coordenação nacional do GT história e marxismo da ANPUH.

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