Uma cronologia da crise (1970–2011)

O capital é valor que se valoriza. A crise do capitalismo ocorre exatamente quando há uma interrupção desse processo de valorização. Dá-se, então, a desvalorização do capital. Para entender como isso acontece, é preciso acompanhar o desenrolar da crise.

As inovações financeiras, com a emergência do mercado de derivativos, inicialmente nos EUA, geraram a eclosão da atual crise do capitalismo, levando a crescentes subvenções estatais às empresas privadas em bancarrota.

A cronologia das principais inovações do mercado financeiro demonstra que estas, gerando capital fictício, estão sempre antepostas aos episódios da crise econômica. Salta aos olhos que aí se verifica uma relação de causa e efeito. Mas isso se inscreve em um processo no qual se dá uma relação dialética entre acumulação de capital, geração de excedente de liquidez e criação de capital fictício, engendrando a bolha financeira que, quando murcha, é a crise.

Os primeiros certificados de valores imobiliários lastreados em hipotecas são emitidos em 1970. No ano seguinte, a primeira Agência de Mercado de Moedas e Futuros é aberta em Chicago. E, um ano depois, tem início o comércio de capitais futuros, com a abertura da primeira Agência de Opções de Câmbio, também em Chicago.

De 1973 a 1975, os mercados imobiliários entram em colapso nos EUA e na Inglaterra. Estouram crises fiscais no governo estadunidense, nos níveis federal, estadual e municipal: a cidade de Nova Iorque beira a insolvência. O preço do petróleo sobe. E a economia mergulha na recessão.

Em 1975, tem início o comércio com papeis do tesouro dos EUA e com ações de futuro baseadas em hipotecas. Dois anos depois, o comércio com ações de futuro do Tesouro estadunidense. E, em 1979, torna-se prática comum o comércio sem regulamentação e sem prestação de contas legal, especialmente nos mercados futuros de moeda, disseminando-se o “sistema bancário às escuras”.

O período compreendido de 1979 a 1982 caracteriza-se por inflação em alta. É então que ocorre o choque de Volcker[1], elevando a taxa de juro nos EUA. O FMI, expurgado da influência keynesiana, se converte aos programas de “ajuste estrutural” e, junto com o Tesouro estadunidense, promove o resgate das dívidas dos países endividados com “ajudas” que, na verdade, socorrem principalmente os bancos de investimento dos EUA.

Novas formas de investimento em derivativos ancorados em moedas estrangeiras aparecem em 1980, os currency swap[2]. No ano seguinte, tem-se a criação de seguros sobre os portfólios; os investimentos em derivativos vinculados a taxas de juros estrangeiras, os interest rate swap[3]; e os mercados de futuro em eurodólares, certificados de depósito e instrumentos do Tesouro. Em 1983, se estabelecem os mercados de opção em moedas, valores de ações e instrumentos do Tesouro, assim como as obrigações de pagamento garantidas por propriedades.

Numa operação conjunta, o FED, o Tesouro e a agência de controle bancário dos EUA praticam, em 1984, o primeiro resgate bancário: o do banco Continental Illinois.

A partir de 1985, há um crescimento significativo dos mercados de opções e futuro; o comércio virtual se desenvolve e surgem novos modelos de mercado; criam-se estratégias de arbitragem estatística para derivativos. Em 1986, há a unificação dos mercados de ações, opções e moedas globais, o Big Bang[4].

No período de 1984 a 1992, há uma sucessão de falências de instituições estadunidenses de poupança e empréstimo, decorrência de investimentos mal sucedidos no mercado imobiliário. A crise afeta 3.260 instituições financeiras, que vão à bancarrota e são obrigadas a fechar suas portas ou só sobrevivem graças ao socorro estatal.

O mercado imobiliário entra em recessão na Inglaterra em 1987. Em outubro, o desarranjo dos mercados financeiros leva o FED e o Banco da Inglaterra a fazerem injeções de liquidez maciças em instituições financeiras.

Em 1987 e 1988, surgem os CDO (Obrigações da Dívida Colaterizadas), os CBO (Obrigações de Ações Colaterizadas) e os CMO (Obrigações de Hipotecas Colaterizadas)[5].

Em 1989, surgem novos mecanismos de investimento em mercados de futuro de taxas de juro.

Em 1990, criam-se mecanismos de investimentos em insolvência no crédito e índices de ações.

Em 1991, são aprovados mecanismos de investimento “fora da contabilidade”: as entidades de interesse especial ou veículos de investimento especial.

De 1990 a 1992, a crise financeira se alastra, atingindo bancos nórdicos e japoneses, por complicações no mercado imobiliário. Nos EUA, o City Bank e o Bank of New England recebem socorro estatal.

