Em 2020, o espectro da morte e da fome assolou os trabalhadores de todo o globo. A pandemia levou o antagonismo entre a busca do lucro e a defesa da vida ao paroxismo. A lógica macabra do capital acirrou a polarização da luta de classes em escala planetária.
O desdobramento da crise sanitária foi dantesco. Até a virada para 2021, a Covid-19 terá tirado a vida de cerca de dois milhões de seres humanos. Pobreza e raça são os principais fatores de comorbidade.1 Com uma taxa de mortos por habitante 3,22 vezes superior à média mundial, o Brasil responde por cerca de 11% do total dos óbitos, taxa quatro vezes superior ao peso do país na população mundial.2
O contraste entre Estados Unidos e Vietnã no impacto da epidemia de coronavírus deixa evidente que a mortandade não é inevitável. A despeito de, no Vietnã, a renda per capita ser quase oito vezes menor que a dos Estados Unidos, o número de vietnamitas mortos por habitante – 35 óbitos em uma população de 97,8 milhões – foi infinitamente inferior à proporção de norte-americanos – 325 mil óbitos em uma população de 332 milhões. Em outras palavras, se o padrão vietnamita se repetisse nos Estados Unidos, menos de 120 norte-americanos teriam falecido. Nem por isso o desempenho da frágil economia do sudeste asiático foi pior. Em 2020, as projeções do FMI indicam que os Estados Unidos terão uma redução de 4,3% no PIB, enquanto o Vietnã crescerá 1,6%.3
A pandemia de coronavírus jogou o capitalismo na maior recessão sincronizada de sua história. Não obstante as medidas tomadas para atenuar o mergulho do nível de atividade, muitas delas envolvendo gastos fiscais gigantescos, o FMI estima que neste ano a economia mundial sofrerá uma contração de 4,4%. A América Latina foi a região mais atingida do planeta. A CEPAL calcula que o PIB regional encolherá em torno de 7,7%, levando-o ao patamar de dez anos atrás.4
Apesar da injeção de um gasto público emergencial da ordem de 8,6% do PIB, o nível de atividade da economia brasileira em 2020 ficará 5,3% abaixo ao do ano anterior. A renda per capita deve diminuir 6,1%, fazendo a riqueza média dos brasileiros regredir ao nível de treze anos atrás. Em apenas um ano, os brasileiros perderam, em média, metade dos ganhos materiais de todo o autoproclamado ciclo neodesenvolvimentista – 2003 a 2013.5
O impacto devastador da crise econômica sobre a situação da classe trabalhadora transformou o mundo num barril de pólvora. No cenário de uma segunda onda de coronavírus, que está se confirmando, a Organização Internacional do Trabalho – OIT – prevê que a economia mundial terminará 2020 com um corte de aproximadamente 340 milhões de empregos em relação ao ano anterior.6
O colapso do mercado de trabalho colocou no horizonte a ameaça de uma pandemia de fome. De acordo com o Banco Mundial, em 2020, o número de pobres (pessoas que ganham menos de US$ 5,50 por dia) aumentará algo entre 172 e 226 milhões, praticamente a população brasileira.7 Preocupada com as ameaças políticas decorrentes de crises humanitárias provocadas pela pobreza, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura – FAO – espera que entre 83 e 132 milhões de pessoas engrossarão a massa de famélicos, levando o contingente de seres humanos cronicamente subnutridos ao patamar de 770 a 822 milhões.8
No Brasil, os efeitos calamitosos da crise social foram parcial e temporariamente camuflados pelo Auxílio Emergencial aprovado pelo Congresso Nacional, que beneficiou cerca de 67 milhões de pessoas. Foi o que atenuou o impacto devastador de mais de 33 milhões de trabalhadores em situação de desemprego, desalento ou insuficiência de horas trabalhadas – um a cada três componentes da força de trabalho. Com o término do Orçamento de Guerra no final do ano, se nada for feito, a violência contida da crise social virá rapidamente à tona.
Sem plano estratégico para enfrentar a situação caótica gerada pela pandemia de coronavírus, a burguesia internacional apostou todas as fichas no rápido desenvolvimento de vacinas, na suposição – equivocada – de que a superação da crise sanitária levará quase que automaticamente à superação da crise econômica. Enquanto a imunização coletiva não chega, os governos têm administrado a barbárie, combinando medidas de socorro aos agentes econômicos (sobretudo às grandes corporações) e transferências de renda aos desempregados com medidas de restrição e flexibilização da circulação das pessoas.
