Uma dura lição – o que o filme Sete dias em maio tem a ensinar sobre o 8 de janeiro

Poucas aulas sobre a ciência dos golpes foram tão bem sintetizadas quanto na expressão: “com o supremo e tudo”, proferida pelo então senador Romero Jucá. A principal lição a tirar dessa frase é que um golpe exige uma articulação de forças e instituições, e por isso, mesmo que seja deflagrado a partir de forças motrizes específicas, precisa da anuência ou, pelo menos, da complacência de parte das demais forças políticas para garantir-lhe sustentação. Assim, mesmo um duro golpe militar precisará do apoio de setores da sociedade para se converter em um regime duradouro. 

Um ótimo exemplo disso é o filme Sete dias de maio, do roteirista Rod Serling e direção de John Frankenheimer, realizado em 1964. Na trama, o adido militar Coronel Martin “Jiggs” Casey (interpretado por Kirk Douglas) é deslocado para um setor de inteligência do Exército dos Estados Unidos da América. Na nova atribuição, acaba por descobrir uma conspiração contra o presidente Jordan Lyman (representado por Fredric March). À frente dela está o General James Mattoon Scott (levado à cena por Burt Lancaster), militar com forte posicionamento fascista, que aparece em programas de TV e faz pronunciamentos em público, arregimentando o apoio popular. O General Scott conseguiu formar um centro de treinamento clandestino, onde oficiais sob seu comando treinam milhares de soldados para missões de tomada do poder, e ele está a poucos dias de dar início a elas. Mas suas articulações não se restringem aos círculos militares: junto a ele estão empresários – principalmente os controladores das grandes empresas de mídia –, banqueiros, líderes políticos e membros do judiciário. Em termos brasileiros, “com o supremo e tudo!”. A narrativa do filme se inicia no momento em que o general golpista Scott se aproveita da comoção provocada pela assinatura de um tratado de paz firmado entre o presidente Lyman e a União Soviética, para intensificar a crítica popular ao acordo e pôr em polvorosa os setores conservadores e ultraconservadores da sociedade estadunidense. Com isso, ele conseguiu acentuar ainda mais a impopularidade do presidente, que precisa lidar com manifestações e passeatas pelo país contra sua administração. 

Entre denunciar o General e quebrar seu compromisso com a hierarquia da caserna ou calar-se e pôr o país sob risco de um golpe, o Coronel Casey decide informar o presidente sobre o risco iminente de sua deposição forçada. O presidente e seu círculo mais próximo de conselheiros incumbem, então, o Coronel de impedir que o golpe aconteça. Correndo contra o tempo, inicia-se, assim, um complexo processo de desmonte das ações sediciosas antes que o golpe seja irreversivelmente deflagrado.

Conhecido muito mais pela série de sucesso Twilight Zone, o roteirista de Sete Dias em Maio, Rod Serling, era também um grande ativista antiguerra e pelos direitos civis, questões levadas para roteiros como The Rack (episódio da série The United States Steel Hour), No Christmas This Year, 24 Men to a Plane e outros. O diretor John Frankenheimer também é conhecido por sua produção significativa de filmes com forte conteúdo político e social. Em Sete Dias de Maio, ambos colocam em tela a composição de uma sedição. Evidenciam que, apesar de um golpe ser liderado por algum setor específico dos “círculos do poder” (para usar o termo formulado pelo sociólogo Charles Wright Mills), expressiva parte dos demais círculos precisa ser cooptada e acionada para, ao fim, garantir, se não o apoio, ao menos a inatividade popular. Certamente, essa é a grande diferença entre um golpe fascista e outros golpes: a capacidade de angariar apoio popular. No filme, o General James Mattoon Scott angariou esse apoio e está prestes a utilizá-lo para legitimar a tomada do poder. Mas há um ponto fundamental: o apoio popular não tem valia sem que existam as conexões com os círculos do poder. São essas conexões que garantem que as classes dominantes se manterão unidas, apesar dos sobressaltos que um golpe provoca.

