Por Juliana Meira1
Em 2020, o movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam), surgido em 2013, ganhou força diante de mais um assassinato resultante da violência policial estadunidense. A onda de protestos em favor de pautas historicamente defendidas pelo movimento negro atingiu diversos países do mundo, incluindo o Brasil. Diante de um momento histórico no qual discussões raciais tem se levantado, é preciso que nós não nos calemos. Em face de um quadro de violência policial contra negros, da perpetuação do racismo e da morte de tantos seres humanos, é preciso que o racismo seja discutido, principalmente a partir do ponto de vista daqueles que experimentam isso cotidianamente.
Clóvis Moura afirma que, historicamente, o racismo foi o instrumento utilizado para a justificação dos privilégios das elites e foi, ao mesmo tempo, a explicação dos infortúnios das classes tidas como subalternas. Assim sendo, o sociólogo defende que: “O racismo é um multiplicador ideológico que se nutre das ambições políticas e expansionistas das nações dominadoras e serve-lhe como arma de combate e de justificativa para os crimes cometidos em nome do direito biológico, psicológico e cultural de ‘raças eleitas’”2. O racismo pode ser encarado como um dos galhos ideológicos do capitalismo, e, portanto, desempenha um papel fundamental manutenção das estruturas capitalistas.
Ao considerar o conceito de racismo apresentado por Sílvio de Almeida, entendendo-o enquanto uma forma sistemática de discriminação fundamentada na raça, manifesta através de práticas conscientes ou inconscientes, que tem como resultado a geração de desvantagens no que diz respeito aos oprimidos e privilégios para os opressores, de acordo com o grupo ao qual pertençam; podemos, a partir dessa formulação, compreender a concepção estrutural do racismo, como defina pelo autor, a partir da percepção de que as instituições, impõem regras e padrões racistas em nome da ordem social que procuram manter. Desse modo, é possível concluir que o racismo expresso pelas instituições é resultado da materialização de uma estrutura social ou “de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista”3. É preciso que compreendamos que o racismo é estrutural. E no Brasil, assim como em muitos países do mundo, longe de ser exceção, o racismo é a regra.
Achille Mbembe, no ensaio Necropolítica4, afirma que o ápice da demonstração de soberania consiste, fundamentalmente, no poder e na competência de ditar quem pode viver e quem merece morrer. Desse modo, o exercício da soberania está manifesto no controle exercido sobre a mortalidade e em definir a vida como a própria manifestação de poder. Citando o conceito de Biopoder apresentado por Michel Foucault, a saber: o domínio da vida sobre o qual o poder tomou o controle, Mbembe, afirma que “a raça foi a sombra sempre presente sobre o pensamento e a prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros – ou dominá-los.” e é tendo isso em vista que, o autor, com respaldo na obra de Arendt, afirma que a política da raça, em última instância, está relacionada com a política da morte. O autor prossegue afirmando que “na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado”.
Achille, citando Foucault, entende “que o direito soberano de matar e os mecanismos de biopoder estão inscritos na forma em que funcionam todos os Estados modernos; de fato, eles podem ser vistos como elementos constitutivos do poder do Estado na modernidade”. É fato público e notório que o Estado brasileiro, apesar não ter declarado guerra a nenhum outro Estado, vive, internamente, em estado de guerra, em nome do monopólio que adquiriu sobre a violência, sendo esta frequentemente direcionada a indivíduos negros.
As estatísticas brasileiras dos últimos anos corroboram com a tese de que neste país o racismo é sim uma das características fundantes da sociedade, o que gera reflexos sobre as características dos assassinatos no Brasil. A sumarização dos dados apresentados em um dos textos publicados no Atlas da Violência5 de 2017, nos permite compreender um pouco dessa dura realidade. Os dados nos mostram que em 2016, no Brasil, de cada sete indivíduos assassinados, cinco eram afrodescendentes. A conclusão a qual chegaram os autores do artigo (com respaldo na realidade) é que a cor da pele de uma pessoa, infelizmente, influencia diretamente na probabilidade de um indivíduo ser assassinado. Em consonância com tal conclusão, o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial, publicado em 2017, mostrou que a chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é, em média, 2,5 vezes superior a de um jovem branco.
