Trump e Bolsonaro na ONU: a extrema-direita muito além da estupidez

Os discursos de Trump e Bolsonaro nas Nações Unidas por mais que, à primeira vista, pareçam a mais pura estupidez, devem ser analisados de forma um pouco mais cuidadosa. Aquela tribuna já foi palco de inúmeros discursos memoráveis como o conhecido brado de Patria o Muerte! de Che Guevara em 1964, Mandela em 1990 com seu enough is enough! dando basta ao apartheid na África do Sul, o inesquecível sarcasmo de Chávezem 2006que um dia após o discurso de Bush disse que a tribuna ainda fedia a enxofre pela presença do diabo, ou Mujica em 2013 anunciando a vida como um milagre que nos compete cuidar, que ela vale mais que o lucro e que a espécie humana é o nosso nosotros. Daquela tribuna, líderes mundiais das mais distintas tradições políticas professaram suas visões de mundo, seus êxitos históricos e suas intenções políticas o que — ainda que distorcidamente — lhe confere a importância que tem para o mundo.

Um dia antes, na Cúpula Climática (que, diga-se de passagem, nem Trump nem Bolsonaro quiseram participar), a menina Greta Thunberg fez jus à tradição daquele espaço. Após atravessar um oceano, em tom de cobrança aos líderes mundiais presentes, disse que “nós estamos vivenciando o começo de uma extinção em massa. E tudo o que vocês fazem é falar de dinheiro e de contos de fadas sobre um crescimento econômico eterno. Como vocês se atrevem?” Como também é tradicional, suas boas ideias não conseguiram derrubar as paredes dos ouvidos dos chefes de Estado que lá estavam. No entanto, como ela mesma afirmou, o mundo está despertando e a mudança está chegando, quer estes chefes queiram ou não.

Esta verdade enunciada por Greta talvez seja o grande pesadelo de figuras como Bolsonaro e Trump. O fato de que, apesar das mentiras e manipulações, as condições reais da crise — econômica, social e climática — empurram sistematicamente o mundo a despertar, especialmente sua parcela mais jovem. Temos visto nas ruas do planeta o surgimento de novos movimentos democrático-revolucionários, o feminismo, a luta da comunidade LGBTI+, os movimentos antirracistas, a luta dos imigrantes contra a xenofobia, dos jovens em defesa do meio ambiente, o novo socialismo estadunidense, entre outros. Estes são a verdadeira ameaça contra a qual se insurge a nova (velha) extrema-direita.

Por isso mesmo, não devemos apreender o conteúdo dos discursos dos dois expoentes da extrema-direita mais atrasada apenas como estupidez, apesar de ambos fazerem jus ao adjetivo. Significam muito mais que disso. São, na verdade, um anúncio programático frente à gravidade da crise pela qual passa o capitalismo financeirizado, são o anúncio de uma solução autoritária e fundamentalista para ela. Tanto Bolsonaro como Trump fizeram questão de expressar suas visões de mundo e suas reais intenções. Interpretar isso como “burrice” simplesmente é subestimar os inimigos e este é o pior erro que podem cometer os socialistas.

O discurso do antipresidente do Brasil foi cuidadosamente preparado. Segundo reportagem do Estadão de 13 de setembro de 2019, fora da agenda oficial, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo junto com Eduardo Bolsonaro, se reuniu nos Estados Unidos com o ex-estrategista de Donald Trump e agitador da onda de direita, Steve Bannon no dia 11 de setembro (1). Na pauta do jantar secreto estava justamente o discurso do presidente do Brasil na ONU. Pensar que Bannon é um estúpido não condiz com a realidade de um homem que preparou toda a operação de fake news que entre outras coisas ajudou a eleger Trump, Orbán e o próprio Bolsonaro.

