Eis a questão que polariza a esquerda brasileira: pactuar uma “Frente Ampla” contra Bolsonaro para derrotá-lo nas urnas ou construir uma “Frente de Esquerda Socialista” para barrar Bolsonaro e Mourão e derrotar o projeto neoliberal nas ruas?
Essa divergência não pode ser dissociada da disputa mais geral sobre o que colocar no lugar da moribunda Nova República. Afastado o risco iminente de um autogolpe totalitário, por absoluta falta de apoio interno e externo ao presidente miliciano, a casta política movimenta-se para encontrar um meio de sacramentar uma solução “institucional” para a crise política, que se arrasta desde as revoltas populares de 2013.
Para sancionar a solução autoritária por dentro da institucionalidade, a burguesia exige de seus agentes políticos ao menos duas garantias: que as reformas liberais não sejam bloqueadas e que a “paz social” seja assegurada a qualquer custo. Sem essas duas condições, os donos do poder não descartam o recurso aos militares, os garantidores em última instância da ordem e do progresso.
Os partidos que não as acatar terão o veto dos donos do poder e serão obrigados a construir força política por fora das benesses do sistema político tradicional. É o que explica o rebaixamento programático, a docilidade parlamentar e a ausência de uma oposição efetiva às reformas liberais do PT e seus satélites.
Para consolidar uma democracia ainda mais restrita e autoritária, por dentro dos escombros da institucionalidade da própria ordem putrefata, é preciso vencer a completa desmoralização dos políticos e a profunda crise de legitimidade que abala o sistema político nacional. De um lado, as promessas não cumpridas da Nova República alimentam frustrações e ressentimentos que desaguam na busca ilusória de soluções autoritárias. De outro, a operação Lava Jato não deixou pedra sobre pedra. Os partidos foram destroçados e suas lideranças trucidadas. No fim das contas, a cruzada moralista colocou em questão a própria noção de representação da vontade popular como meio de resolução dos conflitos sociais. Não surpreende o forte apelo do discurso da violência política como resposta para os males do país.
A engenharia da casta política para estabilizar o golpe contra os trabalhadores passa pelo esforço de restaurar o bipartidarismo, destruído pelo estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, o golpe parlamentar de Temer e a eleição de cartas marcadas de Bolsonaro. A normalidade do ritual eleitoral requer que a disputa política fique circunscrita a escolhas binárias entre a esquerda e a direita da ordem – ambas, como se sabe, umbilicalmente comprometidas com o projeto de transformação do Brasil numa megafeitoria moderna.
Para tanto, é preciso reorganizar a direita da ordem – tarefa que cabe a Dória, Moro, Luciano Huck –, bem como restabelecer o espaço político da esquerda da ordem – o que pressupõe a reabilitação do PT (o maior partido do Brasil). Sem uma esquerda da ordem organizada, é impossível montar o circo eleitoral. Cabem aos partidos que preenchem esse papel basicamente quatro funções: legitimar a ordem institucional; alimentar a ilusão de que existem soluções eleitorais para os problemas do povo por dentro do status quo; evitar que a insatisfação social abra caminho para a revolta popular e a emergência do povo no cenário político; e impedir a qualquer custo a emergência de uma esquerda contra a ordem.
Construir uma democracia autoritária, na qual o estado de direito não pode ser ampliado para o conjunto da cidadania, não é tarefa fácil. Afinal, o ataque sistemático às políticas públicas e aos direitos dos trabalhadores acirra inexoravelmente a luta de classes. Sem superar o divórcio entre as promessas vãs da Constituição Cidadã e a dura realidade de uma sociedade que nega sistematicamente a cidadania à grande maioria da população, a estabilização da ordem não passa de um embuste para os trabalhadores.
A esquerda encontra-se num divisor de águas. A instabilidade política provocada pela crise terminal da Nova República não será resolvida pela mera repactuação de um acordo político entre os grandes partidos da ordem. O invólucro da Constituição de 1988 foi completa e irremediavelmente destituído de seu conteúdo social, nacional e democrático para transformar-se num arcabouço jurídico que nega toda e qualquer cidadania para os brasileiros que vivem do próprio trabalho.
A possibilidade de uma solução democrática para o impasse civilizatório que ameaça a sociedade brasileira requer uma intervenção popular que leve à superação das estruturas sociais que bloqueiam toda e qualquer perspectiva de conciliar desenvolvimento material, democracia e soberania nacional. Para além das mesquinharias impulsionadas pelos interesses e pelas vaidades pessoais, essa é a questão de fundo que separa a esquerda da ordem da esquerda contra a ordem, a esquerda colaboracionista daquela que luta para ir além do capital, a esquerda integrada ao Estado autocrático burguês daquela comprometida com a construção do poder popular.
Contrapoder, 20 de julho de 2020.
E que esquerda é essa contra a ordem? Ela existe? Ou é mera ficção intelectual. Pelo que entendi fala-se de uma esquerda revolucionária que superaria as estruturas sociais limitantes para o estabelecimento do poder popular. Entretanto, sabemos que não há poder popular sem o povo e o povo brasileiro, infelizmente, é majoritariamente apolítico e alienado. Mesmo levando porrada na Reforma Trabalhista e da Previdência parcela expressiva do povo continua dando apoio político àqueles que a depaupera, o que nos coloca de volta dentro do Estado autocrático burguês.