
Este texto foi publicado originalmente no site desinformemonos.org no dia 17 de abril, Sábado de Aleluia. Consideramos o conteúdo uma preciosidade e, posteriormente, pedimos à Silvia que o traduzisse para o português.
Segue o texto:
Disse Deus a Moisés: “Serei aquele que serei. Vá e diz aos filhos de Israel”
Êxodo, 3:14
Your faith was Strong but you needed proof. [Tua fé era grande, mas precisavas provas]
Hallelujah, de Leonard Cohen1
[…] também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
6ª Tese sobre a filosofia da história, de Walter Benjamin
Faltando dois dias para o que a tradição cristã chama de “sábado de glória”, ou “de aleluia”, estamos tomados pela incerteza a propósito da possibilidade de um “domingo de páscoa” ou “de ressurreição”.
Nesta semana ouvi o discurso de uma palestina da diáspora denunciando o silêncio diante do genocídio palestino. O discurso, no entanto, terminava com uma frase que hoje soa otimista demais: “a história nunca esquece”.
Hoje há muitos focos de guerra aberta contra os povos. No Congo, no Sudão, no Haiti, no Iêmen, em Myanmar, além do ecocídio mais ou menos lento e sigiloso em que afundamos. O caso palestino é diferente de outros assassinatos em massa que conhecemos: trata-se de um genocídio realizado a plena luz, sem que possamos evitá-lo. O genocídio praticado pelos nazis não era exposto. Quando a BBC de Londres entrou em Auschwitz junto com o Exército Vermelho, decidiu que o que encontrava deveria ser filmado num plano sequência, sem cortes, porque seria difícil que o registro não fosse acusado de ser uma montagem2. O que encontraram não parecia verossímil.
Não é o caso de Palestina. Em parte, é um experimento que não se restringe ao genocídio, porque também propicia o espetáculo do genocídio. Às vezes me pergunto se quando divulgamos as imagens da crueldade israelense, para denunciá-la, não vamos ao encontro da estratégia traçada pelos assassinos, de não apenas “acostumar” o olhar, anestesiar a compaixão ou alimentar o prazer mórbido, perverso, mas também de nos levar à convicção de se tratar de um fato implacável: “fazemos isto, e ninguém pode fazer nada para evitá-lo”. Seria outra maneira de reforçar a crença em que “é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo”3.
Isso vai acompanhado de algo que reconhecemos em Teuchtitlán, a escola de assassinos em Jalisco4, exposto sem qualquer escrúpulo. No documentário ganhador do Oscar Não há outra terra5, uma aldeia da Cisjordânia é destruída derrubando-se uma casa a cada dia, com o argumento de essa área ser um campo de treinamento militar. Porém, não há manobras de combate convencional e os militares em treinamento participam da demolição (a conta-gotas) dessa aldeia. Suspeitamos que o treinamento consiste exatamente nisso: em desalmar os aprendizes, para que realizem essa atividade de destruir a vida das gentes sufocando qualquer sentimento de compaixão.
Quando a companheira diz “a história nunca esquece”, baseia-se na experiência de um ciclo histórico que já está encerrado. Parte da miragem de um “fora” da guerra contra os povos. Não há mais “fora”, porque é uma guerra global. Não há ninguém junto a quem denunciar. O máximo que podemos fazer é intercambiar denúncias entre nós. E, como hoje não há esse “fora”, a companheira apela para o julgamento de um futuro que ainda não existe, de restauração de algum humanismo.
O Israel ao qual se refere a epígrafe retirada do livro do Êxodo, claro, não é o Estado de Israel, Estado colonialista fundado em 1948. Na passagem do Antigo Testamento, o deus dos judeus dirigia-se, através de Moisés, a um povo escravizado, e instava Moisés a conduzir esse povo para atravessar o Mar Vermelho. Propunha-lhe uma façanha de realização improvável, ilógica. Nem sequer assegurava que ele era deus. Na ambiguidade das traduções do hebraico, algumas versões registram que essa voz afirma “sou aquele que sou”; noutras, que hoje nos interpelam, diz “serei aquele que serei”. Diante da realidade implacável da escravidão e da incerteza da existência desse deus “louco”, que propunha uma fuga impossível, Êxodo nos traz a história em que um povo escravizado realiza a proeza de enfrentar a morte certa e vencê-la.
Como se atrever à passagem do mar de sangue que nos anunciam com o espetáculo da Palestina? Conseguiremos repetir a ousadia do pessach da tradição judaica, a travessia do Mar Vermelho, tal como é guardado na tradição judaica? Repetiremos a façanha de Jesus, que venceu a morte, segundo a tradição cristã? Apenas um gesto de liberdade e uma fé descomunal, contra toda expectativa, contra todas as operações ideológicas, podem nos libertar da prisão mental que nos paralisa diante da destruição de tudo que é vivo. E a Palestina é a antecipação: junto com a Palestina querem destruir nossa capacidade de reação. O desafio que enfrentamos é lutar para superar esta civilização de morte na passagem de um verdadeiro ‘domingo de aleluia’.
Referências
- Ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=69YS79yLwis
- Ver o documentário de Alain Resnais “Nuit et brouillard” [“Noite e névoa”], 1956.
- Como escreveu Mark Fisher em Realismo capitalista, citando Fredric Jameson. Ambos se referiam a outra frase, de Margareth Tatcher: “There is no alternative” [Não há alternativa”].
- Ver: https://contrapoder.net/colunas/de-auschwitz-a-teuchtitlan-a-desalma-neoliberal/
- No other land, de Yuval Abraham, Hamdan Ballal, BaselAdra e Rachel Szor, 2025.