Sobre os protestos na Rússia e a natureza social do regime Putin

Sergei Mikhailichenko/SOPA Images/LightRocket via Getty Images)

O modelo político e econômico russo é peculiar, pois embora seja um capitalismo sem qualquer maquiagem ideológica que o pinte como uma “via para o socialismo”, como fazem os chineses, tem no seu controle grupos oligárquicos relacionados ao poder vigente no Kremlin.

Assim, os bilionários russos precisam gozar do favor e amizade do déspota reinante, senão não terão um bom fim para a sua carreira.

A revista Forbes lista hoje 46 bilionários russos, encabeçados por um amigo de Putin, Vladimir Potanin, dono de cerca de 40 bilhões de dólares, e nessa lista não entram os que se chocaram com o Kremlin, pois isso significou a perda de suas fortunas e, em alguns casos, da própria vida.

Mikhail Khodorkovsky era, até o final do século XX, o maior bilionário russo, o 16º do mundo, mas entrar em conflito com o poder, foi acusado de fraudes, preso e vive hoje exilado.

Boris Berezovski, que chegou a possuir o maior canal de TV russo, entrou em disputa com o Kremlin e foi para o exílio, onde foi encontrado enforcado em seu banheiro em 2013. Seu protegido Litvinenko morreu de maneira menos discreta, em 2006, envenenado por polônio radioativo, após denunciar que Putin teria sido responsável por atentados atribuídos aos chechenos.

O que há em comum entre esses bilionários russos?

Em primeiro lugar, que não são uma burguesia hereditária, mas ex-comunistas que se apropriaram da propriedade estatal quando houve a restauração capitalista plena sob Yeltsin, com o pagamento de mínimas quantias em vouchers para cada cidadão como a parte individual de cada um na propriedade pública, no chamado Plano Gaidar. Os burocratas acumularam seu capital por meio da compra desses títulos e de outras manobras escusas, nas quais a violência teve um papel central. 

Não houve na Rússia uma restauração das famílias burguesas anteriores à revolução, à exceção da Igreja Ortodoxa, que recebeu de volta propriedades, títulos e privilégios, inclusive comerciais, como os da importação de álcool e de tabaco. A atual burguesia russa é, em grande parte, de pessoas que foram filiadas ao partido comunista.

O próprio Putin é um desses ex-comunistas enriquecidos que se tornaram capitalistas, mas acima de tudo, ele manteve o controle férreo do poder por meio de um regime bonapartista policial conforme sua origem na KGB.

Até hoje, a via da acumulação capitalista na Rússia é por meio da obtenção das graças do poder, o que faz desse capitalismo uma espécie de consórcio mafioso de pilhagem dos bens públicos para o enriquecimento privado de uma minoria. Isso também diminuiu a penetração capitalista estrangeira na Rússia. No comércio, todas as cadeias mundiais passaram a disputar o mercado russo de consumo, mas na produção, há muito menor presença de parcerias do que, suponho, deve haver, por exemplo, na economia chinesa.

Esse excessivo intervencionismo estatal não vai no sentido de nacionalizar riquezas, mas ao contrário, no loteamento cada vez mais seletivo dos acessos ao poder econômico que derivam diretamente do poder político.

Em se tratando de um poder que mantém, de fato, o mesmo governante há mais de duas décadas, acusado de fraudar eleições em 2011, e que acabou de aprovar reformas constitucionais que lhe permitirão continuar quase indefinidamente no governo, se compreende o esgotamento de sua liderança entre os russos, especialmente a juventude.

O movimento de oposição que eclodiu a partir da prisão, após um envenenamento, do líder da ala liberal, Navalny, que teve seu aliado Nemtsov assassinado, em 2015, a tiros ao lado do Kremlin, não pode ser reduzido a esse indivíduo.

Muito mais anti-Putin do que pró-Navalny, o movimento atual reúne um arco de opositores que expressam desde as reivindicações de liberdades culturais e de costumes, até os setores regionais do extremo oriente insatisfeitos, passando pelos trabalhadores destituídos de sindicatos e mesmo do direito de greve.

Não é à toa que Navalny passou a incorporar reivindicações salariais e sociais e deixou de lado o discurso racista xenófobo que o levou a ser expulso do partido liberal Yabloko em 2006, do qual saiu acusado de organizar uma marcha nacionalista e declarações xenofóbicas.

Mas o que há atrás das centenas de cidades que se mobilizaram, muitas em temperaturas glaciais, é uma insatisfação social com a desigualdade, com o exibicionismo da riqueza obscena de bilionários oligarcas e uma falta geral de liberdades públicas.

O papel do estado permanece grande, especialmente na indústria militar, cujo poderio faz do país ainda a segunda superpotência do mundo. Esse papel, longe de ser “anti-imperialismo ocidental” num sentido ideológico, é de concorrência com ele por parte de outro país imperial, com poder econômico desproporcional ao seu poder militar. A Rússia é hoje um imperialismo menor, concorrente tanto da Europa e dos EUA, como da China, mas seu poderio militar faz dela certamente uma força imperialista, sobretudo em sua vasta periferia.

A crise atual revela que o projeto totalitário de uma sociedade sem expressão política autônoma é dificilmente realizável, ainda mais num país que viveu uma das maiores revoluções contemporâneas.

A vaga destes últimos protestos continua a ser uma onda sem a expressão subjetiva de um projeto de esquerda, pois a antiga fração comunista que não se dissolveu, o PC, é hoje aliada objetivo de Putin, tanto na diplomacia belicista na Crimeia, Ucrânia e Geórgia, como na supressão de liberdades, especialmente para as mulheres e os LGBT, e particularmente, na capitulação à Igreja Ortodoxa, a ponto de Ziuganov, secretário geral do PCUS, declarar que pratica a sua liturgia.

Nesse cenário, Navalny é um liberal de direita, mas Putin é um neoliberal bonapartista policialesco com inclinações ideológicas neofascistas, que o levam a se aliar e a promover a extrema-direita europeia e a ajudar Trump. Na denúncia da corrupção, Navalny se coloca como um ponto de apoio para uma ala da própria camada neoburguesa e de amplos setores sociais, mas sem a consistência de um projeto alternativo viável ao status quo atual que, ao menos, estabilizou o período turbulento e de enorme retrocesso que foi a década de 1990, quando se pagou um preço social brutal pelo desmonte do sistema de propriedade estatal e de estado de bem estar. 

Nos movimentos sociais reside toda a esperança. A ação política dos protestos é o que pode fazer florescer um novo sindicalismo, novos partidos e efervescência cultural.

A libertação de Navalny como preso político é um ponto de convergência que está levando a um movimento que questiona com protestos de massa a própria proibição dos protestos.

Coincide com o que já estava acontecendo na Bielo-Rússia, o que faz dessa onda de rebelião por liberdades democráticas um processo binacional paralelo e cada vez mais interligado.

O inverno russo de 2020/2021 anuncia uma primavera dos povos!

Henrique Soares Carneiro

Historiador, professor de História Moderna na USP, coordenador do LEHDA (Laboratório de Estudos Históricos de Drogas e Alimentação).

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