Muitas críticas foram cruéis com o filme Trem noturno para Lisboa, do cineasta dinamarquês Bille August, que estreou em 2013. O filme é uma adaptação do livro de Pascal Mercier, pseudônimo do suíço Peter Bieri, e também chegou a receber, no Brasil, algumas críticas negativas. Lendo tais críticas, parece-me que elas ocorreram porque seus autores observaram a história original e sua realização cinematográfica de maneira demasiadamente superficial, sem perceber as diversas camadas de significados que a trama apresenta, sobretudo na forma como lida com a relação entre a vida do indivíduo e os rumos que uma nação pode tomar em sua história. Esse sentido não observado é o tema de que tentarei tratar a seguir.
Neste pequeno ensaio vamos tratar especificamente da adaptação de Trem noturno para Lisboa, que foi para as telas do cinema. Em sua trama, conhecemos o professor de línguas clássicas, Raimund Gregorius (interpretado por Jeremy Irons), que leva uma vida solitária e monótona até o dia que, numa manhã de forte chuva, enquanto se dirigia para o trabalho, salva um jovem que estava prestes a se suicidar pulando de uma ponte. Ela pede então para acompanhá-lo, e ele a leva até a escola. Ambos estão ensopados e as provas corrigidas que Raimund deveria entregar aos alunos estão encharcadas. Sob os olhares curiosos dos estudantes, a jovem suicida se senta em um canto enquanto ele inicia a aula. Mas em poucos minutos ela se levanta e vai embora, deixando para trás seu casaco vermelho. Gregorius, que sempre teve um comportamento burocrático, resolve abandonar a classe e vai em busca dela. Sem encontrá-la, leva consigo o casaco deixado por ela. Finalmente, ele revira os bolsos do casaco, buscando encontrar algum indício de quem seja ela, mas encontra somente um livro em português, intitulado Um ourives das palavras, de um jovem escritor chamado Amadeu do Prado. Na capa interna, há o selo da livraria que o vendeu, e Gregorius vai até lá. O livreiro então diz que se lembrava daquele exemplar, que o havia vendido a uma moça no dia anterior e que ela perguntou por ele, o leu por uma hora, comprou-o e saiu aflita da loja. Ao manusearem o livro, uma passagem de trem cai ao chão – seu destino era a capital portuguesa e a partida seria em apenas 15 minutos. Em um rompante, o professor Gregorius corre até a estação de trens e embarca, iniciando assim esta intrigante história.
Em Portugal, Gregorius descobre que o autor do livro foi um jovem idealista, rebelde, oriundo da pequena burguesia lisboeta, e que também integrou a resistência contra a ditadura fascista salazarista que assolou o país entre 1933 e 1974, quando a gloriosa e incompleta Revolução dos Cravos lhe pôs termo. E aqui a história começa a se desenrolar em duas temporalidades que se entrelaçam. Numa, o tempo presente, Gregorius embarca numa aventura de descobertas: fascinado pelo livro do jovem Amadeu do Prado, o professor descobre os horrores do salazarismo, perpetrados principalmente por sua polícia política, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Descobre como os horrores do fascismo português ainda marcam seu povo tantas décadas depois, em histórias que não são mais contadas à luz do dia, mas que continuam a pulsar pelos becos escuros, pelas memórias silenciadas e pelas conversas de canto de boca. Como um detetive novato, Gregorius vai descobrindo a história de Amadeu Prado e da ditadura salazarista, juntando diversos pedaços de tramas e episódios que se descortinam à sua frente. Mas suas descobertas também são pessoas: ele descobre ser alguém para além do professor burocrático e da pessoa chata e monótona que imaginava ser. E descobre, ainda, a paixão, ao conhecer a oftalmologista que o atende quando, em um pequeno acidente, seus óculos se quebram.
A outra temporalidade do filme ocorre com a narrativa da história do jovem escritor Amadeu Prado. Conhecemos sua vida, que foi breve e intensa, bem como as contradições e confusões vividas pela resistência política ao salazarismo. Conectando ambas as temporalidades, vemos como as escolhas feitas pelos jovens resistentes configuraram os senhores que se tornaram.
