Uma centelha de esperança…

Diferente do que pensa o glorioso Caio Ribeiro, futebol e política estão a tal ponto misturados que compartilham, entre tantas coisas, uma linguagem metafórica comum. “Hegemonia”, “tapetão” e “cartolagem”, são palavras ambidestras, jogam no futebol, jogam na política, e tem muito mais aí… Alguém que quisesse falar sobre a conjuntura recente bem que poderia se expressar com um jargão futebolístico, e poderia, por exemplo, dizer que “é o momento dos caras”, que “não estamos vendo a cor da bola”, pior de tudo, poderia num acesso de pessimismo dizer “não estamos nem sequer no aquecimento”. Isso mudou no último domingo, e pelos pés de um “herói improvável”, as torcidas organizadas.

A história das torcidas organizadas coincide com o surgimento do “profissionalismo” no futebol brasileiro, nos anos 40 do século XX, com a construção dos grandes estádios de Futebol e com a massificação do esporte. As primeiras torcidas são praticamente “oficiais” e únicas, isto é, não havia muitas torcidas de um mesmo clube e as mesmas tinham um caráter de contenção da massa, com seu “chefes” instituídos e autorizados pelos clubes. Era o tempo das “Charangas” como a do Jaime, que ficou imortalizada no Samba Rubro-negro[1] de Wilson Batista e que teria uma versão definitiva na voz de João Nogueira, ou torcidas uniformizadas, como a do São Paulo. Eram outros tempos…

A segunda onda é aquela das novas torcidas, a partir dos anos 1960, e particularmente depois do Golpe de 1964. Foi a época da ruptura com a institucionalidade e o surgimento das “Torcidas Jovens”, com esse ou outro nome, significaram uma nova página nessa história. Seja como dissidências das torcidas “oficiais” e em parte envelhecidas, seja como o caso emblemático da Gaviões da Fiel (1969), uma torcida que nasce contra dirigentes autoritários e contra um regime ditatorial.  Em 1969 surgem também as “Jovens” do Santos e da Ponte Preta, entre outras. O clima era outro, de contestação, de crítica, ao time, aos dirigentes, e em alguns casos, contra o regime.

O fenômeno das torcidas é multifacetado e complexo, e não nos propomos aqui analisá-lo com o cuidado que a matéria exige, e voltaremos ao assunto nessa coluna. Muito antes de as torcidas serem marcadas pela violência (anos 1980, 1990), elas sempre tiveram uma dimensão de sociabilidade e uma proximidade com o Samba, da qual as “Escolas torcidas” de São Paulo são a mais emblemática amostra. Muitas dessas torcidas foram lideradas por mulheres, como a vascaína Dulce Rosalina, que dirigiu a Torcida Organizada do Vasco (1956), e depois, por divergências, criou a Renovascão. Apesar da presença constate de cantos homofóbicos nas arquibancadas, houve em 1977 uma torcida exclusivamente Gay do Grêmio, em plena ditadura militar, a Coligay[2]. E há hoje uma tremenda renovação das arquibancadas que poderemos analisar em outra oportunidade[3] Gostaríamos apenas ressaltar que as torcidas foram nas décadas de 1990 e início do século XXI estigmatizadas e criminalizadas, em alguns casos, proibidas. Como foram proibidas, na maioria dos estádios, bandeiras, baterias, tudo o que lembre a festa popular. Sempre com o mesmo argumento: “é para a sua proteção!” Tenha você a avaliação que tiver das torcidas organizadas é inegável que o que elas têm é disposição. E é isso que nos traz de volta ao assunto inicial…

As manifestações antifascistas das torcidas, que vêm ganhando força a cada final de semana, não são ainda uma virada de jogo. No sul do Brasil, tricolores e colorados estão juntos contra o bolsonarismo, o mesmo quadro com tendência a se repetir em Minas, Rio e Curitiba, mas sem dúvida, o ato do último domingo em  São Paulo dos torcedores dos assim chamados 4 grandes juntos foi (para voltar à metáfora futebolística) como ver o craque do time – depois de um longo período fora de campo – voltar ao aquecimento. Quem frequenta estádios de futebol conhece a cena, é um grito similar ao gol, mas é ainda só um grito de esperança, como quem diz sem dizer: “ele voltou”, pouco importa que seja só o aquecimento. Pois é assim que estávamos até bem pouco tempo, fora de combate, no departamento médico… Domingo ainda não reestreiamos, mas já demos aquele pique que levanta a geral e dá para a massa um incontrolável sentimento de esperança. Domingo tem clássico!


[1] “Pode chover/pode o sol me queimar/ que eu vou pra ver/ a charanga do Jaime Tocar”…

[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/07/deportes/1491595554_546896.html

[3] https://www.vice.com/pt_br/article/4xgbzj/mulheres-organizadas

Hélio Ázara de Oliveira

Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Filosofia, lateral do Ponta Firme FC (time de futebol amador de João Pessoa-PB).

2 comentários sobre “Uma centelha de esperança…

  • 3 de junho de 2020 at 9:18 pm
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    Ótimo artigo. Uma objeção. Um herói bem provável. As esquerda, muito influenciada pela academia, ela mesma muito acadêmica, virou sempre as costas para o futebol. Prova. O primeiro grande estudo sobre o negro no futebol foi feito pode um radialista, Mário Viana. Negro e futebol, ponta de lança do popular, da massa a ser plasmada pela revolta e pela revolução. Esportes nas escolas, traduzindo em massês, futebol nas escolas, futebol feminino, contra o preconceito, em todas as escolas, escolas ocupadas, pelo futebol, música, em massês, FUNK, RAP ou Slam em politiquês. Torcidas de massa contra a polícia, toda ela fascista, torcidas, antipovo. Recupero aqui um frase que repito há anos, só vou ler um jornal de esquerda cuja capa estampar o futebol. Todas as capas. Todos os dias. Música nas escolas, ainda traduzindo em massês, aprender instrumentos, formar conjuntos e bandas. Teatro nas escolas, em massês, teatro da Unicamp. Das universidades, no centro da cidade, convocando o povo, chamando os sindicatos periferia, com ônibus gratuito, teatro universitário em praça pública, músicos pelos pelas prefeituras em pça.pública. Teatro como o Rose, de Shekespeare , na zona de meretrício.

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    • 4 de junho de 2020 at 2:06 pm
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      Respondendo ao meu grande Camarada Mário (Bigode), militante histórico do setor automobilístico e depois, na região de Campinas, do funcionarismo público, e Zagueiro rompedor… Sim Mário há um déficit na cobertura esportiva pela esquerda, lembro com saudosismo de quantas vezes ouvi isso de você, e não é sem razão que eu estou escrevendo sobre Futebol. Poderia estar escrevendo para o Contrapoder sobre Filosofia, sobre Marx ou sobre Universidade, que são as minhas ocupações diretas, mas escrevo por futebol por, concordando com você, ver essa lacuna… “Herói improvável” é jargão boleiro, como não era improvável o Gol de Basílio em 1977, ao menos do ponto de vista do Basílio, claro, mas mesmo assim litros de tinta já se referiram ao feito dessa forma… Bola pra Frente! um Abraço!

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