Ainda que Sete Dias em Maio seja um filme dos anos 1960, ele é atualíssimo para o tempo presente no Brasil e em algumas outras nações. Tempo em que lideranças fascistas surgem e angariam o apoio popular com alguma facilidade, sobretudo por conta da fragilidade cada vez maior de setores de esquerda. Mais especificamente, o filme pode nos ajudar a pensar sobre o atual processo contra a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Diferentemente do que mostra o filme, os círculos do poder brasileiros não pareciam estar apoiando os invasores de Brasília, pelo contrário, as instituições de Estado foram rápidas em se mostrar escandalizadas com os transeuntes enrolados em bandeiras verde e amarelas andando a esmo e sem saber muito bem o que fazer nas sedes dos poderes da República. Claro está que havia oficiais militares dando algum tipo de apoio às ações do 8 de janeiro, mas nada substancial, muito menos organizado: não havia uma cadeia de comando, nem estratégias e táticas definidas. Peças incriminatórias não passam de algumas poucas minutas, mensagens de aplicativos mensageiros e uma ou outra declaração ou depoimento sem evidências materiais. O fato é que os eventos de 8 de janeiro não passaram de uma intentona, um mal-arranjado exército de Brancaleone em verde e amarelo. Transformar o 8 de janeiro em uma orquestrada tentativa de golpe é uma narrativa política que visa um enfrentamento judicial contra a extrema direita, uma narrativa tão falsa quanto as acusações que levaram Lula à prisão, em 2014, no âmbito da Lava Jato.

A gana por vingança contra o que significou o governo Jair Bolsonaro tem levantado a fervura e os ânimos de setores progressistas da sociedade brasileira, impedindo que possamos ver alguns fatos em seus pormenores. O principal desses fatos é que as vitórias contra o bolsonarismo não são fruto da luta dos setores populares e de esquerda, mas sim, como bem bradou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, no Congresso da União Nacional dos Estudantes, em 12 de junho de 2023, da ação “deles”. Mas, “deles” quem? Da grande burguesia brasileira, destacando-se aquela ligada ao sistema financeiro transnacional. Venceram Lula e elegeram Bolsonaro. Não saindo Bolsonaro como esperavam, cooptaram a candidatura Lula, apearam Bolsonaro do poder, e agora estão em seu encalço. 

Há um elemento da sociedade que não aparece no filme Sete Dias em Maio, que são as grandes organizações de trabalhadores: não estão lá os partidos de esquerda, nem os sindicatos, tampouco os movimentos sociais e populares. É fácil compreender essa ausência: uma peça de teatro ou um roteiro de cinema precisam se resolver em cerca de uma ou duas horas, raramente mais que isso. Por tal razão, precisam ser concisos nos personagens e situações que põem em cena, e, assim, selecionar recortes e excluir excessos é um imperativo. Aristóteles, em seu livro A Poética, em que aborda a criação de tragédias, já deixava claro que era preciso selecionar poucos pontos, mesmo de tramas complexas, para pôr em cena, sob risco de, ao não o fazer, criar histórias demasiadamente superficiais e confusas.

Se na dramaturgia é possível fazer tal seleção pelo bem da concisão estética, na vida real isso é perigoso. Se em Sete Dias em Maio a esquerda está ausente, isso não prejudica o sentido do filme, pelo contrário, contribui para o entendimento e a compreensão da história. Mas sua ausência no recente desenrolar da política nacional brasileira tem efeito totalmente contrário: a cooptação do Partido dos Trabalhadores pela grande burguesia tem feito com que a confusão política se torne cada vez maior e comum, que as divisões das classes se tornem turvas, embaçadas, difusas. A luta de classes se torna enevoada, e vê-se, na mesma foto, Lula e Alckmin, ouvem-se elogios do sistema financeiro às políticas de Haddad, noticia-se a distribuição de somas descomunais de recursos para parlamentares do centrão, que ainda receberão cargos e ministérios do governo.

Filmes, peças teatrais, literatura e outras formas artísticas que se debruçam sobre questões sociais e políticas são ótimos recursos de propaganda, mas vão muito além disso, como Bertolt Brecht gostava de lembrar. Quando tais questões são mais que pano de fundo para romances e se configuram como forças que acionam personagens em situações condicionadas politicamente, essas obras de arte colocam em relevo elementos e dinâmicas que muitas vezes ficam submersas, fora do alcance dos olhares. Quando as obras são de autoria de artistas com grande capacidade de leitura dos contextos políticos e econômicos, elas se inscrevem no rol das criações que atravessam o tempo, não porque sejam “atemporais” – termo por demais suspeito –, mas porque evidenciam a luta de classes em seus aspectos mais estruturais e, portanto, duradouros. 

Daí que Sete Dias em Maio não é apenas um ótimo filme, e como tal deve ser encarado – é também um sólido estudo sobre sedições, conspirações e golpes. E sendo assim, nos ajuda a pensar a história presente para além do lusco-fusco imediatista e superficial das disputas entre partidos e políticos de ocasião. Obras dessa natureza nos ajudam a olhar mais a fundo, percebendo as forças que verdadeiramente movem a luta de classes. 

O filme Sete Dias em Maio é facilmente encontrado no YouTube.

Luiz Carlos Checchia

Historiador, doutor em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela FFLCH/USP, dramaturgo e diretor teatral. Co-fundador e integrante da Cia Teatro dos Ventos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *