Um esporte de alto rendimento…

foto: Franck Fife/ AFP

Temido no mundo antigo1 e na assim chamada “igreja primitiva”2 por seu potencial dissolutivo, o dinheiro foi alçado, no capitalismo, à uma “finalidade em si”, para usar uma linguagem do século XIX. Marx, que certamente foi quem mais escreveu sobre dinheiro sem o ter em sua posse, disse certa vez que: “o impulso por entesourar é por natureza sem limite”, e cria um mundo em que “tudo é vendável e comprável”3. E no assim chamado “mundo do Futebol” tudo é sacrificado aos pés de Mamon, os clubes, as tradições, os jogadores, tratados pelos dirigentes como “ativos”, tudo está à venda, e por muito, muito dinheiro4.

Os valores das transferências a cada “janela” da FIFA sempre chocam por suas cifras inacreditáveis, um verdadeiro escárnio com os pobres, a maioria esmagadora dos torcedores do esporte mais popular do mundo. Os salários dos jogadores, no mais das vezes, chamam mais atenção do que estas cifras monumentais operadas por estas verdadeiras instituições financeiras, em que foram transformados os Clubes de futebol. Caso emblemático foi o protesto dos trabalhadores da Fiat/Chrysler contra a ida de Cristiano Ronaldo, hoje no Manchester United, para a Juventus em 20185. Enquanto os trabalhadores sofriam os “ajustes” da crise econômica e eram convidados a “cortarem na própria carne”, como gostam de falar os burocratas, a equipe ligada aos acionistas da empresa gastava o que não tinha com um jogador, craque evidentemente, que não podiam pagar a não ser “cortando na carne” alheia. A versão tropical deste descalabro não podia faltar. A MRV, do simpaticíssimo Rubens Menin, que patrocina o multimilionário Atlético Mineiro, enfrenta greve de operários que não tem nem sequer papel higiênico6, isso para não falar do “papel” por excelência… 

Alguém pode perguntar: “mas… dinheiro ganha Campeonato?” Essa sempre foi uma questão complexa. Pois sempre vemos, e na maioria dos casos torcemos, quando um modesto time joga contra uma “potência” financeiro-esportiva, e não são raras as vezes em que o Davi vence Golias. Quem não se lembra de ver o modesto Santo André vencer o Flamengo na Final da Copa do Brasil em 2010? Olhando assim poderia parecer que as diferenças financeiras não seriam determinantes, mas o caso é mais complexo do que o dito popular: “futebol é onze contra onze”. Os clubes multimilionários não detêm apenas os “onze”, detém estrutura de treinamento, médicos e equipamentos de ponta, um exército de funcionários anônimos que “garimpam” jovens promessas para a “base”, e por fim, decidem a forma dos campeonatos. Por exemplo, a forma de Pontos Corridos premia o time mais rico, com mais estrutura, já a forma com “mata-mata” é niveladora, como o caso Santo André nos ensina. E foram os clubes mais ricos que pressionaram pela forma dos pontos corridos, com a qual vamos aos poucos nos acostumando.

O fato é que a dinâmica atual do esporte de alto rendimento (em amplos sentidos) leva os clubes a endividamentos inéditos7, com prestações de contas pra lá de duvidosas e isenções fiscais inacreditáveis. Tudo isso somado: o dinheiro se assenhorou do esporte a um ponto de (talvez) não retorno. Seja porque os milionários começam a dar as cartas em clubes, seja porque os próprios torcedores aderem e passam a torcer pelos cartolas, fenômeno novo no Brasil. O caso PSG é um paradigma. O time da capital francesa, de propriedade do Emir do Qatar Tamin bin Hamad Al Thani, usa o prestígio do futebol para melhorar o nada prestigiado regime do Emirado. Trata-se de um time estatal do Emirado no centro do futebol europeu. Sede da próxima Copa do Mundo, o Qatar é denunciado por trabalho análogo a escravidão e toda modalidade de ataque aos direitos humanos que se possa imaginar, com especial sofrimento para mulheres e minorias étnicas, mas procura lavar sua imagem com a talento de Messi, Di Maria, Mbape e claro, do eterno “menino Ney”.

