Vinicius dos Santos Xavier1
Nem tudo que nasce é para florescer; algumas flores desabrocham podres.
Em sua crítica das Memórias de um sargento de milícias (1852), Antonio Candido revela um dos eixos – uma mediação central – das relações sociais na capital do Império brasileiro, do Brasil oitocentista. Por meio do método que chama de “formalização ou redução estrutural dos dados externos”2 que imprimiriam uma forma central ao romance, Candido desvenda, a partir do livro de Manuel Antônio de Almeida, o “elemento oculto que age como totalizador dos aspectos parciais”. Tal elemento é o que chamou de oscilação ordem-desordem: uma alternância necessária a todas as personagens, em maior ou menor grau, entre a esfera da ordem (legal ou moral) e a da desordem. Sinteticamente, Candido desvela, pelas Memórias, o nexo fundamental da sociedade da época; sociedade na qual reinava uma Nação independente em construção – ainda que uma construção “pelo alto” – concomitante ao, e dependente do, escravismo; pessoas livres e pobres sem perspectivas vivendo numa corda bamba entre servilismo e paternalismo de alguma família abastada, numa situação na qual “limitavam-se, de um lado, os campos de ação pela falta de perspectiva de inserção social real, de qualquer estabelecimento ordenado e fixado que pudesse ser seguido sem a necessidade da burla; de outro, as relações de favor, a sobrevivência como agregado de algum proprietário, eram imperativas à sobrevivência desse conjunto de pessoas”3.
A alternância constante entre ordem e desordem e as rixas pessoais4, que são o fio condutor do romance – e do Brasil oitocentista, por essa perspectiva –, possuem um traço em comum, e central: uma expectativa de algum benefício pessoal, independentemente de isso acarretar prejuízos aos demais. A composição das rixas pessoais, “possibilitada por uma estrutura baseada na lógica do favor comum à lógica da sociedade fundada na escravidão, colabora para a manutenção e reprodução de uma ordem social opressora.”5 A satisfação do livre e pobre por conta de seu triunfo pessoal “não deixa de ser também o seu fracasso (no plano coletivo), pois a luta pela sobrevivência acaba por contribuir para a reprodução da ordem social que o oprime. Assim, a rixa revela na malandragem a sua dimensão sombria”6.
Essa oscilação, que Candido chamou de “malandragem”, é chamada no popular de jeitinho brasileiro: é a formalização do que não tem forma completa, que é inacabado por excelência. O Brasil parece funcionar somente a partir de suas brechas de respiro – genericamente, as informalidades –, já que não tem fundação necessária para que uma ordem social, legal e moral totalizante se imponha e ordene as relações sociais de forma impessoal (tal como na utopia da burguesia revolucionária do século XVIII europeu ou na perspectiva de uma revolução brasileira, como pautada por Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes7, por exemplo). Entre nós, vale o que Chico de Oliveira sumariza: a burla foi a saída dúbia das classes dominantes brasileiras para alavancar o capitalismo de molde europeu sem os respaldos formais e legais de uma revolução burguesa que poderia trazer não só as “benesses” do processo capitalista, mas suas formalidade e legitimidade civilizacionais. De tal modo, conclui: “o jeitinho é um atributo das classes dominantes brasileiras transmitido às classes dominadas”8.