Assim se pavimentou o período de 1992 a 2009, propiciando um rápido e formidável crescimento do mercado financeiro. Para se ter uma ideia, o volume desse comércio, praticamente insignificante em 1990, ultrapassou 600 trilhões de dólares ao ano em 2008, o que está na raiz da atual crise econômica.

Na esteira da crise, temos, em 1994 e 1995, o socorro ao peso mexicano, para proteger os investidores estadunidenses que se arriscaram em operações especulativas com a dívida de alto risco do México.

Em seguida, em 1997 e 1998, ocorre a crise da moeda na Ásia, parcialmente devida a investimentos malogrados no mercado imobiliário. A crise de liquidez provoca falências em massa e o aumento do desemprego. Isso deu a ocasião para que especuladores angariassem fortunas no mercado financeiro com as intervenções punitivas do FMI na Coreia do Sul, na Tailândia e em outros países da região afetados pela crise.

Nos EUA, a ajuda estatal continuou resgatando empresas privadas em bancarrota: em 1998, o FED foi ao socorro do Long Term Capital Management.

No período de 1998 a 2001, a crise se manifesta nos países emergentes. Em 1998, a fuga de capitais leva a Rússia à falência. Em 1999, a crise atinge o Brasil. E, de 2000 a 2002, a crise da dívida argentina culmina com a desvalorização do peso, seguida de desemprego em massa e revoltas sociais.

Em 2001 e 2002, acontecem os colapsos em larga escala da bolha “ponto.com” e dos mercados financeiros. Entre os fatos econômicos mais significativos do período estão as falências da Enron e da WorldCom. Nesse contexto, o FED corta as taxas de juro para tentar equilibrar o mercado de valores e futuros. E a bolha do mercado imobiliário começa a ganhar uma dimensão preocupante.

De 2007 a 2010, a crise econômica se generaliza. Pipocam as crises do mercado imobiliário nos EUA, na Inglaterra, na Irlanda e na Espanha. Na sequência, acontecem as fusões forçadas de empresas, as falências e as nacionalizações de instituições financeiras. Em toda a parte, os governos saem em socorro dos especuladores, que investiram em derivativos, fundos de cobertura, etc., e ensaiam variegados pacotes de estímulo ao estilo neokeynesiano, além das injeções de liquidez realizadas pelos bancos centrais. Tudo isso sem êxitos muito animadores.

De 2011 em diante, a crise não cessou de se agravar, colocando em risco a integridade da Zona do Euro, conflagrando a luta de classes na Comunidade Europeia, instalando o mal-estar social em países do sul da Europa como Grécia, Portugal, Espanha e Itália, afetando — em maior ou menor grau, direta ou indiretamente — povos de todos os quadrantes do mundo.

No Brasil, a ‘marolinha’ do Lula se transformou no ‘tsunami’ que levou de roldão o segundo governo da Dilma.

Vale alertar, todavia, que esta não é a primeira nem está fadada a ser obrigatoriamente a última crise do capitalismo. A crise é da própria essência do regime do capital: desde 1854, o sistema capitalista contabiliza ao menos trinta e quatro grandes crises. A mais grave delas, a de 1929, se arrastou por vinte anos e só foi resolvida com a destruição criadora proporcionada pela Segunda Guerra Mundial.

Essas crises sempre prenunciaram grandes transformações. No curso da Primeira Guerra Mundial, por exemplo, ocorreu a vitória da Revolução Bolchevique na Rússia de 1917. No entre guerras, a ascensão do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha.

A teoria política gramsciana aponta as tarefas que devem ser cumpridas para que as crises configurem conjunturas de transformações progressivas ao invés de regressivas.

A primeira lição gramsciana é a que rompe com o economicismo e descarta que a crise econômica se transforme automaticamente em crise de hegemonia.

“Pode-se excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam acontecimentos fundamentais; elas podem criar apenas um terreno mais favorável à difusão de certos modos de pensar, de colocar e resolver as questões que envolvem todo o desenvolvimento ulterior da vida do Estado.”

A transformação da crise econômica em política “é essencialmente um processo que tem por atores os homens e a vontade e a capacidade dos homens”. Se as forças populares permanecem inoperantes, o mais certo é que “a velha sociedade resiste e se dá o tempo de ‘respirar’, exterminando fisicamente a elite adversária e aterrorizando as massas de reserva”.

A segunda lição é a que alerta para a necessidade de se estar preparado para o surgimento do que se poderia chamar de conjuntura favorável.

“O elemento decisivo de toda situação é a força organizada permanentemente e preparada desde muito tempo, e que se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é favorável (e ela só é favorável na medida em que uma tal força exista e esteja plena de ardor combativo); assim a tarefa essencial é a de se dedicar sistemática e pacientemente a formar, desenvolver, tornar sempre mais homogênea, compacta, consciente de si mesma esta força.”

Enfim, por mais grave que seja a crise do capitalismo, uma coisa é certa: o poder do capital não cairá de podre por si mesmo. Ainda que apodrecido, ele só desabará se for demolido por uma força social mais poderosa que constitua um novo bloco histórico.

Notas:

[1] Em 1979, Paul Volcker, ao assumir a presidência do Federal Reserve, o banco central americano, deu uma “pancada” nos juros: as taxas saltaram de uma média de 12,88% ao ano, em 1979, para 20,18% em 1980. A decisão provocou reflexos também na taxa London Interbank (Libor), de Londres, que subiu de uma média de 12,27% para 18,03% ao ano em 1980. Como peças enfileiradas de um dominó, os países de América Latina foram caindo um a um em uma crise que começou na década de 80 e teve reflexos até os anos 2000. A chamada “crise da dívida externa” fez países como México, Argentina, Equador e Brasil anunciarem que não iriam honrar o pagamento de suas dívidas, o que abalou a economia global. As altas das taxas de juro tinham o objetivo de segurar os preços após os dois choques do petróleo que sacudiram o mundo nos anos 70.

[2] Troca de Moeda. Uma troca de moeda, por vezes referida como uma troca de moeda cruzada, envolve a troca de juros e, às vezes, do principal, de uma moeda para outra. Os pagamentos de juros são trocados em datas fixas durante a vigência do contrato. É considerada uma transação de câmbio e não é exigido por lei que seja mostrado no balaço de uma empresa.

[3] Uma troca de taxa de juro é um acordo entre duas contrapartes em que um fluxo de pagamentos de juros futuros é trocado por outro com base num montante de capital especificado. As trocas de taxa de juro geralmente envolvem a troca de uma taxa de juro fixa por uma taxa flutuante, ou vice-versa, para reduzir ou aumentar a exposição a flutuações nas taxas de juro ou para obter uma taxa de juro marginalmente mais baixa do que seria possível sem o swap.

[4] Trata-se aqui de uma metáfora usada com relação ao fenômeno ocorrido nas relações financeiras. Big Bang ou Grande Expansão é a teoria cosmológica dominante sobre o desenvolvimento inicial do universo. Os cosmólogos usam o termo “Big Bang” para se referir à ideia de que o universo estava originalmente muito quente e denso em algum tempo finito no passado. Desde então tem se resfriado pela expansão ao estado diluído atual e continua em expansão atualmente. A teoria é sustentada por explicações mais completas e precisas a partir de evidências científicas disponíveis e da observação. De acordo com as melhores medições disponíveis em 2010, as condições iniciais ocorreram há aproximadamente 13,3 ou 13,9 bilhões de anos.

[5] Uma obrigação de dívida colateralizada (CDO) é um tipo de título garantido por ativos estruturados (ABS). Originalmente desenvolvidos como instrumentos para os mercados de dívida corporativa, os CDOs evoluíram para os mercados de hipotecas e garantias hipotecárias (MBS). Como outros títulos de marca própria lastreados por ativos, um CDO pode ser considerado uma promessa de pagamento a investidores em uma sequência prescrita, com base no fluxo de caixa que o CDO coleta do pool de títulos ou outros ativos que detém. O CDO é “fatiado” em “tranches”, que “capturam” o fluxo de caixa dos pagamentos de juros e principal em sequência com base na antiguidade. Se alguns empréstimos forem inadimplentes e o dinheiro arrecadado pelo CDO for insuficiente para pagar todos os seus investidores, aqueles nas parcelas mais baixas e mais “júnior” sofrerão perdas primeiro. Os últimos a perder o pagamento da inadimplência são as parcelas mais seguras e mais seniores. Consequentemente, os pagamentos de cupom (e taxas de juros) variam por tranche, com as tranches mais seguras/mais seniores recebendo as taxas mais baixas e as tranches mais baixas recebendo as taxas mais altas para compensar o maior risco de inadimplência. Como exemplo, um CDO pode emitir as seguintes tranches em ordem de segurança: Senior AAA (às vezes conhecido como “super senior”); Junior AAA; AA; UMA; BBB; Residual.

Sergio Granja

* Este artigo é um arranjo com dados disponíveis no livro “O enigma do capital e as crises do capitalismo”, de David Harvey.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *