Vozes negras: memória e resistência

Vocês vão ter que se virar
Eu não responderei mais perguntas moldadas por interesses vazios 
Não perdoarei atos não pensados
Não vou esquecer o nome de suas famílias
Vocês vão ter que se virar
Porque eu já não tenho mais tempo, não tenho mais papo
Não tenho mais palavra com vocês.
Vocês vão ter que se virar
Porque eu não quero viver fazendo carinho na barriga da fera,
Não quero viver dando redenção pra quem não sente a culpa na pele.
Vocês vão ter que se virar
Como eu me virei
Não teve aula, não teve terreno preparado
No meu caso só teve no máximo acompanhamento de quem há muito, assim como eu estava machucado
Vocês vão ter que se virar
Porque eu não sou do tipo que morre dormindo,
Não sou daqueles que segue meu caminho
Não vai ser eu quem não vai se importar.
Sabe por que vocês vão ter que se virar?
Porque até hoje eu ainda me viro,
Ando armado, preocupado com quem vai ou não vai estar lá.
Eu me viro porque pra mim não há descanso que me faça sossegar
E sou eu o objetivo.
Sou eu o alvo.
Vocês vão ter que se virar
Porque só esse ano eu já morri baleado,
Com oitenta tiros no peito,
Asfixiado pelo segurança do supermercado
Que não suporta ver um corpo preto.
Vocês vão ter que se virar
Porque minha pele é da cor da terra
E eu carrego em mim todos aqueles
Que já pisaram nela.
Vocês vão ter que finalmente se virar.
Porque, contrariando o fetiche de vocês,
Eu não sei sambar,
Eu não bato a macumba
Os meus problemas eu resolvo na unha,
Na unha pintada de preto.
Vocês vão ter que se virar
Porque minha mãe, meus irmãos, meus avós,
Estão se virando há anos,
Sem aplausos, sem história,
A gente não tem nome,
E é bom que vocês não consigam nos nomear,
Vocês vão ter que se virar
Porque nós somos cobra, somos barco, somos sal
E conhecemos muito bem o mar.
Vocês vão ter que se virar,
Aprender a nadar,
A correr na água e rezar pra não chegar na areia
Que é onde minha antiga aldeia costumava caçar.
Eu sou só eu
Mas antes de ser eu, eu fui muito sangue derramado,
Fui muito sertão, mata, cerrado,
Fui muito forró, pagode, bailado,
Eu fui muito desamor e desalmado,
E é exatamente por terem comprado briga comigo
Que vocês vão ter que se virar,
Não por que eu quero vingança,
Mas por que, como eu aprendi desde o berço,
Eu desejo que Deus proteja aqueles que eu amo,
Mas que proteja ainda mais aqueles que odeio.

Lucas Brandão

VISUAIS

Há mais de duas décadas as artes visuais brasileiras vêm tornando-se um espaço fértil para a elaboração de uma intensa crítica e reflexão sobre o racismo estrutural no País. O resultado é uma produção de grande força estética e simbólica, liderada por artistas como Rosana Paulino e Sidney Amaral, e uma reflexão cada vez mais aguda sobre a importância de combater a segregação e preservar a cultura de matriz africana.

“Parede da Memória”, 1994-2015, Rosana Paulino

Instalação composta de 1,5 mil “patuás” – amuletos ligados ao Candomblé – sobre os quais estão impressas fotografias de família da artista, num claro resgate memorialístico e histórico. A obra pertence ao acervo da Pinacoteca do Estado.

“Ainda a Lamentar”, 2011, Rosana Paulino

Nessa pequena e potente escultura, a artista lida com duas questões essenciais de sua poética: a exploração do trabalho negro e a desigualdade de gênero.

“O atleta ou o sonho de Kichute”, 2013, Sidney Amaral

Com ironia mordaz, o artista – que morreu precocemente em 2017 – associa as marcas de chibatadas nas costas dos escravos (veiculadas ao longo do século XIX como forma de denúncia da brutalidade da escravidão) aos ícones das grandes empresas de esportes, iluminando o vínculo indissolúvel entre exploração da mão-de-obra negra e o anseio contemporâneo de superação da miséria por meio do esporte.

“Amnésia”, 2015, Flávio Cerqueira

A escultura lida com o lado perverso da mestiçagem, explicitando o anseio – inatingível – de embranquecimento por parte do garoto negro, e deixando evidente no título o caráter perverso dessa busca de “apagamento” das marcas raciais e sociais. A obra, que fez parte da mostra “Histórias Afro-Atlânticas” (2018), pertence hoje ao acervo do Masp.

“#JÁBASTA!”, 2018/2019, No Martins

A obra de No Martins é como um grito de denúncia. Sua série “#JáBasta!” dá visibilidade a imagem do negro, ao mesmo tempo em que alerta contra a situação de risco vivida por comunidades e grupos em busca de sobrevivência e espaços afetivos de convívio e luta.

“#JÁBASTA!”, 2018/2019, No Martins

A obra de No Martins é como um grito de denúncia. Sua série “#JáBasta!” dá visibilidade a imagem do negro, ao mesmo tempo em que alerta contra a situação de risco vivida por comunidades e grupos em busca de sobrevivência e espaços afetivos de convívio e luta.

“corpo, altar, proto-molotov”. (série) Recife 2019/2020, Caetano Costa

A chama no lado esquerdo do peito, cobre a tatuagem ao mesmo tempo em que ameaça queimar o cabelo afro; combina numa única imagem elementos potentes e um tanto contraditórios associados à tradição afro-brasileira: a fé e a resistência.

“Quarto de Cura”, 2018, Castiel Vitorino Brasileiro

Castiel Vitorino se apresenta como artista, psicóloga e macumbeira, deixando explícita logo de entrada a matriz complexa e fertilmente contraditória sobre a qual baseia sua ação, “convocando a arte como mecanismo capaz de forjar possibilidades de sobrevivência”.

AUDIOVISUAL

Olhos que Condenam – minisérie em quatro episódios no Netflix (2019)

A série, dirigida por Ava DuVernay, reconta uma das maiores arbitrariedades cometidas pelo sistema judicial norte-americano, que levou à condenação brutal de cinco inocentes pelo estupro e assassinato de uma jovem em Nova York, em 1989. Fiel ao episódio real que inspira a obra, a série vai aos poucos apresentando ao espectador o drama de cada um desses jovens e seu esforço em sobreviver e superar as marcas de uma sociedade racista e injusta.

Malcom X (1992)

Spike Lee, emblemático nome do cinema negro norte americano, dirige o filme baseado na autobiografia de Malcom X. Partindo da sua infância, o longa metragem percorre a trajetória que o leva a romper com o sistema em busca de sua identidade, se consolidando como um dos maiores lideres e pensadores da questão racial. 

Harriet (2019)

Harriet, dirigido por Kasi Lemmons, conta a história de Harriet Tubman. Interpretada por Cyntia Erivo. A líder abolicionista e ativista americana fugiu da escravidão através da Undergrond Railroad, uma estrada de ferro subterrânea que ligava o Sul ao Norte dos Estados Unidos. Depois de conquistar a liberdade, a colocou em risco diversas vezes, retornando à Maryland, seu estado natal, para libertar outros escravos e participar como importante líder na Guerra Civil Norte Americana.

Os Panteras Negras (1968)

O curta metragem foi dirigido por Agnès Varda em 1968, apenas 2 anos após a fundação do Partido dos Panteras Negras, movimento que se organizava para libertar Huey Newton, fundador e líder do partido, e explicitar o caráter político das decisões judiciais. 

Alma no Olho (1974)

Curta-metragem de estreia de Zózimo Bulbul (1937-2013) como diretor, que narra o processo de colonização e diáspora africana, o processo de resistência e exclusão dos negros no Brasil e a violência racial da ditadura militar, usando como recurso apenas expressões de corpo e fisionomia, sob um fundo branco e ao som de “Kuli Sé Mama”, interpretada por John Coltrane. O filme baseia-se no livro “Soul on Ice”, de Eldridge Cleaver, líder dos Panteras Negras. Bulbul, que mantinha estreito vínculo com o movimento do Cinema Novo (atuando em clássicos como “Terra em Transe”) e foi o primeiro negro a protagonizar uma telenovela no pais, militava pela valorização da cultura negra e pelo combate ao racismo, tendo fundado o Centro Afro Carioca de Cinema (2007).