Atualmente, em nosso país, debate-se muito pouco o fascismo salazarista, e isso é de lastimar, pois há muito o que aprender com ele sobre nossa própria história. Geralmente, centramo-nos nas experiências da Alemanha e da Itália para tratar do fascismo, mas outras experiências históricas ocorreram em sua primeira emergência, e uma delas foi aquela vivida em Portugal. Ela se inicia com um golpe militar, ocorrido em maio de 1926, e se consolida com a nova constituição promulgada em 1933, que deu início ao Estado Novo português. O golpe foi perpetrado pelas forças reacionárias do país para pôr fim à convulsão social e política na qual a nação estava mergulhada. Em 1910, o país havia proclamado sua república, pondo fim a uma milenar história monárquica. As mudanças daí decorrentes desencadearam fortes disputas políticas, que se tornaram ainda mais acirradas com todas as tensões geopolíticas vividas pelo mundo naquelas primeiras décadas do século 20, como a consolidação do Imperialismo, a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e outras mais. Assim, no calor das disputas internas e em um cenário global também muito aquecido, ocorreram sublevações e revoltas que chegaram a ações de violência e assassinatos, até o golpe militar em 1926. Depois de consolidado o golpe, seus dirigentes convidam para o Ministério das Finanças o professor da Universidade de Coimbra, António Oliveira Salazar. De Ministro, Salazar chegou à chefia de governo em 1933, e dela só saiu em 1968, quando um acidente doméstico mal cuidado desencadeou um acidente vascular no cérebro, deixando-o definitivamente incapacitado. Em seu lugar, é nomeado Marcello Caetano, que dá continuidade ao Estado Novo salazarista (daí ser tratado como “salazarismo” todo o período ditatorial, ainda que Salazar tenha saído de cena sete anos antes da Revolução dos Cravos).
Certamente, a PIDE foi a figura mais notória do fascismo salazarista. Fruto da reorganização das outras instituições policiais anteriores ao golpe de 1926, foi reorganizada em 1969, quando passou a ser chamada de Direção Geral de Segurança (DGS). Em sua formação, recebeu consultoria tanto da GESTAPO quanto dos órgãos de repressão do fascismo italiano. A PIDE, e posteriormente o DGS, cumpriam um figurino comum às polícias políticas, como o DOPS e o DOI-Codi brasileiros, atuando com extrema brutalidade e arbitrariedade contra qualquer suspeito de ações contra a ordem e a segurança pública. Na verdade, uma máquina burocrática e operacional de repressão a qualquer custo, cuja principal ferramenta era a tortura em seus níveis mais agressivos.
Toda essa história vem à tona nos muitos silêncios e segredos investigados pelo professor Gregorius. E emergem trazendo para a tela personagens humanizados, complexos: jovens cheios de idealismo, coragem e hormônios; idosos presos a lembranças, arrependimentos e esperanças; pessoas que se descobrem, que descobrem o amor e paixão onde não mais acreditavam ser possível. Trata-se de um conjunto de personagens estrangeiros e locais que se sentem deslocados nas distintas temporalidades trazidas à tela. Em comum a todos eles, a certeza de que, entre o passado que pesa e o futuro que não se concretiza, espreme-se o presente, o mais efêmero dos tempos, mas o único onde as escolhas podem ser feitas.
Trem noturno para Lisboa é um filme sutilmente complexo, que tem a habilidade de expor com delicadeza todo o peso do legado deixado pelo fascismo quando ele não é de todo vencido. O salazarismo foi vencido pela Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974. Talvez tenha sido, depois da queda do Muro de Berlim, o evento mais importante na Europa ocidental durante a segunda metade do século 20. Nela, jovens capitães lideraram uma sublevação que recebeu maciço apoio popular. A despeito da pouca e rapidamente vencida resistência por parte da PIDE/DGS, o processo foi pacífico e festivo. Mas se tratava, sobretudo, de uma revolução socialista e anticolonial, e, não obstante as colônias portuguesas terem sido finalmente libertadas, as forças reformistas acabaram se impondo nas disputas internas abertas com a formação do novo Estado português. O socialismo não se realizou em Portugal e o país acabou se aproximando das grandes nações capitalistas e da OTAN.
Clara Zetkin, destacada comunista alemã, escreveu um importante documento para a Internacional Comunista, em 1923, ocasião em que debatia o fascismo que tomava corpo na Itália. Em seu texto, ela foi mais que certeira ao afirmar que “não basta vencer o fascismo militarmente, é preciso vencê-lo também politicamente e ideologicamente”. O fascismo não apenas modela um Estado, mas também aciona e atualiza forças conservadoras profundas (concentradas em velhas tradições, crenças, culturas), e estas não são destruídas apenas pela saída de cena dos ditadores fascistas. Se não houver um profundo trabalho de desmobilização dessas forças, dessa subjetividade fascista, ela apenas fica submersa, esperando por uma nova oportunidade para emergir. É disso que fala o filme: do que fica do fascismo quando ele não é vencido por completo. E essa foi a lição que o professor suíço Raimund Gregorius aprendeu quando embarcou em um trem rumo a Lisboa.
O filme Trem noturno para Lisboa está disponível na plataforma YouTube.