Sobre a fugidia iminência da revolta

Photo by Gustavo Basso/NurPhoto via Getty Images

Não vai ter copa. Não vai ter golpe. Não vai ter teto. Só prendem Lula por cima do nosso cadáver. Não vai ter reforma da previdência. Com o fim do auxílio emergencial, vai vir a revolta. Vem aí a revolta da vacina. Vem aí a revolta do oxigênio. O traço comum mais gritante de todas essas afirmações não é que todas elas foram derrotadas. Até porque a possibilidade das três revoltas mencionadas por último ainda está em aberto. O traço comum que mais salta aos olhos é a seguinte expectativa: “Não é possível! Agora o povo reage!”. Dito de outro modo, nosso campo muito frequentemente se manifesta publicamente como se contasse com uma explosão espontânea de indignação e revolta. Claro que sempre existe algum nível de organização por trás dessas palavras de ordem. No entanto, dois aspectos do nível necessário de organização parecem estar ausentes. 

O primeiro deles é que a formação de uma força coesa, capaz de intervir nos momentos decisivos de modo que suas palavras de ordem não sejam natimortas, é produto de um processo intencional. A energia para catalisar uma revolta na direção pretendida precisa ser construída. Ela não brota espontaneamente das lutas do cotidiano, por mais valorosas e necessárias que elas sejam. Podemos, aqui, recordar Gramsci, por exemplo: 

O elemento decisivo de cada situação é a força permanentemente organizada e há muito tempo preparada, que se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é favorável (e só é favorável na medida em que esta força exista e seja dotada de ardor combativo). Por isso, a tarefa essencial consiste em dedicar-se de modo sistemático e paciente a formar esta força, desenvolvê-la, torná-la cada vez mais homogênea, compacta e consciente de si.

 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 3, 2014, p. 46.

O segundo é que as revoltas desejadas, antes mesmo que se abra o momento oportuno para sua eclosão, precisam ser construídas. A denúncia em redes sociais, nas ruas e pelas vias institucionais têm a sua função. Mas elas ocorrem no varejo. É necessário construir meios de fazer a denúncia e a agitação no atacado, em escala industrial. Falar o que não é óbvio, e de maneira que seja difícil ignorar. Quanto a isso, poderíamos recuperar inúmeros momentos do pensamento de Lênin, mas me interessa sobretudo chamar a atenção para a “luta encarniçada contra a espontaneidade” que ele empreende em “O que fazer?”. Após argumentar longamente que a espontaneidade costuma conduzir a classe trabalhadora para “debaixo da asa da burguesia”, Lênin afirma o seguinte: 

A ascensão das massas chegou e se ampliou de forma ininterrupta e contínua, e não só não se interrompeu onde havia começado, como ainda se propagou a novas localidades e a novas camadas da população […]. Os revolucionários, porém, atrasaram-se em relação a essa ascensão, tanto em suas “teorias” quanto em sua atividade, não conseguiram criar uma organização permanente e consecutiva, capaz de dirigir todo o movimento.

 LENIN, V. I. O que fazer?. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 69.

Com frequência, vemos a defesa de uma espontaneidade rebaixada, sob o argumento de que as condições dadas nos limitam a isso. Mas, aqui, Lênin corretamente chama à atenção que esse tipo de posicionamento “perde o bonde”, mesmo quando a energia insurrecional se alastra pela sociedade; mesmo quando uma revolta da vacina ou uma revolta do oxigênio parecem os desdobramentos mais óbvios e inevitáveis.

Quem acompanha essa coluna sabe que meu tema recorrente é a emergência climática em que vivemos. E se há uma arena de luta em que não podemos nos dar ao luxo de “perder o bonde”, é essa. Se há uma luta que não podemos ceder ao ritmo e direção acidentados da espontaneidade, é essa. Como as condições dadas são pouco (ou nada) propícias para o tipo de levante que seria necessário, na escala e direção que seriam necessárias, então duas tarefas urgentes põem-se diante de nós: construir as condições propícias, por um lado, e estarmos adequadamente preparados quando elas (subitamente) se apresentarem, por outro.

