A disrupção das cadeias de valor, o colapso espetacular da demanda agregada e o estouro da bolha financeira jogaram a economia mundial na maior crise da história do capitalismo. Enquanto a pandemia de coronavírus não for superada, o que, provavelmente, levará de 12 a 18 meses pelo menos, a economia mundial permanecerá prostrada. A expectativa dos sacerdotes da ordem de uma rápida recuperação do crescimento em 2020 foi definitivamente sepultada, e a possibilidade de uma relativa normalização da situação em 2021 é bastante remota.[1]
Mas a reorganização do circuito de valorização não será automática, como supõem os modelos de equilíbrio geral. A crise econômica agrava a contradição entre o horizonte global da valorização da riqueza e o caráter nacional das formações sociais, exigindo mudanças de grande envergadura no sistema capitalista mundial e na ordem econômica mundial. A escalada da luta de classes e das rivalidades nacionais daí decorrentes coloca no horizonte um período de grande convulsão social, turbulência política e incerteza econômica.
No Brasil, as consequências destrutivas da crise global serão potencializadas pelo acúmulo de contradições não resolvidas que se arrastam desde 2015, bem como pela absoluta falta de uma estratégia consistente para enfrentar a epidemia, o colapso da demanda agregada e a desorganização caótica do sistema produtivo.
O mergulho recessivo em curso golpeará uma economia que, após 24 trimestres, não voltou ao nível de atividade anterior à recessão. É a estagnação mais prolongada da história moderna do Brasil. Para se ter uma ideia, a recessão dos anos 1980 – a famigerada década perdida – demorou 16 trimestres para voltar ao patamar de produção anterior à crise. Sem mudanças profundas na inserção do país na divisão internacional do trabalho, é uma ilusão imaginar que a economia brasileira possa crescer no meio da depressão global.[2]
Ao contrário do que ocorreu nas recessões de 2009 e de 2015-2016, o impacto da crise em curso sobre o mercado de trabalho será rápido e devastador. Em 2009, ainda que aguda, a recessão foi breve, pois a partir do segundo trimestre o nível de atividade começou a se recuperar. Em 2015-2016, a crença (totalmente equivocada) de que os problemas da economia seriam passageiros levou os empresários, que após um ciclo expansivo tinham acumulado gordura, a protelar as demissões. A situação atual é muito diferente. Empresas sobreendividadas, risco de crise de crédito, espectro de crise cambial, colapso da demanda agregada, incertezas radicais em relação ao futuro, vínculos trabalhistas precários e uma política econômica desastrada levarão as empresas a precipitar as demissões.[3]
O mergulho recessivo da economia brasileira encontra um setor público em profunda crise fiscal.[4] A gravidade do problema fica evidente quando se constata que, em 2019, após cinco anos de ajuste fiscal draconiano, puxada pelo crescimento endógeno das despesas financeiras, a proporção da dívida líquida do governo federal em relação ao PIB aumentou mais de 20 pontos percentuais. A subordinação das finanças públicas à lógica do rentismo liquida toda e qualquer possibilidade de o governo federal realizar gastos públicos compatíveis com o desafio posto pela epidemia de coronavírus e com políticas fiscais anticíclicas.[5]
A fuga para a segurança dos capitais provocada pela crise econômica mundial colocou o espectro da crise cambial no horizonte, exigindo que as autoridades monetárias norte-americanas criassem a toque de caixa uma linha de crédito especial para mitigar o ataque especulativo contra o Real. A vulnerabilidade externa reflete tanto a presença de desequilíbrios estruturais do balanço de pagamentos – drástica contração dos superávits comerciais, crescentes déficits em conta corrente e saídas maciças de capitais estrangeiros – quanto o acúmulo de um monumental passivo externo.
Aos que imaginam que o elevado nível das reservas cambiais imuniza o Brasil contra o risco de estrangulamento cambial, não custa lembrar que, no final de 2019, os recursos de estrangeiros de elevada liquidez, prontos para deixar o país, superavam em mais de US$ 600 bilhões o volume das reservas cambiais. Portanto, se o desdobramento da crise econômica mundial fechar os canais de financiamento externo das economias periféricas, como os organismos internacionais temem, sem uma rápida e firme centralização do câmbio as reservas cambiais serão rapidamente drenadas e o país voltará a viver o pesadelo da renegociação com os credores internacionais.