Café com Canela (2017)

Dirigido por Glenda Nicácio e Ary Rosa, “Café com Canela” mostra o reencontro de Violeta e Margarida, que sofre com a perda do filho em um solitário isolamento. O filme de 2017, que trata da paisagem humana do Recôncavo Baiano, foi a primeira estreia comercial de um filme dirigido por uma mulher negra no Brasil dos últimos 34 anos. 

Liberdade (2018)

http://portacurtas.org.br/filme/?name=liberdade

O curta documental dirigido por Pedro Nishi e Vinícius Silva trabalha os cruzamentos entre o passado negro do bairro da Liberdade, a ocupação nipônica e a presente imigração africana que povoa o bairro. Em uma pensão moram Abou, um artista guineense, Satsuke, uma senhora japonesa e outros imigrantes africanos. A casa está prestes a receber Sow, imigrante guineense, quando ele fica retido na imigração do aeroporto.

LIVROS

Os Jacobinos Negros. Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. – C. L. R James

O livro escrito por C.L.R. James narra e analisa a rebelião dos escravos na ilha de São Domingos que, inspirada dos ideais da Revolução Francesa, culminou na abolição da escravidão e na independência da República Negra livre do Haiti. O estudo é um relato fiel, que inscreve no relato histórico da revolução e do papel do líder Toussaint L’Ouverture o debate sobre a função histórica da escravidão, da colonização e da função social da opressão do negro. 

Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue – A rebelião dos escravos de Demerara em 1925 – Emilia Viotti da Costa

Emilia Viotti da Costa, uma referência na historiografia brasileira, reconstitui a trama de uma das maiores revoltas de escravos das Américas. As possibilidades e limites das ações dos personagens que protagonizaram a luta sangrenta entre escravos e senhores na colônia inglesa, hoje Guiana, são associadas aos condicionantes históricos e ideológicos da época.

Peles negras, máscaras brancas – Frantz Fanon

O primeiro livro de Frantz Fanon, ˜Peles negras, máscaras brancas˜ coloca em pauta a colonização, não só como um processo econômico e social, mas psíquico. A colonização, segundo o autor martinicano, limita os negros à “falta de ser”, enquanto os brancos são os que existem enquanto sujeitos. O trabalho é uma poderosa crítica sobre os mecanismos de colonialismo e manutenção da exploração de classe, que deixam profundas marcas ao impor ao negro, em busca de um espaço de existência social e identidade, o esforço de fazer-se branco.

Defeito de cor – Ana Maria Gonçalves

Romance histórico de fôlego, no qual Ana Maria Gonçalves narra a história de Kehinde, jovem da República do Benim capturada aos oito anos de idade com sua família e trazida como escrava ao Brasil. Misto de ficção e pesquisa histórica, a obra refaz pelos olhos da combativa personagem, mãe do líder abolicionista Luís Gama, momentos essenciais da história brasileira como a revolta dos Malês.

Quando me descobri negra – Bianca Santana

“Tenho 30 anos, mas sou negra há dez. Antes, era morena”. O livro de Bianca Santana é uma reflexão sobre a experiência como base para o reconhecimento das próprias origens e identidade.

Olhos D’água – Conceição Evaristo

O título reúne 15 contos da poeta e romancista Conceição Evaristo que tratam a violência urbana que atinge as mulheres negras. Para ela, “escrever é uma forma de sangrar (…) e a vida é uma sangria desatada”. Na busca de escrever sua própria vivência, seu trabalho aborda constantemente a relação de gênero, raça e classe.

MÚSICA

Alabê de Jerusalém – Altay veloso

Daymé Arocena 

Ba kimbuta – Upp Preto Paralelo

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