por Sérgio Lessa1
Já houve época, há algumas décadas, em que fazia parte do senso comum a sensata noção de que apenas a partir do conhecimento de nossa história seria possível elaborar um projeto revolucionário do qual o Brasil fizesse parte. Essa foi a concepção que deu origem ao melhor de nossa historiografia, desde um Caio Prado, passando por Nelson Werneck Sodré, Edgar Carone, Leôncio Basbaun, Otávio Ianni, Florestan Fernandes e assim por diante.
Essa tradição foi ofuscada.
Com a democratização do país, com o predomínio destruidor da cultura e do saber peculiar ao pós-modernismo, com o elogio da ignorância que marca a “decadência ideológica da burguesia” (título do conhecido ensaio de Lukács), com a expansão da mentalidade petista como sendo “de esquerda” (com seu “modo peculiar de governar”) – tudo isso somado ao conservadorismo de baixo clero de um Bolsonaro ou Olavo de Carvalho – para citar apenas alguns balizadores –, tudo isso, repetimos, auxiliou para que predomine (no que já não é mais esquerda) uma concepção asinina: o passado, porque passado, nada teria a nos dizer sobre o presente e, menos ainda, acerca do futuro. Seria apenas “academicismo” o estudo da história, uma inutilidade para o “fazer da política”. Como se fosse possível moldar o futuro e alterar o presente apenas a partir do que, hoje, pensamos, sentimos e queremos. A questão decisiva (por que o passado nos conduz a pensar desta forma, a termos estes sentimentos e estes desejos?) é simplesmente ignorada. Como se ignorá-la a fizesse desaparecer e, por milagre, esta mesma ignorância nos capacitasse a moldar o futuro e alterar o presente. Como se nossa tragédia atual não tivesse um passado nem um futuro! O presente, para a concepção predominante de nossa autodenominada esquerda, seria tão eterno que jamais deixaria de ser presente. Tudo é pensado no aqui e agora, nos curto e imediato prazos. Ignorar a história não é mero equívoco a ser corrigido com bons conselhos: é um componente ideológico imprescindível do que hoje se pretende esquerda.
O resultado é, quando não trágico, patético.
Entre os petistas e psolistas, para pegar apenas um exemplo, mesmo entre os mais articulados, quando muito se projeta um “desenvolvimentismo” capaz de “promover a soberania nacional” e, ao mesmo tempo e pelos mesmos passos, intensificar nossa articulação com o imperialismo mundial. Como se fosse possível um mundo imperialista em que todos os países fossem imperialistas! Um delírio que equivale, mudando o que deve ser mudado, à proposição de uma sociedade capitalista em que todos fossem igualmente pequenos burgueses – um ideal da esquerda jacobina na Revolução Francesa que já era, naqueles idos, um sonho irrealizável. Hoje, séculos depois e com o capitalismo em seu ocaso, não passa de um delírio.
É contra este vasto tsunami intelectual e ideológico, conservador, quando não reacionário, que se levanta Mario Maestri expondo a evolução do Brasil desde Cabral (o das caravelas, não o habitante dos presídios cariocas) a Bolsonaro. Desconheço qualquer outro texto das últimas décadas que trate da totalidade de nossa história com tal fôlego, amplitude, articulação, coerência e profundidade. Ainda: um texto com tais qualidades que adote uma perspectiva não apenas anticapitalista, mas revolucionária (pois ser anticapitalista não significa, necessariamente, ser revolucionário).
O texto, de facílima leitura, demonstra como a história do Brasil tem, como parte de sua essência, o desenvolvimento de uma burguesia incapaz de ser outra coisa senão um apêndice, um sócio minoritário, do imperialismo. Desde seu surgimento, seu desenvolvimento após os anos de 1930 e seu aperfeiçoamento entre os anos da Ditadura e a tragédia de Bolsonaro – tragédia tecida com a forte colaboração dos petistas, como demonstra Maestri –, a burguesia brasileira jamais deixou de ser expressão e partícipe de nossa inserção na economia mundial como fonte de riqueza a ser acumulada nos países centrais.
Argumenta Maestri a continuidade essencial (as “rupturas” apenas deram lugar a uma nova forma da velha essência) de nossa trajetória: da Colônia ao Império, da República Velha a Getúlio, Juscelino e Jango, dos ditadores militares a Bolsonaro (passando por Sarney, Itamar, FHC, Lula e Dilma), um liame ata essa trajetória a uma monótona continuidade. Brevemente: a contínua adaptação econômica, social, política e ideológica às mutáveis demandas da reprodução do capital internacional. Desde o século XVI até hoje. O que implica, inexoravelmente, a crescente exploração dos trabalhadores, a voraz e insensata conversão em capital dos recursos naturais e a sempre presente truculência sobre os escravos, camponeses e, depois, sobre os trabalhadores e operários – truculência que é o simétrico do servilismo para com o imperialismo. O mesmo PT que enviou tropas ao Haiti para cooperar com a pax americana é aquele que fez a legislação repressiva mais dura desde a Ditadura! Nenhuma contradição: apenas a complementaridade entre a subserviência aos grandes e a truculência para com os “de baixo”!
FHC apenas aprofundou Collor; o período petista aprofundou FHC (as privatizações, a reforma da Previdência, a retirada dos direitos dos trabalhadores, a proteção ao núcleo mais reacionário das Forças Armadas, a concentração da riqueza, da propriedade da terra, a privatização da saúde, da educação, da infraestrutura de energia, transportes, e assim por diante). O que fez Bolsonaro senão continuar esta caminhada? Nossa essência enquanto país tem sido, até aqui, uma monótona continuidade.
