Um Novo Velho Tempo

Enquanto Luiz Inácio Lula da Silva caminhava sobre o tapete vermelho, em visita à China, ao lado de Xi Jinping, ao som de Um Novo Tempo, música de Ivan Lins e Vitor Martins, Ana Paula Jesus Alves se encontrava sentada no Hospital Dom Pedro II, gritando de dor, aguardando atendimento. À medida que o novo tempo era celebrado com acordos que podem render 50 bilhões de reais em investimentos chineses no Brasil, os gritos de Ana iam diminuindo, em razão do cansaço diante da ausência de atenção. Aguardando das 15 às 21 horas, suas filhas estranharam sua imobilidade, que, inicialmente, aparentava que ela estaria dormindo. Ao chamarem, desesperadas, os médicos, receberam a confirmação de que ela havia morrido, ali, sentada na cadeira, sem qualquer ajuda. O novo tempo, para Ana, encerrou-se assim, aos 53 anos.

Ana morava no Km 32, um bairro de Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro. Havia criado sozinha sete filhos, numa vida marcada pelas dificuldades e por um esforço sem fim de trabalho e cuidados, comum aos milhões de pobres do país. Sua rotina foi, entretanto, alterada quando há 10 anos viu um de seus filhos ser assassinado, dentro de casa, pedindo ajuda aos familiares.  Seu corpo foi levado pela milícia, sem jamais ter sido devolvido. De lá para cá, seu quadro de saúde foi piorando. À severa depressão somaram-se a diabetes e a hipertensão. Passou a ter dificuldades de andar. Cheguei a vê-la poucas vezes. Após a morte do segundo filho, ano passado, em decorrência de doenças associadas a ter, igualmente, presenciado a morte do irmão, Ana passou a ficar longos períodos sem querer ver ou falar com ninguém.

No período do governo bolsonarista as milícias expandiram-se velozmente por toda a Baixada. Seu domínio consolidou-se de tal forma que praticamente todas as esferas da vida social são por elas regidas. No Km 32, até 2007, elas não existiam. A guerra que as introduziu foi um projeto liderado por Jerônimo Guimarães, o Jerominho, no início da formação da Liga da Justiça, a maior milícia do Rio de Janeiro. Vereador pela cidade do Rio, compunha a base de sustentação do governador Sérgio Cabral, que, por sua vez, pelo então PMDB, era parte da aliança política com o PT que dava sustentação ao governo do presidente Lula. Enquanto isso, na Chacina do Pan, em 2007, sob a justificativa de guerra às drogas, uma operação policial com 1.500 homens assassinou 19 pessoas no Complexo do Alemão, com vários indícios de execução sumária, dada a quantidade de tiros localizada na cabeça e nas costas dos corpos. A alguns quilômetros dali a Liga da Justiça anexava vários territórios, deixando um rastro de centenas de mortos.  

O Km 32 não possui um cemitério com valas comuns, diferentemente do bairro de Perus, na cidade de São Paulo, onde mais de mil corpos foram encontrados sem identificação, fruto do grande legado político da ditadura militar de 1964. Ao invés disso, convive com uma bacia hidrográfica formada pelos rios Guandu, Guandu-Mirim, Capenga e Do Campinho, no que seria o maior cemitério clandestino da América Latina. Centenas de corpos, anualmente, são lançados nessas águas. Os relatos da população contam da grande quantidade de ossos humanos que surgem nas margens desses rios quando máquinas escavam seu leito para limpá-los e alargá-los. Da lama formada pelas águas do rio e dos barrancos percebe-se o amalgama geopolítico que transformou o Km 32 na peça-chave para o domínio dos grupos armados na região. Vereadores e prefeitos da Baixada faturam alto com as votações auferidas pelo controle político obtido através dos desaparecimentos forçados, que rendem até mesmo cargos no primeiro escalão do atual governo. O corpo do filho de Ana é apenas um, entre milhares, cujos ossos compõem esse amalgama de assassinatos, corpos desaparecidos, atuação miliciana, parceria da estrutura policial e domínio político eleitoral.

Na letra da música de Ivan Lins e Vitor Martins fala-se que “apesar dos perigos, da força mais bruta e da noite que assusta, estamos na luta, pra sobreviver”. Para as mães do Km 32 que lutam por justiça e esperança, tentando encontrar os corpos de seus filhos, a morte de Ana indica que elas estão marcadas não para sobreviver, mas para morrer, dentro de um sistema de saúde que não ouvirá seus gritos, deixando-as perecer sentadas, em total desamparo. O tapete vermelho estendido sobre a lama adquire uma coloração marrom e o velho tempo penetra pelo tecido do novo, revelando a verdadeira cor do futuro que se anuncia.

“Para que nossa esperança seja mais que vingança, seja sempre um caminho que se deixa de herança”, é preciso interromper a herança que segue, de uma multidão de assassinatos e ocultação, de terror e abandono que atingem mortos e vivos na formação de uma estrutura de poder, de Lula a Lula, passando por Bolsonaro. Ou se enfrentam decididamente esses grupos ou, daqui a quatro anos, assistiremos não aos que se aproximam para obter vantagens, mas aos próprios donos da morte e do desaparecimento assumindo novamente a estrutura central do poder em mais uma rodada escancarada e sem ocultações do velho tempo que nunca deixou as guaxas, barrancos, rios e demais paisagens deste imenso cemitério clandestino chamado Brasil. Nesse sentido, podemos ver o novo e o velho juntos, indistintos, num pântano em que não sabemos os limites nem de um nem de outro, e nos conformamos à cadeira em que estamos sentados aguardando por um atendimento, no qual ocultar ou revelar corpos dá no mesmo. A invisibilidade de filhos e mães, mortos ou em vias de morrer, ajudará os 50 bilhões de reais de investimentos chineses a chegar exatamente a quem não deveriam chegar, os donos deste país, que cantarão em uníssono a esperança de um novo tempo.

José Cláudio Souza Alves

Professor Universitário, doutor em Sociologia. Autor do livro: "Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense"

2 comentários sobre “Um Novo Velho Tempo

  • 20 de abril de 2023 at 12:44 am
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    Corajoso e forte. Para quem gosta de MATUTAR.

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  • 6 de maio de 2023 at 4:23 am
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    Lendo o texto, é possível visualizar os corpos descartados, e a dores que cercam as famílias sobreviventes…

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