“E ninguém coloca vinho novo em odres velhos“
Mateu 9:17
Recentemente, 19 testemunhos de mulheres, a maioria estudantes ou ex-estudantes, revelaram o assédio sexual por parte de um conhecido jornalista e professor universitário progressista da Argentina. As denunciantes o fizeram através do sindicato de trabalhadores de imprensa, ao qual tanto a maioria delas quanto o acusado estão filiados. Não exigiam a prisão do professor. Elas queriam um pedido de desculpa. O acontecimento reaviva a memória de uma acusação semelhante contra outro conhecido professor português, faz já mais de um ano. Nesse caso, trata-se de um prolífico teórico da corrente decolonial. E as denúncias se referiam não apenas a assédio sexual, senão também a abuso acadêmico cometido contra investigadores de sua equipe, que trabalhavam para pesquisas do mestre como condição para acesso a bolsas e alguma posição dentro da universidade.
Ambos os acontecimentos chamam especialmente a atenção porque os denunciados se projetaram ao longo de sua atividade profissional pelos discursos políticos contra a opressão dos povos. E, no caso do teórico decolonial, pela promoção do ingresso à academia de mulheres e homens dos grupos oprimidos, com o objetivo de levar adiante, nesse âmbito, uma batalha epistemológica. Segundo o dicionário português, epistemologia é a “subárea que se dedica ao estudo do conhecimento humano, buscando defini-lo, determinando suas fontes e implicações”. Isto é, os pensadores da academia denominados decoloniais querem mudar as fontes do conhecimento da realidade.
Só que as universidades são instituições baseadas numa materialidade de relações de poder. Há, nessas instituições, hierarquias que se impõem sobre as ideias, moldam-nas e projetam um cone de sombra sobre as implicações das relações de poder sobre o conhecimento. Podem-se estudar essas relações no exterior da instituição, mas não se podem mencioná-las dentro dela. Longe de seus territórios e submetidos a regras alheias a eles, os indivíduos dos grupos oprimidos que ingressam na academia perdem sua força e, não poucas vezes, seus objetivos, deixando-se dirigir para finalidades que não são as dos seus. Os resultados são aqueles de quem pretende carregar água num cesto de vime. Parece óbvio. Porém, testemunhamos uma e outra vez ondas de jovens que entram na universidade com a intenção de mudá-la com novas ideias, indo por lã e voltando tosquiados. Quer dizer, é ingênuo ignorar o caráter classista, colonial, racista e patriarcal que é matriz das relações nessas instituições. Se não as combatermos em sua prática, a “batalha das ideias” vai perder vigor até se tornar inócua, com uma retórica que encontra um lugar ao sol na instituição sem pôr em perigo suas relações de poder internas nem sua submissão aos grandes interesses externos.
Ao mesmo tempo, ingressar nas instituições e aceitar as regras do jogo termina reproduzindo o abuso. As e os vitimados nos dois casos do parágrafo inicial demoraram para denunciar porque entenderam que a subordinação à hierarquia era condição para sua permanência na carreira, na profissão. E, nesse emaranhado de reciprocidade subalterna com quem abre as portas do que se entende por benefícios, sentem-se envergonhados por ter ido longe demais, por ter respeitado esse código não escrito que faz com que os superiores gozem de impunidade. A violência presente nos dois casos mencionados, e para além das responsabilidades pessoais dos abusadores, não emana apenas de suas características individuais. O poder do qual usufruem descansa, ou melhor, alimenta-se de sociabilidades anteriores inclusive à Revolução Francesa, pelas quais não passaram as universidades com voto censitário (cujo poder de decisão depende da posição dentro da hierarquia – o voto de alguns tem maior peso que o de outros). Provavelmente, os que exercem esse poder discricionário percebem-no como algo natural, ou emanado de suas qualidades pessoais. A maioria deles não renuncia voluntariamente aos privilégios de que gozam.
O acesso aos conhecimentos sistematizados pelos quais procuram os povos e movimentos em luta por meio do ingresso de seus jovens às universidades costuma ter uma contrapartida: o acesso da academia a informações privilegiadas que esses jovens podem oferecer. Assim, as universidades mapeiam os movimentos que lutam contra a ordem. E assim, pela própria mão desses jovens, as estratégias de luta dos povos alcançam “visibilidade”. Seus conhecimentos ancestrais dos povos e sua criatividade podem ser apropriados por meio dos muitos dispositivos que as assim chamadas “parcerias público-privadas” (entre universidades e corporações privadas) utilizam para transferir conhecimentos. Desde a última década do século passado, as universidades públicas vêm se transformando em prestadoras de serviços de inovação para as empresas. Com a redução do fomento para a pesquisa com recursos públicos, as finalidades da atividade científica vêm se restringindo aos interesses e contrapartidas das corporações.
A academia, no entanto, costuma ser tratada como um espaço despojado dessa materialidade dos interesses privados, como um terreno neutro no qual as ideias podem ser debatidas e se impor pela razão. Seria saudável não observar esses abusos de poder nas universidades apenas em sua singularidade, mas sim ver esses acontecimentos como pontos de transparência na superfície opaca das aparências, para não insistir neuroticamente em arruinar o vinho novo da vida dos povos, vertendo-o nos odres velhos das instituições da opressão.