Do texto de Maestri brota com força a impossibilidade histórica (econômica, da luta de classes, das ideologias, etc.) de um Estado de Bem-estar no país (delírios de alguns nem sempre bem intencionados petistas, psolistas etc.), bem como a impossibilidade de um capitalismo no país que não seja “dependente” (como deliram alguns saudosos da teoria da dependência, de FHC a Rui Mauro Marini). Constata, com sólidos argumentos e demonstrações, que nosso problema nem é o subdesenvolvimento, nem é nosso caráter “colonial-dependente”. Nosso problema é nossa essência capitalista. Sem superarmos esta essência, clama o texto, o futuro será ainda pior que o presente.
Não há lugar a dúvidas: pensar o Brasil não é mais possível sem que nos debrucemos sobre este texto com atenção e cuidado.
Num empreendimento deste vulto, ainda mais em um momento histórico como o que vivemos (contrarrevolucionário, como bem assinala Maestri), é impossível que não surjam algumas questões e ponderações. Apontaria quatro que, talvez, possam ser significativas.
A primeira é caracterizar como golpe o impeachment de Dilma. Maestri argui com riqueza de exemplos e profundas análises que entre o passado e o petismo, tanto o de Lula quanto o de Dilma, o que predomina é a continuidade do aprofundamento do neoliberalismo em decorrência da decadência econômica do capital, do imperialismo. Argumenta que a essência do petismo é ser um partido burguês com base popular, fenômeno que já conhecemos no passado (Getúlio, etc.) Demonstra a ausência de rupturas, apenas a continuidade, entre Temer e Dilma: a Presidenta declarava em alto e bom som sua ilimitada disposição de servir ao capital naquilo que os “grandes” desejassem. Contudo, ao insistir em ser golpe o impeachment, nosso autor tem que descobrir contradições entre Dilma e Temer que, diria eu, não possuem o peso que Maestri lhes confere. Que o processo de impeachment foi pleno de ilegalidades (até mesmo ao não cassar os direitos políticos de Dilma, como requer a lei), nada mais verdadeiro. Contudo, não foram também recheados de ilegalidades e inconstitucionalidades os processos movidos pelos petistas contra as lideranças dos protestos de 2013?
Isso nos conduz à segunda ponderação: a desconsideração do peso do estamento político-burocrático no desenvolvimento do país, em especial após a Ditadura. Tal estamento é uma personificação do capital. A partir da posse de postos no Estado, seus integrantes se apropriam de uma parcela do capital produzido pelos operários. A corrupção é um “mecanismo” importante, mas não o único, dessa apropriação. Abre-se, assim, uma disputa entre o “capital social total” e o estamento político-burocrático ao redor do montante da riqueza a ser apropriada pelos ocupantes do Estado. Aqui, nesta disputa, possivelmente está a razão do impeachment e da ascensão e queda da Lava-Jato. Ao desconsiderar esse conflito, diria eu, Maestri foi forçado a superestimar as disputas entre o capital interno e o externo e a subestimar o peso político dos conflitos entre as personificações do capital. Daqui, talvez, brote sua visão do impeachment como um golpe.
A terceira ponderação se refere à tese da “recolonização” do Brasil devida à diminuição do peso dos produtos industrializados em relação aos bens primários na pauta de exportação. “Recolonização” sugere uma reversão de rumo: nos descolonizávamos e, agora, nos recolonizamos. O que ocorre, nos parece, ao invés de uma inversão de curso, é antes uma direta continuidade: o rendimento do capital se amplia, em nosso país, pelo crescimento do setor de serviços, pelo desenvolvimento da exportação de commodities e pela transferência de parte significativa da produção industrial para a Ásia e para algumas regiões não industrializadas do Brasil. Temos, em verdade, um avanço, uma continuidade e não uma reversão em relação ao passado: não há nenhuma inversão de rota, apenas continuamos a nos adaptar aos novos tempos do capital. Dilma e Lula são tão nacionalistas quanto FHC e Bolsonaro. Não há uma recolonização porque não houve uma descolonização.
A quarta observação se refere ao pequeno papel que nosso autor atribui à ação político-ideológica da aristocracia operária, cujo peso em relação ao restante da classe tende a aumentar, para sermos breves, em razão da “desindustrialização”. Com a possível – não há dados conclusivos – diminuição numérica da classe operária e com a sua – certeira, inquestionável – desconcentração pelo país afora, a “pressão à esquerda pela base” sobre a burocracia sindical e política praticamente desapareceu. Força Sindical, PT e CUT se tornaram uma coisa só. Deste modo, consolidou-se a base social para o crescente aburguesamento dos petistas, psolistas, cutistas e caterva. Ignorada esta base social, é como se o aburguesamento dessas forças sindicais e políticas fosse um fenômeno puramente ideológico, sem uma base social que expliquasse por que predominou no movimento dos trabalhadores a concepção de mundo reacionária, petista, com o escanteio dos revolucionários. Alternando o necessário, o mesmo em relação ao MST, MTST, etc.
Desnecessário assinalar que tais observações não tiram nenhum dos méritos e da importância do livro de Maestri. Será um enorme desperdício de história se esta geração que chega à militância revolucionária nos nossos dias não converter este texto em seu livro de cabeceira.
Bravo, Maestri!
Revolução e contra-revolução no Brasil (1500-2019), de Mario Maestri, foi publicado pela editora FCM/Coleção Coyocan, Porto Alegre, em 2019.
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