Estarmos preparados, nesse caso, significa não apenas construir sistemática e pacientemente nossa capacidade de intervenção efetiva, mas também, em muitos sentidos, prospectar o futuro. É entender que alguns impactos bastante dramáticos das mudanças climáticas já em curso vão começar a atingir as sociedades humanas com ferocidade e frequência para as quais não temos ainda qualquer resposta satisfatória. É compreender que essa perturbação incontrolável da “normalidade”, tal como estamos vendo acontecer em dose homeopática durante a pandemia da Covid-19, aumentará tremendamente a volatilidade política (por vezes, de maneira episódica e, possivelmente, até mesmo em mudanças permanentes de nível). É perceber que os pilares do capitalismo – mas também os da sociedade, em um sentido geral – vão ser balançados violentamente.

Em seu livro de 2018, The progress of this storm, Andreas Malm nos mostra que, ao contrário de nós, o campo da ordem já vem se preparando diligentemente. E sequer são as iniciativas individuais de multimilionários tentando criar suas próprias arcas de Noé que deveriam nos preocupar mais intensamente. Malm nos apresenta, por exemplo, um relatório da Inteligência estadunidense sobre ameaças globais em que se lê: “Eventos climáticos extremos (enchentes, secas, ondas de calor) irão, crescentemente, perturbar mercados de alimentos e energia, exacerbando a fraqueza do Estado, forçando migrações humanas e disparando revoltas, desobediência civil e vandalismo”1. No relatório mais recente disponível, de 2019, a lista de riscos iminentes aumenta consideravelmente: além de enchentes, secas e ondas de calor, são mencionados incêndios, elevação do nível do mar, degradação do solo, pandemias, acidificação dos oceanos, migrações em massa, tensões geopolíticas2. Nada disso é colocado como um conjunto de previsões para um futuro distante. São processos em curso que já ameaçam (ainda segundo o mesmo relatório) infraestrutura, saúde e as seguranças hídrica e alimentar. Aqui temos apenas um exemplo emblemático, mas é evidente que nós, a esquerda em sentido bem amplo, estamos desproporcionalmente mal preparados. 

Refletindo sobre esse déficit de organização, em seu livro de 2020, War Communism in the Twenty-First Century, Malm propõe que o pensamento ecológico marxista nos levou bastante longe no entendimento da inviabilidade ecológica incontornável do capitalismo e que agora precisamos de um tipo de “ecologia leninista”3. Essa ecologia leninista seria estruturada por ao menos três princípios básicos. 

O primeiro é a conversão de uma crise dos sintomas em uma crise das causas. Em outros termos, é preciso entender na prática a ecologia marxista. Entender que enquanto a lógica do capital presidir nossas vidas, todas as vias possíveis para respondermos efetivamente aos desafios colocados pela emergência climática estarão bloqueados. É preciso derrotar as causas. O segundo é que não pode haver procrastinação de qualquer tipo. É fundamental imprimir velocidade à nossa mobilização. Se pouca coisa indica que essa velocidade possa ser alcançada, é fundamental constituir os meios para alcançá-la. Como o ex-vereador do Rio de Janeiro, Renato Cinco, costuma corretamente afirmar, o tempo compatível com nossos desafios é o da revolução, não o da reforma ou o do espontaneísmo. A era do gradualismo acabou, ratifica Malm4. O terceiro é aproveitar qualquer oportunidade de tomar as rédeas do Estado e força-lo a outra direção: de uma postura cúmplice com a marcha da catástrofe para o tipo de planejamento meticuloso que será exigido num futuro terrivelmente próximo.

Naturalmente, esses são apenas princípios gerais. Mas eles veiculam ideias que precisam nortear nosso esforço de organização daqui para frente. Nunca enfrentamos crise igual. As lutas pulverizadas, com horizonte limitado às urgências do cotidiano, são cronicamente insuficientes. A crise climática não vai passar, como a atual crise sanitária talvez passe. Ela só vai piorar. Quanto mais apostamos nossas fichas na explosão espontânea das massas, mais distantes estaremos de resguardar um planeta habitável. Em que momento nos radicalizamos?5

Referências

  1. US Intelligence Community. Worldwide Threat Assessment of the US Intelligence Community, 2013, p. 9. Disponível em: encurtador.com.br/ackK5.
  2. US Intelligence Community. Worldwide Threat Assessment of the US Intelligence Community, 2019, p.21 a 23. Disponível em: encurtador.com.br/oxSXY.
  3. MALM, A. Corona, Climate, Chronic Emergency: war communism in the twenty-first century. Londres: Verso (edição Kindle), 2020.
  4.  Ibidem.
  5.  MALM, A. How to blow up a pipeline. Londres: Verso (edição Kindle), 2021. 

Eduardo Sá Barreto

Professor de Economia, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro "O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas"

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