Em muitos países, particularmente os comandados por governos de extrema direita, caso dos Estados Unidos e do Brasil, as classes dominantes comprometeram-se abertamente com uma estratégia sanitária genocida, expondo intencionalmente os trabalhadores ao risco de infecção. Na periferia da economia mundial, a situação de debilidade da classe trabalhadora tem sido aproveitada para aprofundar os ataques contra os direitos trabalhistas, a privatização do Estado, o desmonte das políticas públicas e a devastação do meio ambiente.
O crescente divórcio entre as urgências da maioria da população e as ações dos governantes exacerbou a crise de legitimidade que corrói as bases da democracia liberal. Na ausência absoluta de alternativas de superação do status quo pela esquerda, forças reacionárias, abertamente autoritárias, ganharam terreno. Por sua importância estratégica no cenário internacional, o caso dos Estados Unidos é emblemático. Mesmo perdendo as eleições, Donald Trump conseguiu minar a credibilidade do sistema eleitoral norte-americano e firmar-se como principal liderança política do país.
No Brasil, Jair Bolsonaro começou o ano flertando abertamente com uma solução ditatorial. Na absoluta omissão dos partidos que compõem a esquerda da ordem, suas iniciativas golpistas chegaram a esboçar uma ameaça real ao Estado de direito. Não fora sua incapacidade de unificar a burguesia e as providenciais mobilizações de rua puxadas na undécima hora pelas torcidas organizadas, por trabalhadores precarizados e por organizações de esquerda, seus planos poderiam ter se concretizado.
O fracasso da aventura autoritária não garante, entretanto, a estabilidade do status quo. Na ausência de uma solução democrática, impulsionada por uma vigorosa intervenção popular, a crise terminal da Nova República continuará jogando água no moinho da solução totalitária.
Ainda que as eleições municipais tenham fortalecido no curto prazo os partidos da direita tradicional, que procuram uma solução autoritária para a crise da Nova República por dentro da institucionalidade putrefata da própria Constituição de 1988, a direita abertamente anticomunista, obscurantista e violenta – a direita contra a ordem – foi a força política que mais cresceu junto ao eleitorado brasileiro em 2020.
O rebaixamento das condições de vida não foi aceito passivamente pelos trabalhadores. Em todos o planeta, houve luta, protestos e manifestações contra os desmandos do capital. Em vários países, a resistência contra as novas e as velhas formas de exploração e dominação transformaram-se em vigorosas insurreições populares. Por sua importância estratégica e por seu desdobramento internacional, destaca-se o levante negro nos Estados Unidos, que denunciou a relação orgânica entre violência policial, racismo estrutural, desigualdades sociais e imperialismo. Sem a movimentação das ruas, dificilmente Donald Trump teria deixado a presidência.
Na América Latina, a polarização da luta de classes foi crescente. Contam-se nos dedos os países que não passaram por grandes mobilizações sociais. Houve vitórias importantes. A revolta da juventude chilena colocou em xeque o modelo econômico e político de Pinochet. O movimento indígena boliviano obrigou os golpistas a deixar o poder. A revolta popular peruana destituiu um Presidente da República. O levante popular na Guatemala bloqueou o ajuste fiscal contra as políticas públicas. Na Argentina, a luta feminista recolocou o direito ao aborto legal na ordem do dia.
No contexto regional, a situação brasileira é uma exceção. Apesar das greves dos petroleiros, dos carteiros, dos metalúrgicos, dos entregadores de aplicativos, dos trabalhadores da Eletrobrás e de tantas outras categorias que se levantaram contra o abuso patronal, bem como das mobilizações de rua contra as ameaças de golpe de Bolsonaro e contra o racismo estrutural, a reação dos trabalhadores brasileiros ficou muito aquém do que seria necessário para barrar a ofensiva do capital e preparar uma contraofensiva do trabalho.
À mercê de ideologias liberais, que incentivam a busca de soluções individuais, a classe trabalhadora brasileira não conseguiu se desvencilhar do jugo de organizações burocráticas, subordinadas ao Estado e comprometidas com os interesses empresariais. Não surpreende que as lutas tenham sido conduzidas de maneira fragmentada, alimentando a ilusão de soluções corporativas por dentro da institucionalidade em ruína da Nova República. Na ausência de uma perspectiva antissistêmica, que vá além do programa democrático popular, a classe trabalhadora encontrou grande dificuldade para vencer o desalento provocado pelas frustrações com as miragens de uma cidadania formal que nunca se torna realidade.
O desenvolvimento em tempo recorde de vacinas contra o coronavírus, ao que tudo indica de elevada eficiência imunológica, é sem dúvida uma grande vitória da humanidade, mas não é uma panaceia para a pandemia que ameaça a população mundial. Assim como a chegada de bombeiros não garante o fim do incêndio, a existência de vacinas não assegura por si o fim do perigo. Enquanto o vírus estiver circulando, não há como ignorar a necessidade de medidas de isolamento social.