No mesmo texto, ao realizar uma comparação entre as taxas de homicídios de negros e não negros, no que diz respeito ao Brasil dentre os anos de 2004 e 2014, o que se evidencia é uma crescente diferença de letalidade entre os dois grupos. Enquanto em 2004, o percentual de homicídios de pessoas negras era da ordem de aproximadamente 32% do total de homicídios e os homicídios de brancos correspondiam a um pouco mais de 18%; em 2014, o assassinato de negros era equivalente a cerca de 38% do total, enquanto a taxa de homicídios de brancos correspondia a menos de 16%.
Ainda no texto publicado no Atlas da Violência de 2017, Cerqueira e Coelho afirmam que: “um tipo de associação entre racismo e letalidade violenta se dá por meio do racismo institucional, em que ações difusas no cotidiano de determinadas organizações do Estado terminam por reforçar o preconceito de cor”6. Como exemplo desse movimento os autores citam o racismo institucional que envolve o funcionamento das polícias em várias regiões do Brasil.
O anuário brasileiro de segurança pública de 2019, buscando identificar o perfil das vítimas da letalidade policial no Brasil, indica que “o padrão de distribuição da letalidade policial aponta para a expressiva sobrerrepresentação de negros dentre as vítimas. Constituintes de cerca de 55% da população brasileira, os negros são 75,4% dos mortos pela polícia”7. Nesse sentido, a violência letal por parte da polícia tem por principais vítimas indivíduos negros. Consequentemente, é impossível negar o viés racial da violência no país, que é uma das principais formas de manifestação do racismo. Paralelamente, apesar de representarem 44,2% da população, apenas 24,4% do total de mortes decorrentes de violência policial entre 2017 e 2018, correspondem à pessoas brancas.
A professora e pesquisadora da ECA-USP, Rosane Borges, em entrevista à Ponte Jornalismo8, afirma que a política adotada pelo Estado hoje, é a política da morte. Para ela, o que se faz é “o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política de inimizade. Que faz a divisão entre amigo e inimigo”. Rosane entende que esse movimento é expresso nas favelas, periferias das grandes cidades e, em suas palavras, nos rincões do país. Para a professora “nossa polícia substitui o capitão do mato”. Ao falar sobre o conceito de necropolítica, formulado por Mbembe, a autora afirma que “a necropolítica adota tipografias de crueldade. São os lugares em que se tem licença para matar. Lugares subalternizados, com uma densidade negra”. A relação entre necropolítica e racismo, é evidenciada no fato de que a política da morte, em nosso país, tem endereço na periferia, favelas e comunidades, assentamentos indígenas e quilombolas.
Borges levanta uma pergunta cuja resposta para ela é clara: “Por que se fala em genocídio da juventude negra brasileira? Porque se mata negros e os números são exorbitantes”.
Ademais, é preciso destacar que, no nosso país, a perpetuação da visão social sobre o papel do negro, os quais muitas vezes são associados à indivíduos perigosos ou criminosos, contribui para reafirmar a visão que a polícia teceu quanto a estes, e que coopera para o juízo de valor que é realizado em abordagens policiais, por exemplo. Assim sendo, o processo de desumanização experimentado pela população negra, desde a escravidão, age no sentido de aumentar a probabilidade de que esses indivíduos sejam vítimas letais em abordagens policiais.
Também, a cobertura da mídia com relação às mortes de negros e brancos é diferenciada. Os negros (e pobres) são retratados como “criminosos”, “traficantes” ou “vagabundos”, mesmo antes de serem julgados (em casos que julgamentos são necessários) e antes dos crimes serem investigados. Em contrapartida a morte de brancos (e de classe média) é sempre problematizada pela mídia. Tendo em vista o fato de que as investigações criminais são fortemente influenciadas pela opinião da mídia, as mortes de brancos têm maior chance de serem veementemente investigadas, resultando em punição; enquanto casos de assassinatos de pessoas negras são constantemente arquivados. Como um fato social, esse fenômeno, pode ser percebido por potenciais agressores, o que de alguma forma influencia a tomada de decisão dos mesmos em situações limite. Portanto, em última instância, o processo de desumanização que recaí sobre os indivíduos negros contribui para o aumento da probabilidade de vitimização destes.
No estudo Vidas perdidas e Racismo no Brasil 9, Cerqueira e Moura, baseando-se em informações sobre mortes por agressão entre 1996 e 2010, afirmam que a cor da pele da vítima, quando negra, fez aumentar em 8% a probabilidade de vitimização por homicídio.
Diante de um cenário marcado por uma política de violência sancionada pelo Estado, na medida em que financia e ratifica o comportamento de uma polícia com uma alta taxa de letalidade na atuação contra negros e diante de um quadro social claramente racista, é preciso que não nos acostumemos. Apesar de naturalizado socialmente por aqueles que o praticam, o racismo deve continuar nos causando estranheza e nós precisamos nos opor a tudo isso. Nossas vidas podem continuar não valendo absolutamente nada nessa sociedade racista e por ela, nós continuaríamos mudos, mas fica aqui um aviso: nós não deixaremos de lutar e não vamos nos calar!
“Vidas negras realmente importam?”, essa pergunta deve vir acompanhada de um “para quem”? Janaína, mãe de um rapaz de 16 anos que foi assassinado pela polícia enquanto comprava uma pipoca, com certeza se importa com uma vida que lhe foi brutalmente tirada. Terezinha, mãe de Eduardo que tinha apenas 10 anos e foi assassinado por um policial militar na porta de sua casa, no Complexo do Alemão, certamente lamenta e sofre pela ausência de mais uma vida negra, em especial, uma por ela gerada. A mãe de Johnatha de 19 anos que teve seu filho executado pela polícia enquanto levava uma travessa de doce para a avó, tenta sobreviver à dor de perder seu bem mais precioso10. Enquanto o Estado, sob a égide do capitalismo, mantiver uma política que marginaliza, fere e pune a população racializada, temos motivo suficiente para assegurar que não. Um Estado que perdeu a vergonha e afirmar em seus palanques que não há racismo e não há distinção de cor no Brasil. Nesse país, e em quase todos os países do mundo, vidas negras não importam. A carne mais barata do mercado, continua sendo a carne negra.
Referências
CERQUEIRA, Daniel R. C. e COELHO, Danilo Santana Cruz. Democracia Racial e homicídios de jovens negros na cidade partida. Texto para discussão 2267. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília, Janeiro de 2017. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/18/democracia-racial-e-homicidios-de-jovensnegros-na-cidade-partida > Acesso em: 13 de Agosto de 2020.
CERQUEIRA, Daniel R. C. e MOURA, Rodrigo Leandro de. Vidas perdidas e racismo no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Nota Técnica, nº 10. Brasília, Novembro de 2013. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/17/vidas-perdidas-e-racismo-no-brasil>. Acesso em: 13 de Agosto de 2020.
FERRARI, Mariana. O que é necropolítica. E como se aplica à segurança pública no Brasil. Disponível em: <https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil /#/>Acesso em: 25 de Outubro de 2020.
KARAN, Luiza. Mães de guerra: mulheres que perderam os filhos em crimes violentos se unem. Marie Claire. 24, Abril, 2018. Atualizado em 26, Julho, 2019. Disponível em: <https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2018/04/maes-de-guerra-mulheres-que-perderam-os-filhos-em-crimes-violentos-se-unem.html>. Acesso em: 30 de Julho de 2020.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Artes & Ensaios. Revista do ppgav/eba/ufrj. n. 32. Dezembro 2016. Publicado originalmente em: Public Culture, 15 (1), 2003: 11-40.
MOURA, Clóvis. O racismo como arma ideológica de dominação. Revista Princípios, n. 34, São Paulo, 1994.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro, RJ. Editora Paz e Terra S/A, 1978.
Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ano 13. 2019. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf> Acesso em: 18 de Agosto de 2020
Referências
- Graduanda em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas.
- MOURA, Clóvis. 1994. p.29.
- ALMEIDA, Sílvio. p. 27-36.
- MBEMBE, Achille. p. 123-151.
- Ver: CERQUEIRA, Daniel R. C. e COELHO, Danilo Santana Cruz Janeiro de 2017
- CERQUEIRA e COELHO, 2017, p. 17
- Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2019. p. 58
- Ver: O que é necropolítica. E como se aplica à segurança pública no Brasil. Disponível em: <https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/#/>
- CERQUEIRA, Daniel R. C. e MOURA, Rodrigo Leandro de. Novembro de 2013.
- KARAN, Luiza. Abril, 2018.
Excelente denúncia do racismo que perpetua o sofrimento negro. Atento, entretanto, para falhas na redação que dificultam a compreensão do importante conteúdo.