Todavia, o jeitinho é mais que um atributo das classes dominantes brasileiras: ele é uma formalização estrutural das relações sociais no Brasil, encampado pelos dominantes e pelos dominados – guardando-se as devidas proporções. Sendo um traço da construção social brasileira, o jeitinho não é nem natural, nem estático e ineliminável. Ele depende também da agência: o indivíduo (ou grupo) que age é o polo consciente e “moderador” da malandragem. Sem ele, ou sem sua anuência e ação positiva, a reprodução da ordenação capitalista brasileira não se dá (pelo menos não completamente), já que ela não é automática; tampouco há qualquer determinismo ou teleologia na ação humana numa dada sociedade. Nesse âmbito,
Nada de subjetivo indica que tenha de haver, apesar da forma das determinações objetivas e do ritmo geral da sociedade, uma escolha pelo trânsito – resoluções e ações ora no plano da ordem, ora no da desordem. Se for plausível a ideia de que se reelaboram as possibilidades de ação, ainda que dentro de limites socialmente estabelecidos, então é igualmente aceitável pensar que a malandragem, esse esgueirar-se entre os planos para, entre outras coisas, sobreviver de um modo específico – mas, reiterando, não único –, ganha em qualidade. Um plus na malandragem, um mundo com culpa internalizada, já que o indivíduo sabe quando está fora da ordem, ainda que para cumpri-la. A decisão acerca das possibilidades – reforçando: limitada pelas configurações sociais e de classes –, o trânsito consciente que visa uma supremacia ou um benefício qualquer, coloca a malandragem em outro patamar. Ela não é um movimento automático; tampouco uma imposição social absoluta. A malandragem vai para além do trânsito necessário entre ordem e desordem, entre esferas díspares entre si e mutuamente condicionantes. A malandragem é ação consciente do indivíduo, uma formação dependente de sua ação, razoavelmente calculada.9
Geralmente, entre nós, para justificar uma “natureza”, uma “necessidade irresistível” na ação malandra, apela-se para a “conjuntura”: esta pressiona de tal modo que se tem de escolher entre o ruim e o pior (quando não o ruim eo pior, juntos), enquanto no plano discursivo se faz todo tipo de malabarismo para “explicar plausivelmente” a opção (que não é escolha, já que “não há saída”). Na outra mão, escondida atrás das costas, ocultam-se os benefícios individuais inconfessáveis auferidos ou visados num futuro próximo. Estes são “irreveláveis”, já que qualquer confissão sobre sua existência frustraria a ordem existente e a “legitimidade” da malandragem – e isto poucos realmente querem.
A atual conjuntura social e política “oprime” os sujeitos envolvidos de tal maneira que se veem obrigados a aceitar os desígnios do destino, da “roda da fortuna” – que, por sua vez, se configura cada vez mais em dois polos supostamente opostos, o “bem” e o “mal”, invariavelmente assumidos assim de forma irrefletida, quase mítica10. A “autonomia” e a “liberdade” (tudo entre aspas mesmo) de ação espremem-se entre o mau-caratismo e o bom-mocismo, conjugados nas mesmas ação e decisão. Parece que não há o que fazer para além daquilo que se há de fazer, e o que se faz é o “necessário”, “a melhor opção dentro da falta de opção”. A realidade impõe suas determinações de tal maneira que faz o tempo girar em falso: o imediato, aquilo que se precisa fazer agora, desliga-se do fluxo temporal e histórico, para trás e para frente: Realpolitik empobrecida. Não há história, pois as ações são marcadas genericamente pelo presente, “resolvendo” os problemas presentes, mesmo sem qualquer projeto ou projeção; e não há projeto, pois tanto a realidade imediata se impõe “para ontem” quanto o passado só serve se estigmatizado e porcamente esquematizado, enquanto o futuro desabrochará como flor natural a partir do botão cultivado no presente. As escolhas de fundo, as que limitam o campo de ação dos imediatistas, vão se desenrolando ao deus-dará, decididas em algum lugar nebuloso e distante dos que agem11. Estes agem somente aos solavancos, oprimidos pela “necessidade do aqui e agora” – e tudo, quase sem exceção, torna-se um grande aqui e agora. Ao mesmo tempo, para afirmarem suas “liberdades”, criam pautas esdrúxulas ex nihilo (a partir do nada) como satisfação substitutiva e justificação da ação – da qual, relembrando, não podem dizer a verdade integral nem agir com toda a força da negação “crítica e militante”. Rebaixam-se as pautas: a luta por emancipação efetiva se substitui, quase que naturalmente, por “inclusão linguística, semântica”, por aceitação da condição oprimida e explorada. Esta se eleva à categoria de “contestação social” quando, na realidade efetiva, não passa de assentimento da dominação, porém com “virada linguístico-discursiva” que põe tudo de cabeça para baixo, como numa câmara escura12. Concomitantemente, a rixa pessoal, que aprofunda a condição da dominação, exponencia-se e quem não se adequa torna-se inimigo – enquanto a dominação efetiva flui livremente ampliando seus tentáculos pela ação mesma dos dominados. A questão, no entanto, é que eles sabem o que fazem, e fazem cinicamente como se não soubessem. Assume-se a dominação do capital e dela acha-se fazer bom uso, legítimo. A condição de opressão e dominação ganha um verniz “progressista”, isto basta. As relações de favor e a condição de agregado subalterno se alteram e ofuscam, mas não saem da cena: agora, aparecem como algum tipo de categoria de emancipação. Os agentes internalizam a “culpa” de suas ações e o “peso da conjuntura histórica” ao mesmo tempo que declaram, veementemente (e malandramente), como “irresistíveis”: fez-se a única coisa que se poderia fazer. Naturalizam a questão e assumem a ideologia da sociedade como natureza e campo de combate. Combatem, contudo, em campo minado, mas sabendo das “vantagens individuais” que tirarão, mesmo explodindo as pernas.
A culpa internalizada pela aceitação das regras do jogo da ordem vigente acaba por se naturalizar (“é assim que acontece e não há o que fazer” ou “é assim que a coisa acontece e é preciso que se aja de acordo”), e os indivíduos beneficiados (real ou supostamente) aprofundam o modus operandi de reprodução qualificada da ordem estabelecida já que, ora ou outra, eles se beneficiarão de algum modo.
A grande questão – e é aí que falta dialética – é que não se age oscilando entre ordem e desordem, entre lei e “crime”, entre moral e imoral, entre ordem burguesa e destruição desta ordem. A alternância se dá entre o plano do discurso – aquilo que o indivíduo (ou grupo) supostamente defende como princípio e retidão ou necessidade, de forma intransigente em grande parte das vezes –, e o que se faz ou se reproduz alienadamente na realidade prática, social e histórica. Alterna-se, então, dentro da ordem vigente, bastando ser hábil para se posicionar de algum modo no qual os prejuízos da ação escolhida sejam menores que os benefícios inconfessáveis – e que estes não tardem a vir. A movimentação se dá em detrimento do todo, em “benefício” de alguns, em favor da ordem. A oscilação, então, é entre dimensões da ordem. Não há dialética, mas há malandragem. Não há princípio classista norteador da conduta que não possa ser relativizado. E não há relativização sem escolha subjetiva burlesca.
Como imagem sintética da oscilação entre ordem-reprodução da ordem – que de oscilação dialética tem pouco, mas muito de malandragem –, a cena final do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, é exemplar da “consciência” de ação própria do indivíduo (ou do grupo) e sua “ciência” acerca da conjuntura e sobre a supremacia ou benefício qualquer auferido, além das justificação e legitimação do ato pela necessidade em agir somente de tal maneira. Candinho, personagem central do conto, após capturar uma escrava fugida, receber a recompensa prometida na entrega ao dono e reaver seu filho que iria para a “roda dos enjeitados” por conta de sua situação financeira adversa, “abençoava”13 a fuga da escrava por ter-lhe propiciado a captura – a contingência que lhe deu a possibilidade do ganho – e “não se lhe dava do aborto” que a escrava havia sofrido no meio do castigo (espancamento) que recebia do dono. A expressão final é lapidar: “‘Nem todas as crianças vingam’, bateu-lhe o coração.”14
Não há reprodução da ordem social sem que o lado sombrio tenha seu quê de comicidade e capitulação.
Referências
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, 1970, p. 67-89.
___. Dialética da malandragem. In: ___. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015, p. 17-47.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Pai contra mãe. In: ___. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 113-30.
OLIVEIRA, Francisco de. Jeitinho e jeitão. In: ___. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 137-46.
OTSUKA, Edu Teruki. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 44, fev. 2007, p. 105-124.
XAVIER, Vinicius dos S. Um quê a mais: uma proposta interpretativa da subjetividade brasileira a partir da Dialética da malandragem, de Antonio Candido. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 73, ago. 2019, p. 248-266.
Referências
- Escrito por um (ex-)militante (“ex” em relação ao partido, não à causa da Revolução) quase anônimo do Partido Socialismo e Liberdade no fatídico dia da aprovação de Federação com um partido mais da ordem (“mais”, pois nada no PSOL indica que seja contra a ordem) e dias antes da aprovação “ampla e irrestrita” de capitulação ao lulismo.