Mesmo que os países centrais consigam imunizar o conjunto de sua população até o final de 2021, é consenso entre os epidemiologistas que, na melhor das hipóteses, o mundo só se verá livre da crise sanitária global em meados de 2023. No caso do Brasil, se não houver mudanças drásticas na estratégia de enfrentamento do coronavírus, a imunização de rebanho só será alcançada no final de 2022, a um inimaginável e absurdo custo humano.9
O fim da crise sanitária é condição necessária, mas insuficiente, para a superação da crise econômica. Sem uma política anticíclica de longo alcance, que enfrente as complexas questões colocadas pelo processo de transição para um novo padrão de acumulação de capital, a intervenção do Estado na economia não tem o condão de recompor a unidade do processo de produção, distribuição e circulação de mercadorias em escala global.
No caso da economia brasileira, periferia de segunda categoria do sistema capitalista mundial, presa aos marcos de um liberalismo tosco, a retomada do crescimento pressupõe pelo menos duas condições: a solução da crise política e um penoso ajuste às exigências das novas tendências da divisão internacional do trabalho – processo complexo que, em grande medida, foge à esfera da vontade das autoridades nacionais. Nenhuma das duas condições desponta no horizonte imediato.
A superação da crise econômica não significa que a crise social possa ser automaticamente resolvida. Os efeitos deletérios da epidemia de coronavírus sobre as condições de vida da classe trabalhadora serão profundos e duradouros. A recomposição das condições que permitiram a retomada da reprodução ampliada do capital exige que se aprofunde a degradação do nível tradicional de vida da grande maioria da população e a depredação do meio ambiente. No caso do Brasil, a posição ainda mais subalterna da economia no sistema capitalista mundial tem como contrapartida inescapável uma brutal regressão nos direitos dos trabalhadores e na defesa do meio ambiente. Nessas circunstâncias, o espaço para acomodar as contradições de classe pelo crescimento econômico fica cada vez menor.
A crise do coronavírus provocou uma ruptura irreversível com o passado. Não existe a mínima possibilidade de estabilização de um “Novo Normal” e muito menos de um retorno ao “Velho Normal”. A falência histórica do modo de produção capitalista como projeto civilizatório acirrou as contradições entre o capital e o trabalho, pondo a nu a urgência de sua superação.
O salto de qualidade na crise estrutural do capital abre um período de grande incerteza econômica, turbulência social e convulsão política. A luta de classes polariza-se entre socialismo e barbárie. O capital aglutina-se em torno de uma contrarrevolução preventiva em escala planetária para salvar o a lógica do lucro custe o que custar. Para superar a barbárie capitalista, ao trabalho só resta a alternativa de se constituir como eixo de articulação da revolução socialista internacional.
Na periferia latino-americana, a barbárie se manifesta sob a forma de uma aceleração do processo de reversão neocolonial, que compromete todas as conquistas civilizatórias arrancadas a duras penas pela luta popular. Coloca-se na ordem do dia a urgência de uma revolução democrática, que tenha a igualdade substantiva como horizonte estratégico.
A luta que fica circunscrita ao âmbito institucional é uma armadilha que anula qualquer possibilidade de transformação da realidade. Não há definitivamente a menor condição de superar uma ordem estruturalmente antissocial, antinacional e antidemocrática por dentro de sua própria lógica regressiva e autoritária.
Para estar à altura dos desafios históricos, os socialistas precisam sepultar de uma vez por todas as ilusões pueris do programa democrático e popular, livrar as organizações dos trabalhadores da armadilha da dependência institucional, fomentar com toda a energia a auto-organização da classe e reivindicar a transição socialista como necessidade histórica premente. Construir a revolução brasileira, que brota no terreno nacional e se projeta como revolução internacional, é a tarefa estratégica dos trabalhadores brasileiros no próximo período.
Contrapoder, 22 de dezembro de 2020.
Referências
- No Brasil, a taxa de letalidade da população negra é 60% superior à da população branca. https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2020/08/taxa-de-mortalidade-pela-covid-19-e-60-maior-entre-negros-em-sao-paulo/
- https://www.worldometers.info/coronavirus/
- https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/09/30/world-economic-outlook-october-2020#Full%20Report%20and%20Executive%20Summary
- https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/46501/18/S2000881_es.pdf
- https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/46501/68/BP2020_Brasil_es.pdf
- https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/briefingnote/wcms_749399.pdf
- https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/34496/9781464816024.pdf
- https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/GRFC2020_September%20Update_0.pdf
- https://www.ifpma.org/wp-content/uploads/2020/12/Airfinity_Slides_Final.pdf