O chamado “sportswashing” não é invenção dos emirados árabes, ao contrário, começa no centro do futebol europeu, para depois ser sequestrado por Estados. Sempre chamou atenção o fato de que economias e Estados quebrados dessem lugar a Times super caros. O caso da Espanha na era Messi e CR7 é claro. A Espanha aos frangalhos assistia enlouquecida ao desfile de times “galácticos”. Não tardou para que escândalos levassem parte das diretorias para atrás das grades. Os próprios jogadores foram surpreendidos com a revelação de sonegação e outros crimes.

Em todo caso, reina entre os torcedores ainda a velha ilusão do “amor à camisa”, mas o que vemos é que infelizmente pode-se escrever (sem exagero) na entrada de cada centro de treinamento: “não se permite a entrada a não ser a negócio”. Mas podemos voltar à questão: Dinheiro ganha campeonato? É claro que é sempre possível que um pequeno clube como o Leicester, por suas próprias soluções, seja campeão entre os times mais ricos do mundo, como foi o caso na Premier League em 2016, como é o caso do Fortaleza do excelente treinador Juan Pablo Vojvoda, atualmente no G4 do Brasileirão 2021 e cada torcedor tem na memória uma façanha de seu time contra algum adversário em situação financeira melhor, o que apenas confirma que os clubes que tem maior estrutura financeira tendem a serem campeões, porque o futebol é administrado como um negócio, e isso parece difícil de mudar, ao menos no curto prazo. 

Um rousseauniano poderia dizer: “o futebol acabou no exato momento em que a FIFA colocou uma cerca de arame farpado em volta do futebol e declarou: é meu!”. E não há o que objetar. Essas “entidades”, tais como a CBF, Conmembol e demais federações apenas existem para lucrar com o seu e o meu time, com transações de jogadores, com seleções (que jamais jogaram tanto) e campeonatos atrelados a ditaduras as mais sanguinárias, como nos dão exemplo no passado a Copa do mundo da Argentina em 1978 e a próxima Copa do mundo no Qatar. Pouco importando se em meio à uma ditadura, “o show não pode parar”, porque o Show, na verdade, é de lucro. A nova investida da FIFA contra os clubes é a ideia de que a Copa do Mundo seja a cada 2 anos e não mais de 4 em quatro anos. Não é à toa que os clubes mais ricos esperneiem. Seu negócio tem um atravessador muito voraz, as “Federações”, que pretendem dominar ainda mais o futebol mundial9

O fato é que quando a dinâmica capitalista subordina um “ente” qualquer, pular essa cerca invisível é uma tarefa longa e acidentada, que exigiria a unidade de torcedores, clubes e entidades como nunca se viu por estas terras. Exigiria muito mais do que “Bom Senso FC”, exigiria uma Revolução no futebol nacional (a CBF fazendo as vezes de Bastilha e tudo!), longe de nosso horizonte atual. Ou alguém imagina que os dirigentes, ou melhor dizendo, os Capitalistas do Esporte, conduziriam o Futebol para fora das “cercas” da CBF, senão para dentro de um abatedouro ainda mais brutal? O fato é que hoje a queda da CBF reconduziu o futebol brasileiro para uma “guerra de todos contra todos”, ainda sem data para acabar. A crise de representatividade da Confederação não é passageira, o que dá mostras ao desprezo crescente da população brasileira com a “Seleção Amarelinho” e sua emblemática camisa. Resta aos torcedores não embarcarem no clima de guerra estabelecido, suspeitar de soluções mágicas sem o necessário debate amplo e que ouça todas as vozes do futebol nacional e não apenas os milionários clubes da Série A. Porque a maioria dos jogadores de futebol no Brasil recebe salário mínimo, quando recebem10. Se houver uma liga, ela tem que ser de todos os clubes, incluindo o Futebol Feminino e os clubes do Norte e Nordeste, que são sempre escanteados por essas cúpulas. Mas ainda estamos longe de uma solução, e não está descartado que a própria CBF possa sair da crise atual. De nosso lado, a única certeza é a de que devemos exigir: “paz entre as torcidas, guerra aos patrões!” (inclusive os que vestem as cores do seu time).

Referências

  1. “Nada suscitou nos homens tantas ignomínias/ como o ouro. É capaz de arruinar cidades/ De expulsar os homens de seus lares/ Seduz e deturpa o espírito nobre/ Dos justos, levando-os a ações abomináveis/ Ensina aos mortais os caminhos da astúcia e da perfídia/ E os induz a cada obra amaldiçoada pelos deuses”. Sófocles, Antígona.
  2. Veja o caso de Simão em Atos dos Apóstolos, Capítulo 8:20 “pereça teu dinheiro e tu com ele”.
  3. “Coisas que, em si e para si, não são mercadoria, como por exemplo consciência, honra, etc. podem ser postas à venda por dinheiro pelos seus possuidores e assim receber, por meio de seu preço, a forma mercadoria”. O capital, vol. I, pag. 92 da edição da Abril Cultural.
  4. Mbappé vale € 265 milhões e lidera ranking de jogadores mais caros do mundo, ver em: https://forbes.com.br/negocios/2020/01/mbappe-vale-e-265-milhoes-e-lidera-ranking-de-jogadores-mais-caros-do-mundo/
  5. Trabalhadores da FCA protestam contra ida de CR7 a Juventus, ver em: https://ansabrasil.com.br/brasil/noticias/esporte/futebol/2018/07/11/trabalhadores-da-fca-protestam-contra-ida-de-cr7-a-juventus_41916482-ee76-42e7-bade-e0745722f580.html
  6. MRV financia contratação de Diego Costa, mas nega papel higiênico aos trabalhadores, ver em: https://sindipetrosp.org.br/mrv-financia-contratacao-de-diego-costa-mas-nega-papel-higienico-aos-trabalhadores/
  7. As finanças do futebol brasileiro chegaram no limite, ver em: https://universidadedofutebol.com.br/2021/05/06/as-financas-do-futebol-brasileiro-chegaram-no-limite/
  8. [Copa do Mundo a cada 2 anos? Proposta da FIFA gera polêmica, ver em: https://www.dci.com.br/esporte/futebol/copa-do-mundo-a-cada-2-anos-proposta-da-fifa-gera-polemica/176460//efn_note]. Como num filme exclusivamente de vilões, os torcedores só podem assistir, alheios, a essa “briga de foice no escuro” pelos lucros milionários que sua paixão proporciona. No caso brasileiro, a criação de um Liga, que pudesse fazer frente à CBF e Federações Estaduais, todas invariavelmente corruptas, é uma esperança tanto quanto uma ilusão. Seria esta a hora oportuna, principalmente devido ao vácuo de poder na CBF, com seu ex-presidente afastado por assédio e abuso de poder, com alguns de seus antecessores presos ou banidos do esporte. Seria… se isso não esbarrasse justamente nos negócios.8Liga dos clubes do Brasileirão esfria por divergências entre presidentes, ver em: https://www.goal.com/br/not%C3%ADcias/liga-dos-clubes-do-brasileirao-esfria-por-divergencias-entre/kct8ypm3tsgl1n49kupa5ngvv
  9. Em relatório, CBF aponta que 96% dos atletas ganham menos de R$ 5 mil, ver em: http://ge.globo.com/futebol/noticia/2016/02/em-relatorio-cbf-aponta-que-96-dos-atletas-ganham-menos-de-r-5-mil.html

Hélio Ázara de Oliveira

Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Filosofia, lateral do Ponta Firme FC (time de futebol amador de João Pessoa-PB).

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