Sabe qual é o problema quando digo que a milícia não é o poder paralelo, mas que ela é o Estado? É que não resta saída. Tudo se afunda num imenso buraco, onde todos nos encontramos. Se o Estado é o crime, como posso esperar do Estado que resolva o crime que ele mesmo comete? Se a polícia está na base do judiciário, se ela opera na capilaridade do sistema de justiça com ações de investigação e repressão, se os policiais são os operadores do crime enquanto milícia, como se pode esperar, dessa mesma polícia, ações que impeçam seus agentes de continuar ganhando com o crime organizado por eles dirigido? Não se trata de desvio individual de conduta, reduzido a alguns indivíduos em seus deslizes, perversões, comprometimentos ideológicos, mentiras, interesses, ganâncias, etc. Essas dimensões existem e continuarão a existir, compondo a sombra da humanidade recolhida em instituições públicas, batalhões, delegacias, presídios, patrulhas, escalas, plantões… Onde há pessoas, haverá as fronteiras do humano, em suas mutações de mal caráter, pusilanimidade, degeneração, decrepitude, ganho político, demagogia e sucesso, no limite do que hoje conhecemos com o capitalismo, nas configurações do Estado, nas suas margens, nas periferias, na explosão das redes sociais em sua pós verdades pavimentadoras de dividendos políticos, econômicos e sociais. Contudo, alcançamos um patamar mais sistêmico. Ouso dizer, num padrão mais complexo.
Inicio falando de grupos crescentes de agentes públicos que, desde a ditadura empresarial-militar de 1964, há 57 anos, a partir do laboratório social dos grupos de extermínio, formaram núcleos de poder, com interações multifacetárias e multivetoriais, nos campos culturais, sociais, econômicos e políticos. Servidores públicos, treinados diariamente, pagos pelos nossos impostos, especialistas em provocar danos à vida alheia, com domínio territorial, financiados pelos donos do capital, inscritos em trajetórias eleitorais vitoriosas. Em cada unidade da federação, montaram seus projetos: jagunços matando indígenas, quilombolas, posseiros, ribeirinhos que se interpunham entre coronéis, latifundiários, donos do agronegócio, mineradoras, hidrelétricas, grandes projetos estatais, empresas legais/ilegais de desmatamento e os seus ganhos obtidos na extração direta de produtos no seio da natureza. Grupos de extermínio que nas favelas, periferias, grotões, áreas onde não se deve ir, palafitas, mangues, cortiços, cabeças de porco dividem os negócios lícitos/ilícitos da venda de droga, de armas, roubo de carga, roubo de carros, roubo em geral, sequestro, golpes, estelionatos e uma lista crescente de velhos e novos ilegalismos com populações nuas, entregues à própria sorte, mortas diariamente e fornecedoras de imagens e narrativas do bandido bom é bandido morto, que retroalimentam num looping infinito, em rádios, jornais, televisões e redes sociais o totalitarismo que faz da vítima o réu, na profecia autocumprida do morto porque devia, do herói que limpa a sociedade, do justiceiro paladino que nos defende, do algoz transmutado em personalidade política.
Com a eleição de Bolsonaro em 2018 e a pandemia do novo coronavírus, em 2020, no entanto, fomos projetados, num quadro mais amplo e profundo, da tanatocracia, isto é, governo da morte. Michel Foucault consagrou-se nos conceitos de genealogia, tecnologia, disciplina, dispositivo e governamentalidade elaborando uma teoria do poder que controla corpos vivos, numa biopolítica esmiuçada em sua obra. Achile Mbembe avança no outro lado dessa biopolítica, analisando a face oculta da necropolítica, ou seja, o deixar viver e o matar como gerenciamento de mortes, notadamente, com relação aos corpos negros. O bolsonarismo, na sua configuração política, com o aval da juristocracia, sustentação militar e condução cultural vitoriosa pelo hackeamento das redes sociais via fake news transformou o Brasil no maior e mais profundo laboratório não do controle de corpos vivos, ou de gerenciamento das mortes, mas de administração da morte em si mesma como objetivo. A morte ganha, assim, a potencialidade necessária no estabelecimento do poder. Vivemos a ultrapassagem decisiva da vida, na direção da morte, sustentada pela vida mesmo, como leitmotiv. A morte em si como finalidade, como algo almejado, desejado, justificado, planejado, aceito, reconhecido, inimputável, irresponsabilizado, deusificada, suportada, cultuada, ovacionada, orada.