Os princípios enunciados nos discursos são absolutamente coerentes com as ideias propagadas pelo astrólogo autodidata Olavo de Carvalho e são a espinha dorsal do artigo escrito por Ernesto Araújo que lhe rendeu o cargo de chanceler. No artigo, publicado originalmente nos Cadernos de Política Exterior do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), intitulado “Trump e o Ocidente” (2), ele sustenta que “o Ocidente — concebido como uma comunidade de nações (e não como um amálgama indistinto sem fronteiras) — está mortalmente ameaçado desde o interior, e somente sobreviverá se recuperar o seu espírito”. Em oposição a um suposto “marxismo cultural globalista”, Araújo defende um nacionalismo de inspiração greco-romana “não para preservar as rotas comerciais ou algo assim, mas para defender a liberdade, a família, a sua herança cultural e os seus deuses. Unidos por alguma coisa que decidem chamar de pátria”. Qualquer semelhança com a narrativa de Hitler certamente não é mera coincidência. Os grandes inimigos desta estratégia seriam aqueles que querem “querem um mundo de pessoas ‘de gênero fluido’ e cosmopolitas sem pátria, negando o fato biológico do nascimento de cada pessoa em determinado gênero e em determinada comunidade histórica (nação)”.

Tal visão foi expressa ipsis litteris nos discursos de Trump e Bolsonaro. Desde o insulto às comunidades indígenas que reforça esta perspectiva “ocidentalista” ou a ideia de que a Amazônia “segue intocada” e não é um patrimônio da humanidade, que as ONGs atacavam a soberania brasileira e que o cacique Raoni seria uma “peça de manobra” (sic) de interesses estrangeiros são afirmações de um nacionalismo torpe de Bolsonaro. Trump, por sua vez, foi taxativo: “O globalismo exerceu uma influência religiosa sobre os líderes do passado, fazendo com que eles ignorassem seus próprios interesses nacionais. Mas, no que diz respeito aos EUA, esses dias acabaram”. Bolsonaro também havia feito um discurso nacionalista agressivo repleto de denúncias ao “globalismo.

Chama atenção, entretanto, o ataque proferido por ambos ao socialismo. Para além dos ataques de baixo nível a Cuba e Venezuela (que envergonharam os presentes), Trump e Bolsonaro dizendo que seus países nunca serão socialistas, no fundo, revelam uma latência e um temor. É claro que há um nexo de estupidez visível entre os discursos de Bolsonaro e Trump na ONU, mas também há uma razão comum: eles sabem que o capitalismo passa por uma crise tão profunda que precisam atacar o socialismo, este sim, a única saída para tamanha crise. Acuados pela perda de apoio eleitoral discursam para coesionar sua base social que se alimenta das mesmas três partes e três fontes que seus líderes. O libertarianismo econômico e sua receita de arrocho contra o povo em nome da “liberdade” econômica, o falso moralismo religioso com traços fundamentalistas e uma atualização desqualificada do anticomunismo, encontrando no bolivarianismo seu principal alvo. Como bem definiu Vladimir Safatle este discurso noeconservador é um manejo do medo e da esperança que apresenta o que possa ser transformador como ameaçador.

Trump chegou a usar as palavras do Manifesto Comunista, dizendo que está enfrentando o “espectro do comunismo”. Ainda que um pouco delirante, como é sua característica marcante, trata-se daquilo que Florestan Fernandes chamava de contrarrevolução preventiva, que segundo ele seria a marca da atuação das elites brasileiras em nossa formação sócio-econômica. Mas revela que o tema agora é mundial, pois a crise também é. Vestidos com as roupas esfarrapadas do atraso e buscando garantir as margens de lucro dos burgueses que os empurram ao abismo, se pode notar que até mesmo os estúpidos, ao menos no que temem, às vezes têm razão. E o mais importante: eles não são menos perigosos por serem estúpidos.

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,chanceler-discute-com-bannon-discurso-de-bolsonaro-na-onu,70003008192

http://funag.gov.br/loja/download/CADERNOS-DO-IPRI-N-6.pdf

Bernardo Corrêa

Atual presidente do PSOL RS, sociólogo e doutorando na UNB

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