- Candido, 2015, p. 28. A Dialética da malandragem foi publicada originalmente em 1970 na Revista do IEB.
- Xavier, 2019, p. 251.
- Otsuka, 2007.
- Xavier, 2019, p. 252.
- Otsuka, 2007, p. 122
- No caso de Florestan, uma “revolução dentro da ordem”.
- Oliveira, 2018, p. 139.
- Xavier, 2019, 256-7.
- Cabe lembrar que quanto mais o mundo se fecha em “necessidades irreversíveis”, em dualidade bom-mau, mais se criam “explicações” mitológicas. Os mitos dominam onde a razão crítica deixa de operar, não importando o lado que se escolha, bom ou mau. Aceita-se tacitamente o mito encarnado em algum messias, seja de azul, verde-amarelo ou vermelho, pouco importando, já que o princípio gerador é comum e o mesmo.
- Não se trata, aqui, da tal escolha entre “condições primária e secundária”, como se houvesse níveis sobrepostos que deveriam ser respeitados como degraus de uma longa escada, nos quais uma ação depende da anterior mais abrangente, num ciclo de causalidade. Mesmo assim, não se pode negar que as escolhas imediatistas são sempre o “requentadão”, um tipo de dominação que confere autonomia ilusória para aquele que escolhe o que já foi previamente limitado por outros, numa alienação das condições efetivas de ação. Joga-se no campo do adversário, com suas regras e imposições, mas como se houvesse neutralidade e qualquer grau de equidade na práxis. Aceitam-se as regras sujas do jogo sem perceber que o simples aceitar já é capitulação (quase) completa.
- Basta observar o tanto de malabarismos linguísticos em torno da “inclusão” ou mesmo da criação de palavras e termos “novos”, alterando-se termos e palavras que “carregam, imanentemente, a carga da dominação”. Contudo, esse esquematismo semântico não toca, nem de longe, no problema de fundo, não questiona (ou, quando o faz, na maioria das vezes é de modo bastante sumário e empobrecido) a ordem que cria as opressões diversas e a exploração; não elabora as questões de classe – até porque muitos desses termos são “transversais”; não se pergunta, nem de resvalo, de onde vem essa necessidade de inclusão que se expressa na imprescindibilidade da “palavra nova”. Parece que a linguagem é tanto estática quando natural, ou mesmo o núcleo do qual emanam e confluem as determinações da totalidade social. Esquece-se, é claro, que as transformações se dão na realidade prática pela prática humana (práxis) – ou a luta de classes não existia antes de Marx “criar” a expressão? Pela linguagem, igualmente, colocam-se categorias sociais tradicionais em outros patamares, como se agora, por passe de mágica, elas significassem o exato oposto do que são: termos que designam existências reais que expressam, de uma forma ou de outra, a dominação. A categoria “mãe”, baluarte de uma classe média “militante”, é um bom exemplo: ela expressa, no discurso e na prática, as vicissitudes de uma sociedade que oprime o feminino e rebaixa o papel da mulher (em relação ao masculino), entre outras coisas; esquece-se, obviamente, que se há alguma necessidade (legítima em certa medida) de contestação do papel social atribuído à mulher, há, igualmente, uma aceitação tácita e obscura, ao mesmo tempo, do papel subalterno, reivindicando-se, quase somente, que se “respeite” essa subalternidade e que ela seja aceita como tal na sociedade. Admite-se a dominação, contanto que no plano discursivo da pretensa esfera pública se diga o contrário. Isso não quer dizer, aos desavisados, que ser mãe, por si só, seja subalterno. Mas, reivindicar-se mãe como categoria definidora da subjetividade numa sociedade na qual o papel da mulher é de reprodução natural e social é sintomático – ainda mais visto que não se discursa visando romper com essa “cadeia de causalidades”; apenas reivindica-se, reiterando, que o papel social seja “dignificado” e “elevado à seriedade” no discurso e nas instituições. A virada linguístico-discursiva faz com que “se adornem com flores os grilhões”.
- Poder-se-ia até dizer, guardando-se o anacronismo, que Candinho regozijava-se em uma Rede.
- Machado de Assis, 2008, p. 130.