A catástrofe como novo normal

A imagem da cidade imperial soterrada em lama trazida por uma cabeça d’água avassaladora é uma metáfora macabra da barbárie capitalista em pleno desenvolvimento no Brasil. A tragédia de Petrópolis não foi uma fatalidade. A catástrofe inscreve-se numa sequência de descalabros sem fim provocados pelo impacto devastador da crise ambiental numa sociedade em acelerada reversão neocolonial.

A população petropolitana foi vítima de um desastre anunciado. Chuvas extremas e deslizamentos de terra sobre áreas urbanas densamente habitadas são fenômenos recorrentes na região serrana do Rio de Janeiro. A calamidade de Petrópolis em 2022, que até o dia 22 de fevereiro contabilizava 182 mortos e 89 desaparecidos, repete o inferno vivido em Teresópolis em 2011, que levou a vida de ao menos 918 pessoas.

O risco que pairava sobre os habitantes do Morro da Oficina era conhecido. Desde maio de 2017, haviam sido identificados pela prefeitura quase 28 mil imóveis em situação de alto risco ­– quase 20% da área urbanizada do município –, 15 mil deles no bairro atingido pela cabeças d’água.1 Para enfrentar o problema, o Plano Municipal de Redução de Riscos apresentou uma detalhada lista de providências, que contemplavam medidas de curto, médio e longo prazos.

Mas, como é evidente, nada foi feito para evitar o desastre. Mais do que negligência e incúria administrativa, como se martela diariamente na grande mídia, a catástrofe de Petrópolis tem uma origem fundamentalmente econômica e social. Os donos da cidade, que controlam o poder político com mão de ferro, engavetaram as recomendações do estudo, pois enfrentar a crise urbana exigiria colocar em xeque privilégios seculares.

O desastre de Petrópolis revela a extrema fragilidade das cidades brasileiras diante do acirramento da crise ambiental. A perspectiva é sombria. O agravamento do aquecimento global, o recrudescimento das desigualdades sociais e a progressiva corrosão da capacidade do Estado de promover políticas públicas devem multiplicar a frequência, a intensidade e a letalidade dos desastres ambientais nas áreas urbanas.2

A cobertura da tragédia de Petrópolis pela grande mídia é um exemplo de desinformação, hipocrisia e oportunismo. Ao enfatizarem soluções técnicas e institucionais, formatadas como políticas sociais que nunca serão realizadas, os formadores de opinião escamoteiam a gravidade da crise urbana, determinada por fatores ambientais, econômicos e sociais de caráter estrutural. Fazendo assim, abrem caminho para que a catástrofe de Petrópolis seja atribuída basicamente à negligência e à incúria da burocracia estatal e dos políticos de plantão. Diante do fato consumado e da inação do poder público, os ventríloquos da burguesia apelam para o espírito filantrópico como meio de mitigar o sofrimento das vítimas e aplacar o sentimento de culpa daqueles que, compungidos com a situação, consomem a desgraça alheia, conscientes de que nada se fará para enfrentar os interesses da poderosa plutocracia responsável pelo flagelo da população.3

A barbárie ambiental é o novo normal. A burguesia precisa naturalizá-la, apresentando-os como eventos lastimáveis, mas inevitáveis. A espetacularização e a estetização da catástrofe, muito funcionais para a transformação da desgraça em mercadoria midiática, servem também para bloquear qualquer possibilidade de uma abordagem crítica da realidade.

A tragédia de Petrópolis tem um evidente caráter de classe que é necessário ocultar. A narrativa oficial desvincula a crise ambiental do caráter expansivo do capitalismo e de sua natureza particularmente predatória em sua fase de crise estrutural.4 As eventuais menções à gritante desigualdade social e à urbanização caótica que lhe corresponde, patentes a olho nu nos escombros da devastação, nunca são acompanhadas de consequências práticas, que possam colocar em xeque os pilares da ordem social e econômica. A denúncia da falta de recursos para prevenir o desastre, mitigar o sofrimento das vítimas e reconstruir a cidade jamais é associada à política econômica de contenção dos gastos públicos preconizada pelo regime de austeridade fiscal. A impotência do poder público para enfrentar a situação nunca é relacionada com a reversão neocolonial que compromete a própria sobrevivência do Brasil como sociedade nacional.

A burguesia rompeu definitivamente todos os nexos morais com as classes subalternas. Não há a mínima possibilidade de combater a barbárie capitalista, que transforma o cotidiano dos trabalhadores brasileiros num verdadeiro inferno, sem enfrentar pela raiz as contradições responsáveis pela segregação social e pela dependência externa. Não há solução para a crise ambiental que ameaça a vida no planeta por dentro do ecocapitalismo. É impossível tampar a caixa de Pandora sem eliminar o modo de viver e produzir baseado na mercantilização da vida e na acumulação de capital.

Contrapoder, 22 de fevereiro de 2022

Referências

  1. Sobre o estudo das áreas de risco de Petrópolis, ver: <https://www.petropolis.rj.gov.br/pmp/index.php/imprensa/noticias/item/5901-cidade-conhece-o-plano-municipal-de-redução-de-riscos>; e <https://sig.petropolis.rj.gov.br/cpge/Reflexoes.pdf>.
  2. Novo trabalho do IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas –, fórum de cientistas que orientam as Nações Unidas, adverte para a urgência de medidas de adaptação e proteção das populações urbanas contra os efeitos destrutivos cada vez mais virulentos das chuvas extremas.
  3. Entre os privilégios aberrantes que se perpetuam, destaca-se a excrescência que significa a taxa do príncipe – o famigerado laudênio ­–, que destina aos descendentes diretos da família real 2,5% do valor das transações imobiliárias em regiões que lhes pertenciam.
  4. A relação entre capitalismo e crise ambiental é objeto do notável trabalho teórico e histórico do professor Eduardo Sá Barreto, da Universidade Federal Fluminense, em seu livro O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas.

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