Por fim, o impacto da crise capitalista será amplificado pelas desastradas ações e omissões do governo Bolsonaro. O darwinismo sanitário não acelerará o ciclo de imunização contra o coronavírus; ao contrário, fará a crise sanitária se arrastar por mais tempo às custas de um monumental número de vidas.[6] As reformas liberais e a austeridade fiscal não são, nem nunca foram, remédios para depressão econômica, menos ainda numa economia em frangalhos da periferia do capitalismo.[7] A absoluta ausência de políticas públicas, sob o silêncio hipócrita de uma burguesia tosca, de espírito ultraegoísta e imediatista, é hoje o principal obstáculo a uma política minimamente organizada para o enfrentamento da pandemia e da depressão que assolam o Brasil. Problemas que, por sua própria natureza, exigem ações coletivas, planejadas e coordenadas, tendo como base uma lógica de cooperação e solidariedade, não podem ser resolvidos de maneira individualista, improvisada e imediatista, tendo como critério o salve-se quem puder.
[1] A superação da epidemia de coronavírus é um processo longo e complexo. A esse respeito, ver relatório produzido para o governo dos Estados Unidos: Gottieb, S. et all. “National Coronavirus Response – A Road Map to Reopening”, preparado pelo American Enterprise Institute, March 28, 2020. https://www.aei.org/wp-content/uploads/2020/03/National-Coronavirus-Response-a-Road-Map-to-Recovering-2.pdf
[2] Sobre as expectativas de desempenho do comércio mundial, ver World Trade Organization. “Trade set to plunge as COVID-19 pandemic upends global economy”, 8 April, 2020. https://www.wto.org/english/news_e/pres20_e/pr855_e.htm
[3] Pesquisadores da FGV estimam que as medidas práticas adotadas pelo governo serão totalmente insuficientes para evitar que o número de desempregados dobre em 2020, alcançando mais de 26 milhões de pessoas, quase 25% da força de trabalho. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/estudo-aponta-que-pandemia-pode-ate-dobrar-o-desemprego.shtml?origin=uol
[4] A falência do Novo Regime Fiscal fica patente quando se constata que projeções oficiais estimam que, para cumprir as metas de tetos de gasto estabelecidas pela PEC que congela os gastos públicos reais por vinte anos, as despesas não financeiras da União teriam de ser reduzidas a 7% do PIB até 2026 – um corte de quatro pontos percentuais do PIB. A simulação supõe o congelamento do salário mínimo nominal até 2026, acarretando uma redução real de 20% em seu poder de compra. Bráulio Borges, “Quão factível é o cumprimento do teto de gasto após a reforma da previdência?” 26/09/2019. https://www.wto.org/english/news_e/pres20_e/pr855_e.htm
[5] Sem enfrentar a sangria que a dívida pública, a estratégia de estabilizar a relação dívida/PIB torna-se um verdadeiro trabalho de Sísifo. A propósito, ver oportuno artigo de Carmen M. Reinhart e Kenneth Rogoff, “Suspend Emerging and Developing Economies’ Debt Payment”, in: Project Syndicate, April 13, 2020. https://www.project-syndicate.org/commentary/suspend-emerging-and-developing-economies-debt-payments-by-carmen-reinhart-and-kenneth-rogoff-2020-04
[6] O “trade-off” entre priorizar a pandemia ou priorizar a economia é objeto dos artigos de Vaitilingam, R., “How does economic policy interact with public health measures for COVID-19?” Chigago Booth Review, RBR, March 30, 2020, in: https://review.chicagobooth.edu/economics/2020/article/how-does-economic-policy-interact-public-health-measures-covid-19; e de Thunstrom, L. et all. “The Benefits and Costs of Using Social Distancing to Flatten the Curve for COVID-19”, Forthcoming Journal of Benefit-Cost Analysis, 14 April 2020.
[7] A expectativa de que o chamado “PIB privado” compensaria a queda do “PIB público”, liderando a recuperação da economia, uma bizarrice do ministro Paulo Guedes que entrará para os anais do besteirol, foi definitivamente para o brejo.
Excelente texto. É preciso ser divulgado, estudado e com possibilidade de compartilhamento.
Vilmar,pré-candidato a Vereador pelo PSOL. Vilmar.