Não podemos atribuir ao bolsonarismo a exclusiva autoria quanto à tanatocracia vigente. Ela é fruto de um acúmulo histórico introduzido pelas mãos do colonizador e preservada pelos seus sucessores autóctones, em passagens recorrentes de massacres, extermínios indígenas e negros, dizimação de revoltosos, golpes ditatoriais e sustentação militar de tiranias que povoam o tempo decorrido da nação. Mas a lide bolsonarista permitiu uma superação determinante, na emersão de uma nova escala, que afeta todo o futuro, não só do país como do mundo. A combinação dos interesses em jogo, no projeto bolsonarista, com militares, judiciário, policiais, milicianos, extrema direita, parlamentares fisiológicos, empresariado, capital financeiro, economia neoliberal, movimentos fundamentalistas conservadores católicos e evangélicos, hegemonia cultural em rede sociais e conquista por fake news permitiram alcançar um patamar revolucionário no emprego da morte como plataforma de ação, criando este paredão existencial inelutável, definitivo. Um divisor de águas universal. Sob a sepultura de cada brasileiro morto pela pandemia, no mais visibilizado ocultamento de cadáver da história das nações, há o apagamento das digitais do assassino e sua transformação em fatalidade no rotineiro espezinhamento feito em pronunciamentos de ridicularização das vítimas, banalização dos mortos, tergiversação das soluções, recusa à ciência, simulação de conflitos com grupos apoiadores visando protagonismo político, haja vista os episódios com os ministros e comandantes militares, destruição do sistema público de saúde e não destinação de verbas nem priorização das vacinas. A nação foi catapultada à condição de um placar de contagem de mortos no qual, cada acréscimo no número total puxa a ultrapassagem pela contagem seguinte, na vertigem de sofrimentos, perdas e ilusões insepultas, vívidas, pungentes que movem a comunidade brasileira de zumbis tendo à frente o encantador de ratos e sua flauta. O precipício à frente nos atrai. Consentimos nele como finalidade. Debatemos eleições de 2022 como se não houvesse o agora. Já estamos caindo no penhasco e nem percebemos. A nossa própria morte nos impulsiona. Nos anima. Nos motiva para a morte seguinte. Putrefação é o novo nome da país.
A tanatocracia bolsonarista nos enredou a todos na comunhão do destino fulminante que nos aprisiona juntos no mesmo navio que afunda. A água, porém, atinge a cada parte do navio de forma diferenciada, sem contar, é claro, os donos dos botes salva-vidas, com sua grana e poder, jamais atingidos. Somos o mais novo experimento do gerenciamento de mortes produtor de poderes constituídos por uma sociedade que ao longo do tempo aceitou, conviveu, aplaudiu, elegeu, apoiou, endeusou os assassinos. A canalhocracia assassina enfim no trono. Uma salva de palmas para eles. Eles conseguiram. Ruíram as muralhas da psique moral trincada de um país guiado por sanguinários senhores, sempre incensados pelos servos de plantão, que se veem beneficiados, sem reconhecerem pelo vidro da urna funerária a sua própria face, ardendo na cremação das suas ambições, preconceitos e ignorância.
Seropédica, 6 de abril de 2021.
Brevíssimo, camarada José Cláudio!!!
É A MAIS DURA REALIDADE. Como um soco no estômago vazio..
Espero que desse ” fim de tunel, não fique pedra sobre pedra!”
Aos Canalhas, não desejo a Guilhotina, pode ENTERRÁ-LOS VIVOS!!